Melanie Martins, para Cultura Niterói
O Choro, os chorinhos e os chorões: com mais de 150 anos de história, esse gênero musical e seus artistas acompanharam transformações na indústria fonográfica, a influência da globalização e a própria evolução da música brasileira, sem perder a sua relevância e referências. Seja no cenário nacional, seja na perspectiva local, o Choro criou raízes. E, em Niterói, esse padrão não é diferente.
Silvério Pontes, trompetista consagrado, curador e diretor musical do
I Festival de Choro de Niterói, participou em primeira mão de alguns desses momentos históricos na cidade. Em entrevista para o site Cultura Niterói, ele compartilha suas memórias e suas expectativas para o Choro na cidade.
A história do Choro começa ainda no século XIX, quando ritmos e instrumentos europeus começaram a chegar no Brasil trazidos pela corte portuguesa em 1808. A
polca, a
valsa, o
schottisches, a música de barbeiros, a
quadrilha, entre outros, eram algumas influências que, uma vez combinadas pelos
"chorões", se tornaram algo autenticamente brasileiro e original. Por conta dessa essência, o Choro é conhecido por sua versatilidade, acumulando o status de música erudita, pela sua exigência técnica e sua complexidade de formas, e de música popular, por estar presente desde os grandes salões até em encontros informais, como os da casa de Tia Ciata. A partir dessa inovação e criatividade, consolidou-se o gênero do Choro.
Silvério Pontes
Silvério, que nasceu na cidade fluminense de Laje do Muriaé, passa a fazer parte dessa relação do Choro com Niterói quando ele se muda para a cidade no final da década de 1970.
"Comecei a tocar muito jovem na banda da minha cidade, quando ainda morava no interior do Estado do Rio. A minha ligação com Niterói começou na minha infância por meio de um diretor da escola do Instituto Gaylussac que era da minha cidade. Eu vim pra cá com 17 anos e fui estudar nessa escola. Minha história com Niterói é uma relação de amor, eu me considero cidadão niteroiense, minhas filhas nasceram aqui. E a música sempre me acompanhou", se apresenta Silvério.
As bandas, tanto as colegiais, quanto as militares, tiveram grande importância na difusão do Choro ainda na segunda metade do século XIX. Elas foram importantes agentes na popularização dos chorinhos ao incorporarem parte das composições aos seus repertórios. Um grande exemplo é a Banda do Corpo de Bombeiros do Rio de Janeiro que, sob a liderança do maestro e compositor Anacleto de Medeiros, deu início a esse movimento. Nessa mesma linha, as bandas de colégios também tiveram grande participação na popularização do Choro para todas as idades. Compostos por alunos, esses grupos representam um momento de iniciação à música e ao estudo de instrumentos para muitos jovens.
O músico relembra também a sua participação na banda do Gaylussac e a tradição niteroiense de encontros desses grupos.
"Eu tinha muita comunicação com o pessoal das bandas de Niterói, principalmente do Salesianos. O maestro da minha cidade era muito amigo do maestro da banda do Salesianos, o Mestre Afonso. Niterói sempre foi um reduto de músicos. Antigamente, nessa época (1979 - 1980), aconteciam encontros de bandas no Campo de São Bento. Inclusive, a banda da minha cidade e meu pai vinham tocar. O encontro acontecia naquele coreto", conta Silvério.
Niterói, inclusive, foi uma das cidades pioneiras a abraçar as bandas escolares. A história desse costume na cidade remonta a 1883, quando o Colégio Salesiano de Santa Rosa criou sua banda que acabaria sendo reconhecida pelo título de "Banda Colegial Mais Antiga do Brasil". Outros colégios não ficaram para trás e alimentam essa tradição até hoje, como Colégio La Salle Abel, Liceu Nilo Peçanha, São Vicente, Plínio Leite, entre outros.
Outro capítulo recente da relação do Choro com Niterói foi o "Orquídea". Esse bar, antigamente localizado na rua Mem de Sá, em Icaraí, se tornou ponto de encontro semanal de músicos instrumentistas e chorões por cerca de 10 anos. As segundas-feiras, religiosamente, se tornaram data fixa das rodas de Choro. Ali, com a casa sempre lotada, além de muita música boa, surgiram parcerias e encontros de expoentes do gênero.
A partir dessas noites, foi criado o Grupo Orquídea: um conjunto que, apesar de nunca ter tido uma configuração fixa, contou com a participação de grandes instrumentistas como Tiago do Bandolim, Rogério Souza, Charles Costa, Alessandro Cardozo, Altir, Carlinhos Leite, Rogério Souza, Ronaldo do Bandolim, Dirceu Leite, Daniela Spielmann, Zé da Velha, Paulo Sérgio Santos, Márcio "Hulk" Almeida, Celsinho Silva, Silvério Pontes, entre muitos outros.
Silvério foi um dos precursores do grupo.
"Essa iniciativa partiu muito da vontade dos músicos. Participavam o Carlinhos, o Jonas, Rogério, Ronaldo, Marcio, Márcio e o Ilton, dono do Candongueiro. Essa foi a nossa primeira configuração para reacender a força do Choro em Niterói. Esse gênero foi o primeiro movimento da música brasileira. É de uma importância vital.", conta o trompetista.
Conheça o CD Orquídea, lançado pela Nitrói Discos
O músico ainda ressalta a importância do poder público em ajudar artistas da cidade com políticas públicas direcionadas.
"Na época, tínhamos muito pouco apoio oficial. A gente teve reconhecimento da Niterói Discos, selo da Fundação de Arte de Niterói, depois de anos tocando e lotando o bar, quando gravamos o CD do Orquídea. E isso tudo aconteceu pela nossa vontade de manter a chama viva dessa música. E é claro que o poder público é importante nessa parceria. Tão importante que só agora estamos conseguindo realizar esse sonho antigo que é o Festival de Choro de Niterói. Acho que estamos até na frente do Rio de Janeiro", destaca Silvério.
Outro projeto que Silvério relembra com carinho é o
Choro na Rua. O grupo surgiu de um encontro pontual, no centro do Rio, marcado para comemorar o lançamento do livro "Zé da Velha e Silvério Pontes, 30 anos da menor Big Band do mundo". Escrito por André Diniz e Diogo Cunha, o livro fala sobre esses dois ases do Choro e as suas contribuições para o mercado fonográfico. A química entre os músicos foi tanta que os mesmos decidiram expandir a roda. Desde 2016, o Choro na Rua mantém apresentações no Polo Gastronômico de Icaraí e em outros pontos no Rio de Janeiro.
Zé da Velha e Silvério Pontes, a 'menor Big Band do mundo'
Apesar dos altos e baixos do gênero, a realização de rodas de Choro sempre foram um padrão entre os chorões. Elas são um espaço de prática musical e, ao mesmo tempo, camaradagem, respeito, aprendizagem e integração. Além disso, elas são sinônimo de reconhecimento da qualidade musical do artista: apesar de não existir uma hierarquia estabelecida, é esperado que os chorões saibam improvisar e "tocar de ouvido" as composições.
Parte dessa história do Choro em Niterói, a cidade foi ponto de encontro para ensaios de um dos maiores grupos na história do Choro brasileiro: o
Época de Ouro. De acordo com Silvério,
"eles vinham ensaiar no Fonseca, na casa de Seu Edésio, avô do violonista Leandro Saramago. Eles se encontravam lá e nisso, vinham pra cá Rafael Rabello, Dino 7 Cordas, Jorginho do Pandeiro, Armandinho, César Faria (pai do Paulinho da Viola), Jonas da Silva (cavaquinista do próprio Época de Ouro), Carlinhos Leite. Uns 50 / 60 anos atrás, eles vinham pra cá, no Fonseca e se reuniam. Eles começaram esse movimento e o Ronaldo do Bandolim chegou a pegar uma parte desses encontros".
Já em sua terceira geração de músicos, o Época de Ouro foi fundado em 1964 por Jacob do Bandolim. Conhecidos por sua criatividade, inovação e técnica, o grupo fez história no mundo do Choro. Ronaldo Bandolim, músico niteroiense que acompanhava os ensaios realizados pelo grupo em Niterói, se tornou um dos integrantes e, mais do que isso, se apaixonou pelo Choro e criou, entre outros grupos, o "Família Souza", conjunto que ele comanda ao lado de seu irmão e seu filho, Rogério e Tiago e que é parte da programação do Festival.
O sucesso do grupo é reconhecido até hoje apesar de o Choro já ter passado por altos e baixos na indústria da música. Ao longo do tempo, o gênero conviveu com a época áurea das rádios, a "invasão" da música americana, as jazz bands, a erupção de outros gêneros nacionais, como a bossa nova e a MPB, o surgimento da televisão e modismos característicos de cada década, entre outros. Entretanto, seja no esquecimento, seja na tendência, o Choro nunca morreu. E, de acordo com Silvério,
"ele segue mais forte do que nunca".
Conjunto Época de Ouro
"Dos anos 1980 pra cá, acho que o Choro foi a música que mais evoluiu e teve seu ensino difundido com a criação de escolas específicas. Cada vez mais, os alunos têm acesso à informação e a um material muito grande para se estudar, indo desde o início do século passado, com Chiquinha Gonzaga, até os compositores atuais. Eles têm se interessado cada vez mais pelo Choro, pelo improviso e pela dinâmica. A tendência é que esse gênero se espalhe pelo mundo inteiro. E isso é uma alegria para nós brasileiros, já que temos uma música robusta, séria e acreditada. A única música que realmente pode representar o Brasil em qualquer lugar do mundo é o Choro", compartilha Silvério.
O
I Festival de Choro de Niterói chega para incentivar a nova geração que vem se somando ao movimento local desse gênero musical. Como o Choro tem hoje uma enorme importância cultural, econômica e afetiva para Niterói, a Prefeitura de Niterói, por meio da Fundação de Arte de Niterói, lança esse projeto que visa inaugurar um novo capítulo para a música da cidade. Com 29 oficinas voltadas para instrumentistas e shows com grandes nomes da cena musical, de Niterói e do Brasil, o Festival tem como objetivo unir formação profissional e entretenimento.
Para finalizar essa primeira edição, Niterói vai presenciar mais um momento histórico do Choro na cidade: a formação de uma grande roda na Avenida Amaral Peixoto.
"Finalmente o Dia do Choro vai ser comemorado como a gente sempre sonhou, na nossa cidade, no meio da avenida com 300 músicos tocando. Cada vez mais, vamos levar essa música para o mundo. Niterói tem potencial pra isso", finaliza Silvério.