Uma coleção particular tem sempre as suas idiossincrasias. O gosto específico e singular de seu proprietário é o que, ao fim e ao cabo, vai lhe dar um perfil. E é ótimo que assim seja. Nada mais chato do que a pretensão a uma visão neutra e imparcial da arte. O importante é a motivação de se construir uma única coleção com este compromisso contemporâneo. A aposta sobrepõe-se ao óbvio; os riscos são imensos, porém há recompensas.

É natural que muita coisa vá se desgastando com o tempo, mas esse desgaste é fundamental para projetar as grandes obras, dar-lhes uma medida e um diferencial. Os parâmetros históricos são construídos a partir das comparações. A coleção de João Sattamini não foge à regra; com ela uma parte da história recente da arte brasileira pode ser contada, e, através dela, podemos conhecer melhor a nós mesmos. O Museu de Arte Contemporânea de Niterói foi construído para recebê-la. Que esta era uma das mais importantes coleções de arte contemporânea brasileira não se tinha dúvida; agora, que Oscar Niemeyer faria um projeto de tanta genialidade e ousadia, beirando os 90 anos, não se tinha imaginado. O público agregado à arte contemporânea a partir do acontecimento arquitetônico do MAC supera qualquer detalhe funcional que se possa reclamar. Não são todos os grandes artistas que se mantêm sempre inventivos; a inspiração, às vezes, acaba. Para sorte geral, não foi o caso. Resultado: Niterói entrou definitivamente no mapa cultural brasileiro.

Um somatório de coincidências levou a este empreendimento. A generosidade de Sattamini, a prontidão de Anna Maria Niemeyer em propor ao pai o projeto, a diplomacia inteligente de Ítalo Campofiorito, então secretário de Cultura de Niterói, e o senso de oportunidade histórica do prefeito Jorge Roberto da Silveira. São raras circunstâncias como estas. Assim, essa enorme coleção, de quase 1200 obras, chega ao domínio público e, aos poucos, vai sendo vista e apreciada por todos. Sem contar, é claro, que em uma instituição como o MAC, ela pode receber os cuidados museológicos necessários para a sua preservação.

Iniciado em 1966, quando Sattamini morava em Milão, na Itália, a coleção teve, outrora, um perfil mais internacional. A proximidade do artista Antônio Dias foi fundamental, àquela altura, para estimular o economista a se dedicar à arte e montar uma coleção. Quando de sua volta ao Brasil, em dezembro de 1969, o espírito colecionista já era irreversível. A partir de um determinado ponto não se trata mais de investimento financeiro e passa a ser um misto de obsessão e vocação. Ambas necessárias para fortalecer o meio de arte. Sem colecionadores, não há mercado e, sem mercado, a arte contemporânea não teria a mesma cara: para o bem e para o mal.

Foi só recentemente, nos anos 80, que a coleção fez sua opção pela arte brasileira, e pelo recorte mais contemporâneo – dos anos 50 pra cá. Foi nesse período, também, que ela ganhou a escala monumental, institucional, que tem hoje. Esse momento específico possivelmente contribuiu para que assumisse certo perfil, priorizando a pintura em relação a outros suportes. Como o próprio Sattamini salientou em uma palestra no MAC, “eu fui, talvez, a primeira pessoa que comprou quadros de tamanhos grandes – 2 x 3m”.

Entre nossos escultores, os que têm maior número de trabalhos na coleção são Franz Krajcberg, com doze peças, Ivens Machado, com seis, e João Goldberg, com sete peças, sendo que três são pinturas, talvez as únicas produzidas pelo artista. Quanto a desenhos, ou trabalhos sobre papel, sempre mais fáceis de colecionar, Sattamini nunca se interessou verdadeiramente por eles – talvez não valessem o desafio.

Como não poderia deixar de ser, a coleção foi crescendo de modo muito particular, respondendo ao gosto e às oportunidades que apareciam para Sattamini. Por conseguinte, há pontos fortes e algumas brechas – que devem, com o tempo e a maior visibilidade do conjunto, ser supridas por novas aquisições tanto do colecionador quanto do Museu. Como há mais pontos fortes, e são estes que dão à coleção o destaque que tem no cenário brasileiro, passemos a eles. Já que começa nos anos 50, e tal período foi determinante para a arte contemporânea brasileira, a coleção é fortíssima entre concretos e neoconcretos. Curiosamente, tornou-se lugar comum nos últimos anos pôr em xeque esse vértice construtivo da nossa contemporaneidade artística. Não se trata de desqualificar outras possibilidades de linguagem e expressão, mas de defender e afirmar um parâmetro poético que nos parece indispensável e de altíssima qualidade artística e estética.

Principalmente para nós cariocas, é fundamental recolocarmos o neoconcretismo como um desdobramento, e não como uma ruptura do projeto construtivo. A nossa vocação cultural sempre foi de assimilação do outro, da alteridade, fazendo com que a nossa identidade nunca se fixe, mas sempre se transforme. Do mesmo modo que a formação positivista de Euclides da Cunha fora fundamental para balizar e dar conteúdo literário ao seu susto sertanejo e sua visão alargada do Brasil, foi básica em Hélio Oiticica, Lygia Clark e Lygia Pape, para citar apenas os mais falados, a formação concreta para liberar e dar densidade ao vôo experimental que se seguiu. Destarte, esse foco da coleção é dos mais louváveis. Se tomarmos, por exemplo, Ivan Serpa, teremos um conjunto de trabalhos notáveis; desde o momento inicial de formação da abstração geométrica no começo dos anos 50 até o desenvolvimento posterior, mais melancólico, noturno e expressionista dos anos 60. Daquela primeira fase, surpreendem alguns trabalhos de grandes formatos, atípicos entre os concretistas. De algum modo, vê-se a presença indireta de Kandinsky, que irá desaparecer com a evolução da poética do grupo.

Outro artista muito bem representado é Aluísio Carvão. Está na coleção um dos seus primeiros trabalhos abstratos, seguindo à risca o rigor e o despojamento da época. Usando tinta industrial de automóvel e trocando os pincéis por pistola mecânica, Carvão retira toda a subjetividade do ato criativo, sem, todavia, abrir mão de seu lirismo característico. São quase trinta trabalhos, entre os quais cabe destacar Composição, de 1953, Cornucópia, de 1955, e uma sutilíssima pintura da fase das Cromáticas, de 1960.

Outro artista dessa geração que tem forte presença é Dionísio Del Santo. São 24 pinturas suas, que abrangem trinta anos de trabalho – de 1957 a 1987. Todos os demais – Charroux, Ludolf, Maluf, Pape, Amílcar, Weissmann, Oiticica etc. – têm trabalhos na coleção. Apesar de não pertencer a nenhum grupo, por uma questão de geração devemos citar Mira Schendel. Não é pouca coisa, numa coleção, treze trabalhos de uma artista tão singular e significativa.

Quem de fato sobressai é Lygia Clark. Não só pelo número – trinta trabalhos –, mas principalmente pela qualidade. Em sua última grande retrospectiva pela Europa e Brasil, predominava nas etiquetas a dobradinha Sattamini/Mac–Niterói. Há desde um retrato anterior à abstração – que por sinal deixa a desejar – até um Trepante, passando pelos Planos em superfície modulada, Espaços modulados, os maravilhosos Casulos (Sattamini possui quatro estupendos) e Bichos. Enfim, dá para se entender o percurso do plano ao espaço e deste ao corpo, que se desenvolve na obra de Lygia Clark, mantendo-se no interior da coleção Sattamini. A existência desse núcleo construtivo, responsável por uma convivência criativa riquíssima, foi determinante para diversos artistas. Esse clima de laboratório, em que os artistas trocam experiências e compartilham expectativas, é o que vai fortalecendo, dentro de um grupo, de uma geração, as particularidades poéticas de cada um. Sorte a nossa termos duas coleções tão fortes nesse período como as de Adolpho Leirner e João Sattamini.

Uma artista que correu paralelamente ao movimento, dialogando de fora, assimilando determinados passos e recusando outros, foi Ione Saldanha. São ao todo na coleção 29 trabalhos, que vêm desde a fase figurativa, as fachadas volpianas, até os Bambus que surgem no final dos anos 60, e que são o desenvolvimento final de sua espacialização lírica da cor. Além de Ione, devem ser destacadas as presenças de Flávio Shiró, Iberê Camargo, Joaquim Tenreiro, Wega Nery e Maria Polo – esta com mais de trinta pinturas –, formando um painel da abstração informal que se realizou por aqui nos anos 50 e 60.

Passado esse primeiro momento com artistas formados no período entre 50 e 64, chegamos à geração seguinte. É a fase do enfrentamento político, da censura e da consternação – a contracultura teve traços particulares ao sul do Equador. O ponto marcante de redefinição poética foi sem sombra de dúvida a exposição Opinião 65. Pertencem a este grupo Antonio Dias, Rubens Gerchman, Carlos Vergara, Roberto Magalhães, entre outros.

É claro que a presença de Dias, dada sua proximidade com o colecionador, é significativa. São cerca de trinta obras, concentradas nos anos 60 e 70. A fase inicial do artista, entre 61 e 64, ainda marcado pela convivência com Goeldi, é pouco conhecida, mas não menos interessante. São trabalhos feitos com encáustica que exploram o clima sombrio e denso do gravador. O momento seguinte, conhecido como fase visceral, é o ponto de inflexão política – surgem trabalhos marcantes como o magnífico Vencedor, de 1965, que pertence a Sattamini. Um momento forte de Antonio Dias na coleção são os anos 70, quando, já na Europa, ele desloca sua poética para uma investigação mais conceitual das possibilidades da pintura – uma dezena de trabalhos, entre os quais cabe destacar “The occupied country”, “The illustration of art” e “The incomplete biography-the body”.

Além de Dias, deve ser destacada a presença de Gerchman, com dezenove obras, e Roberto Magalhães, com 29. Do primeiro há trabalhos magníficos do período 67-76, como “Os Desaparecidos” e “Trabalhador morreu com maconha na mão”, que marcaram época.

Um artista que sai dessa geração e mantém uma preocupação formal é Raimundo Colares. Morto prematuramente em 1986, só recentemente, em 1997, ele teve uma retrospectiva importante no Centro Cultural da Light. Não obstante sua participação um tanto apagada no cenário contemporâneo, é notável sua presença na coleção MAC/Sattamini. Os ônibus, as ultrapassagens e os gibis trazem para o contexto brasileiro uma combinação pop-construtiva que lembra, guardadas as devidas diferenças de tonalidade afetiva, Roy Lichenstein. Os dez trabalhos de Colares que estão em Niterói são extraordinários.

Correndo por fora dessa geração mais engajada e assumindo claramente a filiação concretista, aparece com grande força na coleção a obra de Paulo Roberto Leal. São quase quarenta trabalhos, desde as caixas de acrílico até a série Armadura, de 1979/80. Dada a quantidade significativa de trabalhos, em algum momento deverá ser feita uma mini-retrospectiva no Museu só com as peças da coleção. Duas outras artistas formadas junto dessa geração, e que estão muito bem representadas, são Anna Bella Geiger e Wanda Pimentel.

Antes de entrarmos na Geração 80 propriamente dita, um artista que a antecede, mas que ganha força junto com ela, deve ser mencionado: Jorge Guinle. Os seus quinze trabalhos que pertencem à coleção – e que já foram mostrados em uma exposição individual no salão central do Museu, em 1997 – são magníficos. O fato de Sattamini ter adquirido o grupo de trabalhos que foi à Bienal de São Paulo de 1985 mostra a relevância do conjunto. É o momento alto de sua breve carreira, em que cor e gesto se integram com um misto de intensidade e contenção. O seu lugar na história recente da pintura brasileira ainda está para ser escrito, que o diga um artista do porte de Fábio Miguez, tão marcadamente influenciado por ele.

Como já mencionado anteriormente, é decisiva na década de 80 a convivência de Sattamini com Rubem Breitman e Victor Arruda (a Galeria Saramenha teve participação importante). Esse momento foi de grande crescimento do mercado, tanto internacional como no Brasil, com a retomada da pintura e a difusão das poéticas neo-expressionistas. As discussões pós-modernas liberavam certo ecletismo, que muitas vezes confundiu-se com um oba-oba generalizado. Se por um lado os anos 80 foram licenciosos e banalizantes para muitos, sinal de uma pluralidade positiva, por outro foi aí que se iniciou alguma profissionalização do meio da arte. As galerias começavam a se abrir para o mercado internacional, e a arte brasileira passou a ganhar um espaço que hoje é fato consumado. Naquela década a coleção Satamini teve papel preponderante. Ninguém participava tão ativamente do meio, adquirindo sistematicamente artistas jovens. Por exemplo, todos os dez trabalhos de Daniel Senise na coleção são do período 1983-86.

Quase todos os principais artistas que tiveram participação ativa na década têm trabalhos na coleção. Independentemente de serem vinculados ao que se convencionou chamar de Geração 80, os artistas mais representados, além de Senise, são Pizarro, Barrão, Adir Sodré, Cláudio Fonseca, Delson Uchoa, Gonçalo Ivo, Jorge Duarte, Manfredo Souzanetto, Paulo Campinho e Victor Arruda – são, na média, dez trabalhos de cada um. Fora outros importantes nomes dessa fase, que têm em torno de cinco trabalhos – não cabe aqui listá-los, pois seria interminável. Quase podemos dizer o seguinte: pense em um artista com alguma visibilidade àquela altura e a coleção terá pelo menos um par de trabalhos dele.

Dado o crescimento do número de artistas nessa época, podemos dizer que, quantitativamente, os anos 80 detêm a maior fatia da coleção. Os artistas paulistas da Casa 7 – Carlito Carvalhosa, Nuno Ramos, Rodrigo Andrade, Fábio Miguez e Paulo Monteiro – têm vários trabalhos sobre papel da época da Bienal de 85 incluídos na coleção.

Dois nomes importantes, que tiveram suas trajetórias configuradas paralelamente, sem comprometer-se com as questões poéticas mais geracionais – seja pelo lado da pintura neo-expressionista, seja pelo viés mais pop – são Nelson Felix e Ronaldo Rego Macedo, e ambos são bem representados no acervo MAC/Sattamini. Passada a fase eufórica dos anos 80, a coleção continuou a crescer nos anos 90, mas em um outro ritmo, menos agressivo. Artistas como Eliane Duarte, Ernesto Neto, José Bechara, Paulo Pasta, só para citar alguns entre os que tiveram projeção naquela década, possuem pelo menos um trabalho na coleção.

O que se percebe, com algum distanciamento e uma visão mais totalizada do conjunto da coleção, é o quanto ela carrega de compromisso pedagógico em relação à arte contemporânea brasileira. Apesar do “olho” de Sattamini ser o principal condutor das aquisições, agrega-se à sua sensibilidade um senso de responsabilidade que diz respeito a mostrar o aspecto plural de nossa produção recente. Nesse sentido, ela já traz incorporado um espírito público que no MAC–Niterói deverá ser explorado e potencializado.

Nos próximos anos, o Museu tem como compromisso seguir apresentando ao público a sua coleção, sempre com algum recorte conceitual que contribua para um maior conhecimento da arte e da cultura brasileiras. Isto sem excluir as exposições temporárias, que sempre trazem contribuição à discussão contemporânea. Para citar apenas algumas, nestes três anos o MAC realizou mostras da mais alta relevância, como Ocupações e descobrimentos, com Antonio Manuel e Artur Barrio, com trabalhos selecionados de dez artistas da cena contemporânea. Ambas as exposições foram realizadas com obras produzidas especialmente para o espaço de Niemeyer. Neste aspecto, cabe citar também a instalação “Terra à vista”, de Nelson Leirner, que foi mostrada na última Bienal de Veneza e pertence ao acervo do MAC, onde tem um lugar específico de exposição, diante da maravilhosa Baía de Guanabara.

Dada a dificuldade de acesso sistemático no Brasil a coleções que nos mostrem o que de mais fundamental foi produzido em nossa história da arte, este comodato tem um aspecto educativo dos mais relevantes. Não podemos deixar de registrar, por sinal, que se há uma característica de fato pioneira do MAC ela diz respeito aos seus projetos de educação, integrando escolas, comunidade e museu.

Se exemplos como este, que gerou o MAC Niterói, de parceria entre iniciativa privada e poder público, se multiplicassem minimamente em nosso país, teríamos uma outra cara. A aposta é que de grão em grão floresça uma cultura mais generosa no Brasil.

Luiz Camillo Osorio (1999)
Ex-diretor da Divisão de Teoria e Pesquisa do MAC



A Visão do Colecionador
"A Visão do Colecionador", por João Leão Sattamini Neto
A
"A Dinâmica de uma Coleção", por Claudia Saldanha
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"Uma Coleção a Caminho de Niterói", por Marcia Muller



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Publicado em 10/05/2016

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