Exmo. sr. prefeito do município de Nictheroy.
A fundação de Nictheroy já diversas vezes tem sido objeto de vivas discussões empenhadas na imprensa. Não é meu propósito aqui aumentar o número dos incruentos contendores; mas, encarregado por vossa excelência de pintar o retrato de Arariboia e ao mesmo tempo sintetizar no quadro essa fundação, havendo procurado inteirar-me de quanto se tem escrito a este respeito, ouvindo pessoas que se consagram a esta ordem de estudos, entre os quais me felicito de apontar o dr. Vieira Fazenda, e tomando informações de alguns descendentes do valoroso cacique, ainda hoje moradores em São Lourenço, cumpre-me apresentar-vos o resultado a que cheguei para a composição de que submeti em tempo a vosso juízo os lineamentos.
A primeira habitação levantada neste município foi em São Lourenço, sobre a colina deste nome, durante o ano de 1573. Ali, na mesma ocasião, construiu-se também uma pequena capela de varas entrelaçadas e coberta de palmas, defronte da qual ergueu Arariboia um cruzeiro, que foi mais tarde substituído por outro de Cantarias de Lisboa, de onde veio com as portadas da velha igreja.
Foram esses os fundamentos da aldeia que veio a transformar-se na cidade de Nictheroy.
Essa aldeia, porém, nunca se estendeu para o litoral, subiu sempre a encosta, internou-se na floresta que sombreava o pequeno vale por detrás da colina e finalmente, em dias mais prósperos, espalhou-se pela fralda de montanha que se alteia ao fundo.
Seu fundador, o famoso índio a quem se principia a render a devida homenagem, era apenas nesse tempo um valoroso guerreiro, inteligente, conservando seus hábitos primitivos em toda a plenitude, porque vivia entre selvagens e entre eles combatia com as mesmas armas que reteve até o combate de Cabo Frio, quando, em recompensa de seus extraordinários serviços, lhe foram dados um rico costume de uso do próprio rei, condecorações e armas diferentes.
Do que acima fica dito, se concluirá que não devo pintar o retrato de Arariboia com estas roupas que ele não podia vestir no dia em que fundou Nictheroy, por quando nessa época, ele ainda não as possuía.
Seria grotesco, descabido, inadmissível mesmo, acreditar-se que Arariboia quebrasse o seu terrível arco, despedaçasse suas temíveis setas, para empunhar a espada que ele não sabia manejar, ou mesmo algemasse seus rápidos movimentos, tirasse a liberdade de seus membros de aço, prendendo-os dentro de um gibão agaloado e de calções bordados.
Assim vestido, Arariboia seria facilmente vencido por seu terrível adversário, porque nem mesmo o movimento lento e sutil da cobra lhe restaria, esse movimento, esse rastejar de seu corpo sob os arbustos da floresta, caminhar de cobra em busca da presa que lhe deu o nome de Arariboia (cobra terrível).
Arariboia sempre venceu pela surpresa, sempre caía sobre o inimigo quando ele menos esperava. Só raras vezes o procurou, sendo uma delas a última investida contra os franceses, depois de receber o reforço de trinta soldados portugueses que traziam armas de fogo.
É sabido que o nosso selvagem venceu sempre pela astúcia, pela surpresa. O silêncio de suas armas, o andar cauteloso com que ele procurava os inimigos, constituem a sua grande superioridade.
Como admitir que Arariboia fosse deixar-se manietar com os custosos costumes portugueses, tendo de bater-se com os terríveis e valentes tamoyos que preferiam a morte, o extermínio completo, à falsa liberdade com que lhe acenavam não só os franceses, como também os portugueses?
Como caminhar através da floresta de botas, de calções? Como caminhar arrastando-se pelo solo sem produzir o menor ruído no silêncio da noite, trazendo à cintura, a grande espada de copos caprichosamente lavrados, trazendo sobre o corpo uma roupa de Rei?
O Arariboia que temos que representar, que temos que deixar à posteridade, é o índio fundador de Nictheroy no seu ambiente, com seus próprios costumes e caráter, não esta figura grotesca e anacrônica de um selvagem enfiado em roupas de veludo, bordadas a ouro, talhadas para um corpo já deformado pelos hábitos de povo civilizado e não para o seu que conservara a linhas fortemente acentuada do homem que vive em plena liberdade, fortificado pelo exercício, colorido pelo Sol. Seria mesmo faltar com a verdade, pintar seu retrato vestido a Luiz XIII nessa época.
De leitura em leitura, de informação em informação, pude reconstruir a cena da fundação de Nictheroy, minha terra natal. Vejo-a naquela época como se ante os olhos eu tivesse uma reprodução do natural.
Tudo era ainda deserto no extenso litoral. A natureza ainda não profanada pela mão do homem, ostentava-se em toda pujança de sua beleza sem igual. O teto colmado de uma cabana, a tênue espiral de azulado fumo não se via em toda a extensão da enorme praia mansamente batida pelo mar; a Armação era ainda uma ilha separada do litoral por um estreito vadeável nas marés baixas.
Um observador ali colocado, olhando para o nascente, veria Nictheroy, que hoje se chama São Lourenço, entre o agrupamento de ilhas; e ao fundo a extensa e recurva praia terminar na base da colina, que tinha a cavaleiro a alta montanha. As águas ali eram mansas como as de um lago, morriam na praia ainda livre, sem onda, refletindo em seu espelho, a paisagem com toda a sua beleza selvagem. Foi esta alta montanha atalaia esplêndida que atraiu.
Arariboia. Lá do alto, a estátua bronzeada do índio a destacar-se no céu de um azul puríssimo, devia ser imponente, ele o selvagem valoroso devia achar-se bem sobre tal pedestal, digno do seu valor físico e moral.
Perspicaz, como todo o índio, Arariboia não poderia abandonar esta natural atalaia, do alto da qual ele podia vigiar o inimigo, acompanha-lo em sua marcha por todo o litoral, e impedi-lo de cair de surpresa sobre a aldeia que ia fundar para que, satisfazendo o desejo de Mem de Sá, fossem ele e os seus, os defensores desta outra banda da baía de Guanabara, sem rival no mundo inteiro.
Mais abaixo em pequeno vale vicejava frondosa floresta que subia a encosta de uma pequena colina, em cujo lado oposto morria no mar.
Foi sobre esta colina, que tão junto fica da esplêndida atalaia, de que tanto devia necessitar Arariboia, que ele plantou como penhor de sua fé, como garantia de sua fidelidade, o emblema da religião de Cristo.
Foi sobre esta colina, então verdejante, coberta de árvores seculares, que ele, o valoroso índio enterrou a primeira estaca de um cabana, cobriu de colmo o primeiro teto, erigiu o primeiro templo sobre cujos alicerces, mais tarde, ergueu-se a igreja que ainda hoje lá branqueja as suas ruínas.
Era um dia claro de sol, dia de festa. Todos os selvagens reunidos pela mesma fé, pelo mesmo interesse, transformaram-se em obreiros para auxiliar seu chefe na fundação da aldeia, entre os sons de seus instrumentos selvagens e de seus gritos de alegria.
É este momento que escolhi para representar na tela que me encomendastes: a figura de Arariboia no primeiro plano implantando a cruz; ao fundo a borda selvagem que ergue o primeiro templo, e a primeira casa e, enquadrando a simbólica cena, a natureza esplêndida fechada pela alta montanha sobre cujo cume, quantas vezes não se viu, a destacar-se no céu dourado pela luz do sol nascente, a varonil figura do fundador.
Antonio Parreiras. Nictheroy, 22 de Novembro de 1907.
SÉRIE: ARARIBOIA DE PARREIRAS
01 - Introdução
02 - A Encomenda e as Primeiras ideias do pintor
03 - O Contrato
04 - A Cidade Dividida
05 - Fundamentos para a Composição, por Antonio Parreiras
06 - Carta Aberta ao Insigne Pintor Antonio Parreiras, por J. A. da Silva
07 - Petição pede ao prefeito que não aceite o quadro de Parreiras
08 - O Quadro segundo Manoel Benício
09 - Surge Nictheroy, crítica de O Paiz
10 - O Quadro de Antonio Parreiras, por Rubens Barbosa
11 - Manoel Benício responde a Rubens Barbosa
12 - Parreira responde aos críticos
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