Aproveitando uma bela manhã, atravessamos a baía e fomos surpreender o pintor Antonio Parreiras em seu atelier em São Domingos. Como era de esperar, encontramo-lo palheta em punho a trabalhar no seu grande quadro "Arariboia - fundação de Nictheroy", encomendado pela Prefeitura.
Pedimos ao grande mestre que não interrompesse o seu trabalho. Era um gosto vê-lo trabalhar, que facilidade pasmosa! Que firmeza de mão! Com que facilidade ele acha o tom que quer em uma palheta que tem apenas cinco tintas!
A calma, a suave luz, que brandamente descia da claraboia, iluminava o grande atelier, predispunha-me a um recolhimento quase que absoluto e um afastamento completo da vida material.
Lá fora, no grande jardim, nas grandes árvores que rodeiam o atelier, cantavam cigarras, gemiam rolas que ali vivem em completa tranquilidade aos bandos. Que adorável retiro!
Na parede do fundo estava a grande de tela, já emoldurada, afinando admiravelmente com a pintura que surge dela seus destaques bruscos e vai-se avigorando-o gradativamente para o centro, onde se ergue a figura imponente, característica, vigorosa, enérgica de Arariboia. Um metro e oitenta centímetros mede essa figura.
Embora rodeada por outras, ela domina de tal forma, que, as torna secundárias, embora sejam elas também belas e rigorosamente pintadas.
A admirável figura de Arariboia encerra nos seus traços enérgicos todos os característicos da raça que ele sintetiza, podendo ser tomada sem receios como tipo perfeito do nosso selvagem, até hoje tão raramente dado com grande segurança e com tão extrema verdade.
O corpo dessa figura, musculoso, sem a preocupação exagerada de anatomia, é modelado largamente, e está firmemente plantado, corretamente desenhado, e é grandioso, sublime na atitude.
O que, porém, mais encanta nessa figura é a expressão de energia, de altivez, de nobreza do gesto. Só esse gesto, como bem disse o Dr. Oliveira Lima, nosso ministro em Bruxelas, e notável homem de letras, levaria Arariboia à posteridade, se para isso já não fossem suficientes os seus gloriosos feitos.
Raras vezes um herói selvagem tem tido assim tão genial compostura física, tão ampla representação moral.
Não é uma figura espetaculosa, é necessário preparo para compreende-la, embora na procura da expressão não fossem sacrificadas as belezas relativas dessa raça pura.
Para se pintar uma figura assim, característica, só se possuindo profundos conhecimentos da sua raça e tendo-se estudado muito e muito observado.
O estudo, a cópia mesmo de um só tipo isolado dessa raça, nunca seria suficiente para produzir um conjunto completo, como aquele que encerra a esplendida figura do quadro de Parreiras.
A figura de Arariboia não é, nem devia ser somente um retrato. Mesmo que houvesse uma boa gravura do índio Arariboia, copiá-la servilmente seria obra de um operário, e não de um artista, pois que a essa cópia faltariam a expressão, o sentimento. Seria o retrato puramente físico de um indivíduo, sem preocupação alguma do seu caráter moral.
Felizmente, a Prefeitura soube escolher e encarregou de fazer o quadro um artista de conhecida probidade, que, desprezando as comodidades e irresponsabilidade de fazer uma cópia, fez uma obra séria e de grande valor histórico.
Se a inspirada figura de Arariboia merece tantos aplausos, e tanto brilho vem juntar ainda ao renome do seu autor, não merece menos a elevação moral que presidiu a composição do grandioso trabalho de Parreiras.
É uma composição sóbria em seus atributos, severa em sua linha, ampla, clara e precisa no seu conjunto, de uma simplicidade rara.
Nessa composição não é só o pintor valente, o poeta que se impõe; não é só o artista inspirado que nela se manifesta, é também o homem ilustre e muito lido que amplamente se revela. Não se produz uma obra assim, forte em todo o seu conjunto, assim subjetiva, assim sintética, possuindo-se apenas um preparo comum. O quadro, além de possuir a figura de Arariboia, sintetiza também a fundação de Nictheroy. Imagina-se logo que esse quadro deve ter umas casinhas de sapê, uns índios carregando materiais, uma igreja rústica. Nada disto ele possui.
Mais elevada e mais sintética compreensão de arte e do assunto teve o pintor; fugiu, e fez muito bem, dessas vulgaridades. Ao fundo, perdendo-se em tons leves, esbatendo-se num céu de uma bela tarde, os muros de São Lourenço, fundem-se num ambiente de ouro.
Embaixo, a floresta, também afastada, também envolvida, na poeira dourada, e na orla dessa, índios que erguem um cruzeiro, cena esta que sempre precedia a fundação de um aldeamento.
No primeiro plano, o agigantado chefe, o índio valente, tendo aos ombros uma pele artisticamente atirada, firme, imponente sobre as fortes pernas, braços cruzados, olhar altivo, manda que um selvagem erga o esteio principal da sua cabana. A seu lado, uma índia, forte também, cheia de vida, denotando a fecundidade nas opulentas formas, atenta observa o herói, sob cuja proteção meigamente se abriga.
A sua mão repousa sobre um vaso selvagem.
Que se pode imaginar de mais simples, de mais sugestivo, de mais natural? Não estão ali representados - a religião, a família, o lar, o povo?
E tudo isto se enfexa magistralmente na atitude, na expressão do gesto de Arariboia. Ele parece dizer - Surge Nictheroy!
Coluna Artes e Artistas de O Paiz, em 29 de novembro de 1909
SÉRIE: ARARIBOIA DE PARREIRAS
01 - Introdução
02 - A Encomenda e as Primeiras ideias do pintor
03 - O Contrato
04 - A Cidade Dividida
05 - Fundamentos para a Composição, por Antonio Parreiras
06 - Carta Aberta ao Insigne Pintor Antonio Parreiras, por J. A. da Silva
07 - Petição pede ao prefeito que não aceite o quadro de Parreiras
08 - O Quadro segundo Manoel Benício
09 - Surge Nictheroy, crítica de O Paiz
10 - O Quadro de Antonio Parreiras, por Rubens Barbosa
11 - Manoel Benício responde a Rubens Barbosa
12 - Parreira responde aos críticos
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