Eleva-se a capela de Nossa Senhora da Conceição sobre o teso de um monte, situado no centro da capital da província do Rio de Janeiro, essa bela Nictheroy, que entesta com a capital do império, florescente e próspera como ela.

Sobe-se por extensa escadaria de alvenaria, e do adro se descortina a mais pitoresca vista; vêm-se as águas aniladas da magnífica baía intitulada Nictheroy pelos tamoyos, e impropriamente denominada Rio de Janeiro pelos portugueses, e que tantos nomes recebe nos sacos que forma, e que em ondas de espuma se quebram nessa extensa praia, bordada de cais, com vergéis de árvores copadas e de casas aformoseadas por gradins ornados de flores.

Mais longe se distingue a baía ou Saco de São Lourenço, de Maruí, com suas ilhas tão magníficas; e por toda a parte avultam montes e colinas escamados de verdura, do meio dos quais branquejam algumas habitações; os cumes mostram ainda seus penachos de florestas, pobres relíquias escapadas ao machado do lenhador e ao facho dos nossos agricultores; nos vales reverdece o arvoredo como ilhas por sobre vastos arneiros; e por toda a parte prolongam-se cercas de espinhos, muros e casas, formando espaçosas ruas e bonitas e regulares praças. É uma cidade que nasce, que surge ainda das fachas da infância!


Da civilização ao santo aceno
Ruem por terra, ó Nictheroy, teus bosques,
E se elevão custosos edificios,
E templos ao Senhor. Estas planicies
Mattas já forão, feras abrigárão,
Conquistárão-nas depois selvagens tribus,
Que á espada do Europeu disparecêrão.


Nictheroy progride a passos de gigante na senda da civilização; mas falta-nos espaço para descrevê-la sucintamente; ocupar-nos-emos, pois da Capela de Nossa Senhora da Conceição, assunto da nossa bela estampa.

Antonio Corrêa de Pina, homem pardo, geralmente conhecido por Pai Corrêa, foi o seu fundador; com as esmolas dos devotos a erigiu no sitio que para isso lhe concederam os herdeiros de Martim Affonso de Souza, o bravo Arariboia; assim consta da escritura celebrada em 27 de Agosto de 1671 sob o alpendre da Ermida de São Domingos, sendo tabelião Manoel Cardoso Leitão, se bem que a sua existência data de antes de 1663, pelo legado que lhe deixou José Gonçalves em testamento com que faleceu em 30 de Dezembro desse mesmo ano.


Museo Pittoresco, 9 de dezembro de 1848



O seu patrimônio é administrado por uma irmandade que, ou por precisar de reforma, ou por subsistir sem título legitimo, foi de novo ereta em 1770.

É a capela de Nossa Senhora da Conceição um templo simples e humilde, que não era ele mais que o tributo de amor e veneração de pequenina aldeia, sem o menor vislumbre de arquitetura, e cujo interior, a não serem as suas brancas paredes, destituídas de qualquer ornamento, nada oferece de notável; a perspectiva, porém, que apresenta, n'alma a mais religiosa melancolia.

Saudável em extremo é a cidade de Nictheroy; apenas lá de mês em mês o sino da simples capelinha vem lembrar a seus habitantes a terrível verdade do nada da existência. Aqueles sons repercutem-se por toda a cidade; vê-se cá do vale o lúgubre saimento que acompanha o féretro subindo por aquelas escadas tão compassadamente; o clarão das velas, o melancólico aspecto da capelinha, com seu pano mortuário pendente do humilde pórtico, ensombrada por verde-negros ciprestes, os sons dos sinos e depois as vozes sagradas dos padres, ah! tudo isto leva a alma á mais profunda meditação.

Lá está o alpendre da morte - único cemitério da cidade! - lá correm enfileirados uns sobre outros os últimos leitos do homem; lá está a porta baixa das catacumbas, que se não franqueia sem respeitoso acatamento; lá está o seu dístico terrível, como se a mão mirrada da morte o escrevesse:

NÓS
FOMOS O QUE VÓS SOIS:
VÓS
SEREIS O QUE NÓS SOMOS!


A multidão penetra, e pouco depois tudo se dispersa, e o silêncio sepulcral paira em torno de sua mansão. Essas terríveis e sublimes palavras, essa inscrição, essa verdade eterna, que só por si bastara para embaraçar o passo ao assassino, para burlar o cálculo do ambicioso, parece que desterra, que aparta deste lugar tão aprazível pela sua vista aos habitantes de Nictheroy.

Ah! é que todos tem ali depositado relíquias caras e venerandas! Quantas histórias de prantos não encerram esses leitos da morte? Quem não tem chorado, regado ali aquela terra toda, pó de gerações, com lágrimas de dor e de saudade?

Não descansa ali um médico ilustre devotado á humanidade? Um poeta, cuja filosofia estoica ajudou-lhe a suportar as vicissitudes de uma existência pesada? Uma mãe adorada, uma esposa modesta, um filho roubado às esperanças paternais, uma virgem ceifada aos quinze anos, bela como a flor que se esfolha mal começa de desabrochar?

Um dia há, porém, no ano, em que a capela de Nossa Senhora da Conceição brilha com todas as galas; em que a cidade imperial patenteia-se com toda a pompa de uma capital; é o dia 8 do mês de dezembro em que a igreja celebra a conceição da Santa Virgem, padroeira da mesma capela.

O povo concorre de todas as partes; os habitantes da corte transportam-se nos vapores que tocam nas pontes de São Domingos e Praia Grande, e os das freguesias de Jurujuba, São Gonçalo, São Lourenço e Itaipu, afluem a aumentar a concorrência; à tarde a procissão percorre a Rua Direita, perfeitamente calçada e toda comercial; o Largo Municipal com sua matriz em construção, com seus arvoredos resguardados por gradis de granito, com o Paço da Assembleia Provincial e o da Presidência; a rua d'El-Rei, ornada com o edifício da Tesouraria provincial, o Quartel do corpo policial junto do novo edifício do Liceu, e a casa da Câmara Municipal, antiga sala ampla e vasta do afamado baile; a rua da Praia, curva mas bela e amena; e o largo de Martim Affonso com seu soberbo cais de cantaria, com seu chafariz monumental, que rivaliza com o da Praça da Memória, elegantemente alindada por prédios ornados de arvoredos, e todo coberto de verde matiz da mais bela relva.

A guarda nacional forma em parada, e acompanha a procissão com o presidente da província; à noite ilumina-se a cidade; e o Theatro de Santa Theresa ostenta-se com todo o seu brilho de luzes, flores e moças.

Publicado em Museo Pittoresco, dezembro de 1848. O artigo não é assinado, mas provavelmente é de autoria de Joaquim Norberto de Souza Silva, que escrevia para a publicação.

Pesquisa e Edição de Alexandre Porto








Publicado em 21/12/2021