"Fluminenses darão busto de Arariboia ao Rio".
Esse foi o título irônico com o qual o historiador Fernando Gonçalves iniciou um artigo publicado a 04 de dezembro de 1966, sobre a história do chefe temiminó e sua relação com as então capitais da Guanabara e Estado do Rio.
A fim de que no futuro os cariocas se lembrassem de Arariboia como importante personagem da fundação da cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, e não o omitissem, como fizeram nas comemorações do IV Centenário da Cidade do Rio de Janeiro, em 1965, foi criado um movimento em Niterói para a doação, ao Governo do Estado da Guanabara, do busto substituído naquele mesmo ano por uma estátua na Praça Arariboia. Essa mesma, obra do escultor Dante Croce, que em 2025 foi deslocada alguns metros para o lado, gerando intensa polêmica nas redes sociais.
A praça vizinha à Estação Hidroviária de Niterói, teve inicialmente o nome de batismo do cacique temiminó que ajudou os portugueses a expulsar os franceses do Rio de Janeiro e que, como recompensa, ganhou três léguas na Barreira Vermelha e Sertão, na margem Oriental da Baía de Guanabara, onde assentou o aldeiamento-embrião da cidade. Ainda no século XIX o local era conhecido por Praça do Mercado, depois Martim Afonso de Souza, por fim Arariboia.
O busto em questão, esculpido pelo escultor campista, radicado em Niterói, Modestino Kanto, e fundido na vizinha capital, está desde então assentado no alto do Morro de São Lourenço, junto à igrejinha construída no século XVI. Diz-se que foi o poeta Renato de Lacerda, quem posou para Kanto, em memória ao "Assombro do Inimigo", como Simão de Vasconcelos descrevia Arariboia, e que a Coroa respeitava como a um anjo-de-guarda, valendo-se da rivalidade gentílica que o separava, e a sua tribo, dos tamoios, a fim de utilizá-lo na defesa dos interesses do império português.
Este busto, no alto de um pedestal, foi colocado na praça da Arariboia por iniciativa da
Comissão Glorificadora a Martim Affonso de Souza, "O Arariboia", criada pela prefeitura. Surgido em 1906, o movimento teve como um de seus líderes uma pessoa que se identificava como José Luiz de Arariboia Cardoso e se dizia descendente do chefe do povo temiminó.
Inicialmente, a 22 de novembro de 1912, o busto foi levado para o Salão Nobre da sede da Prefeitura de Niterói, no hoje conhecido Palácio Arariboia, e levado para a Praça três anos depois, a 7 de setembro de 1915.
As Festas de Arariboia - Às 5 horas da manhã, hino de Arariboia cantado por senhoritas ao som de uma banda de música junto à igreja do morro de São Lourenço. Às 10, missa solene no monumento do outeiro da ex-aldeia de Martim Affonso de Souza, pontificando o bispo diocesano dom Agostinho Bennassi, pregando ao Evangelho o padre Henrique Magalhães.
Às 2 da tarde procissão cívica com o busto de Arariboia para o Theatro João Caetano, onde o Instituto Histórico e Geográfico Fluminense realizará uma sessão solene, seguindo depois para o palácio da Prefeitura Municipal. À noite tocarão duas bandas na praça Martim Affonso, uma em frente ao paço da Prefeitura e outra no morro de São Lourenço. Será queimado grande fogo de artificio, às 11 horas na praça General Gomes Carneiro. Finda a sessão haverá um concerto organizado pelo maestro Cordiglia Lavalle. (O Fluminense, 21 de novembro de 1915).
For desvendada ontem, pela manhã, no novo jardim da praça Martim Affonso, a herma do famoso índio Arariboia, adquirida por intermédio da Comissão Glorificadora. O busto do famoso índio, em bronze, é trabalho do distinto artista fluminense Modestino Kanto, achando-se colocado sobre um pedestal de granito no qual se lê em letras de bronze, em alto relevo, o seguinte: "Arariboia - 22 de Novembro de 1573". O busto foi trasladado do salão nobre da Prefeitura Municipal para a praça Martim Affonso, anteontem, às 23 horas, ficando velado até ontem, à hora da inauguração. Foi extraordinário o número de pessoas que ontem esteve em visita ao busto do fundador da cidade. O ato da inauguração foi sem solenidade. (O Fluminense, 08 de setembro de 1915).
No local já existia uma estação hidroviária, a Ponte da Cantareira, a mesma incendiada num revolta popular em 1959 (Revolta das Barcas).
Quando a estátua de corpo inteiro chegou na praça em 1965, o busto foi realocado para a Praça Gal. Rondon, de frente para a Igreja de São Lourenço dos Índios, no bairro de São Lourenço. Localizada no bairro homônimo, a igreja é considerada o marco da fundação do primeiro aldeamento jesuítico da capitania do Rio de Janeiro, a partir do qual, Niterói foi sendo criada. O aldeamento foi uma sesmaria concedida e registrada no nome de Martim Afonso de Sousa.
Os cariocas, com certeza, recusaram o mimo. E continuaram a ignorar o relevante papel de Arariboia em sua história. Papel este tão bem retratado por Antonio Parreiras no quadro "A morte de Estácio de Sá".
"A Morte de Estácio de Sá" (1911), pintura de Antônio Parreiras. Acervo do Museu Antonio Parreiras
Disse Fernando Gonçalves
Bem antes de vir a tomar posse da sesmaria que lhe fora doada em despacho assinado pelo Governador Geral do Brasil, Mem de Sá, em 16 de março de 1968, o Chefe temiminó já usava o hábito de Cristo. Casou-se em uma festa bastante concorrida com uma mameluca, em maio de 1570, depois de ter amargado alguns anos de lutas travadas com franceses e tamoios para manter o domínio luso no Brasil. O casamento foi relatado em carta dirigida ao Geral da Companhia de Jesus, em Roma, datada de 21 do mesmo mês e ano, pelo padre Gonçalo de Oliveira. Na carta, transcrita por José Matoso Maia Forte, em Notas para a História de Niterói (monografia editada em 1935 pelo Governo fluminense), o padre contava que, "ao dia em que o haviam de casar, veio ele (Martim Afonso de Sousa, o Arariboia) com toda a sua potência (sic), da sua aldeia, mui galante, por mar, em seis canoas grandes e bem equipadas de gente luzida, com grande festa". E que, após a cerimônia, foram disparadas "algumas peças de artilharia". Houve, ainda, um banquete, no qual mesclaram-se brancos e indígenas.
Decorridos três anos e seis meses do casório, em 22 de novembro de 1573, o padre Gonçalo testemunhava, juntamente com Miguel de Barros Seabra e o Governador Cristóvão de Barros, a transferência de "uma légua de terra ao longo do mar (da Praia da Boa Viagem ao Gragoatá) e duas léguas para o sertão (Morro de São Lourenço), do fidalgo português Antonio de Mariz para Martim Afonso e sua gente".
Não se pode afirmar que o antigo donatário tenha renunciado de muito bom grado à propriedade das terras indicadas por Arariboia na sua petição à Corte. A história, de modo geral, registra que a transferência de doação fora insinuada pelas autoridades e que apenas chegou a consumar-se cinco anos depois do despacho lançado por Mem de Sá, favorável à petição. De qualquer forma, o fidalgo deve ter ganho outras tantas léguas, mesmo porque, afora o caso excepcional de Arariboia, as sesmarias eram, a rigor, doadas a portugueses.
Foi por esse tempo que Niterói começou a florescer, nos limites da produção do açúcar e da aguardente. Com a expansão dessas atividades, foi iniciado o rateto das sesmarias, pelo lado dos brancos, como em São João de Icaraí, não demorando que também os índios se lançassem ao negócio e, por consequência, fossem adentrando ainda mais o sertão, enquanto as suas pegadas iam sendo cobertas pela civilização. Surgiram as fazendas e, com elas, o açúcar passava a ser exportado em larga escala para Portugal. No alto de São Lourenço dos Índios, no entanto, ficara a capela erguida por Arariboia para os jesuítas.
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Litografia que representa Arariboia, publicada em 1866 na Coleção Brazil Histórico, em 1866. (Biblioteca Nacional) |
Antes de fazer o busto, Modestino Kanto tinha projetado uma estátua de Martim Afonso de Sousa para ser erigida em bronze, com a altura de dois metros e meio, sobre um pedestal de granito, na Praça da República, no Centro Cívico estadual, da então Capital Fluminense. O projeto autorizando a aquizição por 6 contos de réis foi aprovado na Câmara Municipal em novembro de 1911, mas não chegou a ser executado, talvez por influência de algum indianista que só admitia a perpetuação de Arariboia com tanga. Na concepção de Modestino Kanto, o indígena apresentava-se trajado à maneira da época, conforme uma litografia publicada em 1866 na Coleção Brazil Histórico.
Glorificar Arariboia nu ou com trajes luso/cristãos foi a razão de uma intensa disputa travada quando Niterói decidiu, no início do século XX, adotar o chefe temiminó como seu "fundador". A Comissão Glorificadora, responsável pela iniciativa de se comemorar o 22 de novembro, oficialmente pela primeira vez em 1912 (em 1906 foi rezada uma missa na Igreja de São Lourenço), sempre defendeu que o herói fosse identificado como o Capitão-Mor, o Cavaleiro da Ordem de Cristo, nunca como um Morubixaba. Modestino Kanto e Antonio Parreiras foram expoentes artísticos dessa disputa.
A prefeitura acabou por encomendar a Kanto, pela mesma quantia, uma estátua denominada "Edade Primitiva", que foi instalada em 1913 no Jardim Icaraí, hoje Praça Getúlio Vargas.
Leia também:
"O Arariboia de Parreiras".
Pesquisa e edição de Alexandre Porto
Fotos 1 e 2, de Manuel Fonseca (Acervo DDP-FAN) | Fotos 3 e 4 de autores desconhecidos.
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