O conhecido homem de letras e meu particular amigo Rubens Barbosa, em cuja mão toda Malat vibra, e exigindo reflete iluminações fascinantes, destoa do juízo da maioria dos fluminenses, e da imprensa, a respeito do quadro de Parreiras "Fundação de Nictheroy".

Elegi, como não podia deixá-lo de fazer, o valor artístico da tela, gaba o mérito real do artista que o fez, mas renega o quadro em sua organização ideal, por ser alegórico, anacrônico e não obedecer, o autor dele, a "ordem" que recebeu oficialmente, de reproduzir o retrato de Arariboia.

Ora, é o próprio Ricardo que confessa que o retrato único de Arariboia, conhecido, foi imaginado e feito em 1866, isto é, cerca de 300 anos depois da existência do original. Outra noção fotográfica nos termos do famoso índio, e os historiadores que a ele se referem nem uma só menção, aludem a seu porte, fisionomia e outras qualidades fisiológicas.

Litografia que representa Arariboia, publicada em 1866 na Coleção Brazil Histórico, em 1866. (Biblioteca Nacional)
O retrato pois, é uma alegoria, sem arte em si, falsa em todo seu fundamento, pois nem é ao menos, lendário como o de Nero ou de Simiramis, o ou, de Moises, etc.

Ele é uma criação de 1866 para cá, e uma lenda não se forma nem se concentra na história de um povo em meio século.

Devemos notar que um artista de nome e de fama universal, como Parreiras, tem reputação a perder e conhecimentos históricos de que não é legítimo descrer.

Ele não é uma maquina fotográfica e, até quando se dedica a retratos, deve estudar a verdade das roupagens, do gestos, da atitude, da impressão dos seus originais.

Esta verdade não existe, na espécie de caricatura ordinária que devia servir de ponto de referência ao retrato, de quem não deixou outros traços de sua vida senão seus feitos famosos.

Como reproduzir pois, o fundador da aldeia de São Lourenço, em retrato?

Era falsear a verdade, e a "letra da lei", que o distinto escritor se refere, não existe, como não existe o tal retrato de Arariboia aceito já pela tradição. Este que por aí anda, já dissemos, vem de 1866, e, somente há cinco anos, tem se reproduzido em jornais e avulsos.

Tão pouco o Conselho Municipal não limitou (e bem podia limitar) a esfera da concepção do artista.

Seria o "ne sutor ultra crepidam" das posturas municipais.

O Ricardo como mavioso e inspirado poeta que é, bem sabe que se alguém lhe pedir uns versos, indicando-lhe o tema, limita a sua inspiração somente quanto a tese em si, mas nunca quanto à modalidade e o gosto de concebê-la e tratá-la em rimas ou versos brancos.

Não é, também, o Parreiras um grande poeta, como Ricardo?

Assim, a um e a outro, cabe a escolha da concepção "recomendada", e fazê-la ou idealizá-la de jeito a não mentir nem à historia, nem à arte, nem à inspiração.

Mas do que todos os Conselhos municipais do mundo, têm os artistas o dever de não errar, antes de corrigir os erros e enganos dos outros, para salvaguardarem os seus nomes subscritos nas produções a que dão lume.

Parreiras fez o que o Conselho Municipal lhe pedira.

Um retrato.

Isto é, uma mentira histórica, sem buço ao menos de lenda ou tradição, mas um trabalho de pincel de mestre.

Ele bem viu que o artista é também um historiador.

Um índio vestido a medievo ou de casaca não é índio. Quando muito, o quadro será admirável, mas a verdade dele falece.

Foi assim que teve de recusar depois de ouvir mestres, de viajar e de participar ao Conselho Municipal a sua resolução.

Este ficou de acordo com as explicações do mestre. Entretanto, o retrato lá está em seu atelier.

Como arte nada temos a dizer.

Quanto ao mais, é indigno e incinerável.

Parreiras por si só, não conceberia semelhante monstruosidade histórica, e o próprio Arariboia, se ainda vivesse, botaria as mãos no ventre nu e cairia n'uma gargalhada tremenda, ao ver-se daquele jeito reproduzido.

O precioso crítico do quadro de Parreiras diz ainda, pelas palavras seguintes, que há "disparidade cronológica" (anacronismo) nos planos do quadro:

"Colocar a figura homérica do índio invencível ao lado da construção da igreja dos caboclos, no antigo morro do mesmo nome, e hoje de São Lourenço, quando entre a morte de Arariboia e a criação do modesto templo medeiam dezenas de anos, não é querer reproduzir história, nem lenda, mas apenas revestir de poética e artística alegoria, o vulto de maior destaque entre os grandes cabos de guerra brasílicos, ao serviço dos governadores da soberba e encantadora terra de Santa Cruz."

Em geral nos quadros históricos nunca há anacronismo, assim como nas tragédias, dramas, etc. O artista tem necessidade de aproximar as datas de acordo com os planos de sua concepção, sem que se possa alegar seja esta uma alegoria.

Demais, na tela do Parreiras, as relações histórico-cronológicas se incorporam dentro da época dos acontecimentos capitais da "Fundação de Nictheroy".

Temos a figura de Arariboia, sublime e dominadora, ordenando, pela atitude, que os seus plantem a primeira estaca da fundação da cidade.

No fundo, à direita n'um "longe esfumaçado", o perfil das ocas selvagens que vão desaparecer com a construção das casas modernas.

Não mais cabanas principiam as edificações de barro e telha.

O paganismo índio cede, também, perante o cristianismo simbolizado na primeira cruz que se levanta ao fundo.

Não há disparidade histórica neste fato.

O índio aldeado pelos jesuítas começou a edificar sempre e sempre a sua igrejinha ou capela, ao tempo que levantava o esteio da taba.

Em 1627, já se batizava na igreja de São Lourenço, certo de que ela já estava anteriormente edificada.

Se a história não pode precisar o dia de sua instalação no morro dos caboclos, a ninguém é justo duvidar que ela fosse ali plantada em vida de Arariboia (1673), pelos jesuítas seus catequizadores.

Não há, pois, alegoria nem disparate cronológico no quadro "Fundação de Nictheroy", do Parreiras.

Ela é uma tela magistral em todos os princípios e conceitos de arte, impecável pela sua verdade histórica e seja bendita a hora em que ficou resolvido ao grande artista não ter dado cabal desempenho à "encomenda do Conselho Municipal".

Isto, posto, o grande poeta e escritor fluminense perdoe-nos o cavaco gracioso que aqui fica.

Manoel Benício.

O Flumienese, 22 de dezembro de 1909.

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Publicado em 16/08/2021

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