O retrato em preto e branco mostra a imagem do homem sentado, com suas calças largas e o chapéu protegendo-o do sol. Parece ter sido tirada em algum ponto remoto dos Estados Unidos nos anos 1930. Mas a pichação ali no canto e os sneakers surrados do anônimo revelam a contemporaneidade da foto. A imagem foi clicada em 1999 no Harlem, área de Nova York onde a maioria da população é negra e há grande influência cultural afro-americana, e foi a primeira de uma série que deu origem ao trabalho Harlem on My Mind: I Was, I Am (Harlem em Minha Mente: Eu Fui, Eu Sou), do fotógrafo belga Charif Benhelima.

Durante os três anos em que viveu no bairro nova-iorquino, Benhelima saiu pelas ruas com sua Polaroid 600 para registrar, sem exotismos, aquele reduto marginalizado. O resultado, ou melhor, o desenvolvimento desse trabalho está em exibição na mostra Imagem em Processo. Charif Benhelima: Polaroids 1998- 2012, no Museu de Arte Contemporânea de Niterói, região metropolitana do Rio de Janeiro. São 128 imagens de quatro séries que estiveram recentemente em exposição no Palais de Beaux-Arts (Bozar), em Bruxelas. Para Benhelima, essa oportunidade de mostrar não só o produto final, mas sim o processo de criação, é importante para promover um diálogo com o público. "É como convidar as pessoas a verem o que acontece em meu ateliê."

O fotógrafo comprou sua Polaroid na mesma época em que se expandiam no mercado as câmeras digitais. Ele não buscava uma série de aparatos tecnológicos, mas sim um desafio. Passou a explorar o que aquele objeto tão compacto poderia proporcionar. As experimentações se traduzem em um jogo de luzes, contornos, contrastes e imagens bipartidas. "Essa câmera te convida a olhar de uma forma diferente."

Enquanto estava morando em Nova York, Benhelima, filho de mãe belga e pai marroquino, órfão aos 8 anos, descobriu sua origem judaica sefardita. A tópica da identidade, que já permeava seus trabalhos anteriores, passa a ganhar força. A herança multicultural e as investigações sobre os diferentes grupos de cultura semita, tanto árabes quanto hebreus, tornam-se a tônica de sua segunda série, Semites, também presente na exposição. São reproduções de retratos reunidos em sua visita ao Marrocos, em 2004.




Fotos de família, de arquivo e de desconhecidos tornam-se a matéria-prima de suas experimentações. Ao refotografar esses rostos de homens e mulheres, Benhelima ofusca suas identidades: encobre as vestimentas, desvanece os traços físicos. E proporciona ao espectador uma reflexão sobre reconhecimento, memória e esquecimento. "Quando você pensa em familiares, você não tem uma imagem definida. Há apenas uma ideia de como a pessoa se parece." Mas mais do que isso, nos leva a pensar sobre o que nos une, mais do que nos diferencia. "Semitas são pessoas que falam a mesma língua, que podem se comunicar umas com as outras. É um trabalho que mostra o que temos em comum. Ninguém pode fazer uma diferenciação e dizer 'este é um judeu, este é um árabe'."

A partir desse trabalho, Benhelima foca sua técnica no que os curadores Christophe De Jaeger e Daniella Géo enfatizam como sendo a estética da evanescência. Imagens no limiar da invisibilidade permeiam as últimas duas séries da mostra, Black-out e Roots (Raízes). O blecaute do fotógrafo traz, em um proposital recurso à iluminação excessiva, objetos solitários e completamente desprovidos de contexto: uma cadeira, uma lixeira, uma trave. Parece não haver espaço para a subjetividade.

Mas só parece. Porque os olhos miram os contornos da imagem em tons de cinza e veem um pião - miram novamente, com mais atenção, e é a figura de um pombo que se revela. E os olhos também veem as duas imagens de uma praia: mas só uma delas foi realmente clicada na natureza. A outra não. "A foto é uma reprodução de um pôster. Você tem a sensação de que está olhando para a natureza, mas você não está. É uma forma de brincar com a realidade", diz Benhelima.

Em Roots, as singelas imagens de flores, árvores e folhagens de diferentes espécies e origens fazem alusão à ocupação do espaço social e à convivência entre seres provenientes de diferentes partes do mundo. "Nós aceitamos tudo o que vem de fora, menos pessoas."

A mostra, que estará em exibição até o dia 23 de junho, permitirá ao visitante dialogar com variadas interpretações e fazer sua própria leitura para cada imagem. "É como um edifício. Você pode ver de fora, de dentro, do topo, do chão. É o mesmo prédio, mas sob diferentes perspectivas. E é isso o que eu quero fazer pelo resto da minha vida: olhar para o mesmo objeto e ver coisas diferentes."


O belga Charif Benhelima reúne no Rio 128 imagens flagradas no bairro nova-iorquino, já exibidas em Bruxelas


MAC abre para alunos da Maré

Quando esteve no Brasil, em 2007, Charif Benhelima deu um workshop para uma turma de jovens moradores de uma comunidade carente do Rio. Era a primeira turma da Escola de Fotógrafos Populares, criada por João Roberto Ripper na Favela da Maré, zona norte do Rio. A produção cultural desses alunos e de outros que se formaram nos anos seguintes compõe o Programa Imagens do Povo, da ONG Observatório de Favelas, que selecionou alguns desses novos profissionais para integrar a mostra Imagem em Processo, em exibição paralela à de Benhelima, na varanda do Museu de Arte Contemporânea de Niterói.

"O exercício que a gente quer problematizar é não só fazer uma apresentação estetizante de uma realidade, mas mostrar como estes sujeitos estão se tornando sujeitos estéticos", diz o curador Luiz Guilherme Vergara, diretor do MAC. "E a preocupação de criar engajamento e formar sujeitos estéticos não é só para a favela, é para a classe média também. E isso é um trabalho para construirmos neste museu."

A mostra, dividida em três eixos, traz os relatos e as produções dos protagonistas desse processo de transformação estética a que Vergara se refere. As 14 fotos reunidas em Imagens do Povo são trabalhos que foram exibidos recentemente na exposição Ginga da Vida, em Paris, promovida pela Fundação Aliança Francesa. A seção Solos Culturais traz um mapeamento dos trabalhos e das identidades da Maré. Em Travessias, cujo projeto homônimo é responsável por promover a democratização da produção e difusão das artes visuais, são mostrados os diálogos que surgem a partir da chegada de uma produção artística com valores estéticos até então alheios àquela comunidade.

Durante o período da exposição, que vai até 23 de junho, haverá ainda uma série de fóruns de debates. "A mostra traz uma dimensão de coletivo que a classe média perdeu. Então, a ideia é que o museu deixe de ser apenas um templo estético para também ser um museu-fórum."


Produção cultural desses alunos e de outros que se formaram nos anos seguintes compõe o Programa Imagens do Povo



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Publicado em 24/07/2013

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