Em outubro de 1973, os vizinhos do número 139 da praça Getúlio Vargas, em Icaraí, que por mais de uma década se acostumaram com o movimento no entorno da casa onde funcionou o icônico Le Petit Paris, restaurante que viu crescer artistas como Sérgio Mendes, MPB-4, e se despediu de Ciro Monteiro, encontraram apenas um terreno baldio, resultado de sua demolição para a construção de mais um arranha-céu, o "moderno" Edifício Modigliani.

Numa casa de dois quartos e uma varanda, o Le Petit Paris, ou apenas 'Petit' para os frequentadores mais íntimos, que já funcionou também como bar, boate e local de pocket-show, nasceu, no ano de 1959, de uma iniciativa de amigos comerciantes: Rubens Ferrah e o casal francês Brigitte e Raimund Duquesle. A casa transformou-se, logo, em ponto obrigatório de encontro de jovens moradores do bairro e, como encerramento de noite, dos boêmios, musicistas e compositores, muitos deles, sem poder entrar, se aglomerando na porta.

Passou a ser também o local preferido por estudantes universitários, professores e políticos para debates e discussões dos assuntos da atualidade. Foi "sede social" do Clube de Imprensa, que promovia mensalmente um almoço que era dos mais concorridos da cidade, passarela de inúmeros desfiles de moda, e entre seus ilustres clientes, estava o jogador Zizinho. Entre as mesas, passeava o Ananias oferecendo botões de rosas.

"No início, o próprio casal francês preparava a comida, por sinal muito gostosa", comenta o baixista niteroiense, e frequentador assíduo, Tião Neto. Segundo ele, "a mousse de chocolate de Brigitte era algo de sensacional, além de todos os pratos, incluindo a comida brasileira, que também fazia parte do menu".

Rubens Ferrah lembra que o restaurante era o único de cozinha francesa na cidade e foi também onde a MPB fez história. Só que, na cidade, muitos pensavam que ali era um rendez-vous, e as moças de família não podiam nem passar perto. A dupla fechou a casa, que reabriu em julho de 1960, tendo como dono Ildefonso Baldran, figura bastante conhecida nos meios hoteleiros do Rio de Janeiro, ex-arrendatário dos clubes Monte Líbano, Caiçaras e Botafogo. Em 1961, o novo dono equipou o restaurante com um novo piano, instrumento que acompanhou o início de carreira de Sérgio Mendes.

Em 1962, nova troca de comando. Ildefonso deixa a casa que passa a ser dirigida por Nair Moraya e "Le Petit" Felix Louis Jonas, antigo maitre da casa. Em 1964, foi inaugurada a Boate, com decoração de Marcílio Pinto. Em 1967, a casa realizou obras de modernização e anunciou o novo maitre, Ulisses Monteiro, e Jonas Machado como chefe de cozinha. No ano seguinte, o icônico artista Adolpho Carvalho, catarinense radicado desde os 11 anos em Niterói, pintou um grande painel como motivo francês.

Apesar dos inúmeros boatos anunciando o fim do 'Petit', em outubro de 1970, Lacerda reformou a casa, com nova decoração estilo parisiense, um novo sistema de som e iluminação "tranquilizante". Mas a movimentação da casa começava a incomodar moradores de um bairro que crescia verticalmente, aumentando exponencialmente o valor do metro quadrado.

Já em meados de 1972, José Augusto Tanus, o Canela, então proprietário do Petit, recebera uma notificação do proprietário do imóvel, Sr. João Martins dos Santos Filho, que havia sido feita uma transação no imóvel, alienado ao grupo da Imobiliária Paz Limitada. O imóvel que abrigou por 13 anos o Le Petit Paris, fechado em dezembro daquele ano, ainda ficou quase um ano em pé, só restando a lembrança da boa época em que, como casa comercial, recebeu a presença de tantas pessoas que se projetaram nacional e internacionalmente.

Canela por muitos anos guardou como lembrança um velho piano, um violão de Ciro Monteiro "e a saudade do falsete de Agostinho dos Santos, companheiro de muitas noitadas."

O Petit musical

E foi justamente Tião Neto quem levou Sérgio Mendes para tocar organete, e, em troca, cada um recebia dois cuba libres. Para ouvidos mais atentos, o talento do tecladista niteroiense já se revelava, sem que ninguém pudesse definir exatamente as perspectivas de seu sucesso. Foi um período passageiro, porque alguns anos depois ele embarcava para os Estados Unidos levando a imagem de sua origem, um eterno jovem. Com ele seguiu o Tião e o baterista Chico Batera, também frequentador do Petit, e que 30 anos depois viria a se tornar cidadão niteroiense. Batera comenta que encontrou no Petit um ambiente moderno, com muito jazz, poesia concreta e arte contemporânea, que só encontrou anos depois no Village, em Nova York.

Segundo Tião Neto, alguns músicos de jazz tocavam lá e depois iam acabar a noite no igualmente lendário bar Bottle's, ou no Little Club, do Beco das Garrafas, em Copacabana. "Eu levava um violão pra lá e ficava tocando na varanda. Depois, eles levaram um piano e quem quisesse poderia tocar", lembra o músico. "Toda noite, eu e o Sérgio Mendes íamos ao Petit. Quem estava sempre lá era o pessoal do Rio Sailing Club, quase todos ingleses, o pessoal de letras, intelectuais e um baixista chamado Silveira". O também baixista Alex Malheiros, do lendário grupo Azimuth, gosta de lembrar os tempos em que Silveira compunha canções no Petit. "Vi sendo feitas, na minha frente pela primeira vez, harmonias de alto refinamento", diz.

O garçom Antônio Vicente Rodrigues, lembra bem daqueles dias e comentou emocionado: "Tenho muitas saudades daquele lugar e daquele tempo. Ô época boa! O Sérgio Mendes era meu chapa e foi ele quem me apelidou de 'Titio'. Ele não bebia quase nada e andou fazendo dieta. Era só chegar e me dizia que estava morrendo de sede, já sabendo que um copo com coca cola, gelo e limão chegaria "voando" à sua mesa. A dieta era um filé sem sal com batata cozida, que ele devorava". Titio lembra que o segundo dono, o falecido Félix Jonas, era um sujeito baixinho, "de veneta", cujo humor variava muito, mas o caráter era dos melhores. "Sempre me dei bem com ele e com os fregueses".

Sérgio Mendes voltou à casa em junho de 1968 com os integrantes de sua banda Brasil-66, esticando a noite após uma apresentação no Theatro Municipal de Niterói.

Outros Sucessos

Integrante de um grupo de serestas chamado Trio Itaipu, ao lado de dois colegas de universidade, Gilberto e Gerardo, Rui Faria queria uma vocalização mais moderna e se desligou do grupo, unindo-se aos também niteroienses Magrão, Miltinho e Aquiles. Surgia então o quarteto MPB-4, que teve sua "estreia mundial", justamente no Le Petit Paris.

Já demonstrando algum talento, o conjunto vocal ainda fazia apresentações sem despertar interesse comercial entre os empresários cariocas que apareciam em Niterói. Somente após o primeiro contrato remunerado, para apresentações noturnas no Petit, foi que o MPB-4 deu o impulso inicial para o sucesso. Os jornalistas que frequentavam o restaurante cuidaram de sua promoção e o cronista Sérgio Porto sugeriu a mudança de nome "porque parece mais prefixo de trem da Central".

"Foi em 1963 e 1964 que a gente ia muito lá, um ponto de encontro da vanguarda da época. Era um lugar simpático, onde íamos pra jantar. Aliás, fomos nós que inventamos de cantar lá, e depois a moda pegou", conta Miltinho. "Éramos amadores e onde houvesse mais de duas pessoas a gente soltava a voz, fazia um show improvisado, pra mostrar nosso trabalho", completa Rui. Foi lá que surgiu, por exemplo, a primeira peça que o grupo fez, com o ator Carlos Vereza.

Danilo Caymmi

Houve um tempo, antes da Ponte, em que o compositor Danilo Caymmi saía de Copacabana, pegava um ônibus, a barca até Niterói e mais um ônibus até Icaraí para tocar com os amigos nas tardes de domingo. Todo esse trabalho em troca de um sanduíche de queijo e um refrigerante. Com sua flauta e ao lado de outros tantos destaques da MPB, como Geraldo Carneiro e Ronaldo Bastos, ele mostrou muitos de seus acordes do lado de cá da baía. No 'Petit', compôs com Bastos, a canção "Alvear", uma homenagem a uma sorveteria de Icaraí, onde, segundo a letra, os compositores iam tomar sorvete e manga.

"O Petit Paris foi o primeiro lugar onde eu toquei na vida", contou Danilo Caymmi ao jornalista Ney Reis, do Jornal do Brasil. "Eu tinha uns amigos que moravam em Niterói e a gente se encontrava no bar para levar um som. Além da música, a gente acabava arranjando umas namoradas, umas meninas que iam nos ouvir e ver", relembrava Danilo com saudade. Seu depoimento mostra bem o clima reinante no lendário bar e restaurante: descontração, música e paquera.

Mais ou menos na mesma época, о hoje, mundialmente conhecido percussionista Naná Vasconcellos dividia com outros músicos garrafas de batida de limão e tirava sons de percussão no caramanchão da Praça Getúlio Vargas, em Icaraí, até o dia clarear.

Outra Fase

Depois de passar por vários proprietários, o Petit teve, no período de 1969/70 uma fase ruim. Seu então proprietário, Roberto Lacerda, conhecido por 'Andarilho', não teve outra alternativa senão, com ajuda de Zizinho, conseguir a presença de Ciro Monteiro, quase que todas as noites, para atrair pessoas de todas as gerações. O Formigão não tinha muito trabalho: era só sentar numa mesa qualquer e dizer seus sambas, ritmados numa caixa de fósforos.

A casa voltou a encher e o movimento atraiu outros artistas, como Marília Medalha, Cláudia, Chico Buarque, Helena de Lima, Nelson Panicali, entre muitos outros. O restaurante tornou a mudar de dono, mas Ciro Monteiro não deixou de frequentá-lo. A niteroiense Bernadete Dinorah, hoje nacionalmente conhecida como Baby do Brasil, era frequentadora do 'Petit', para, segundo ela mesma, "absorver a alma dos papas da Bossa Nova que frequentavam o local".

Uma Surpresa

Com a ilustre presença do cantor Agostinho dos Santos, em maio de 1969, Lacerda inaugurou nova decoração, rebatizando a boite com o nome 'Maloca'. A noite contou com a presença ilustre dos craques de futebol Ademir Menezes, Telê Santana, Orlando Pingo de Ouro, além é claro, do "sócio" Zizinho.

Agostinho dos Santos, além de se apresentar cantando, periodicamente participava das peladas que os bares noturnos promoviam na areia da praia de Icaraí após o encerramento das atividades. Um dia ele levou ao Petit um moreno acanhado, vindo das Minas Gerais, sem dinheiro e com medo do barulho e da poluição. Agostinho pagou-lhe o jantar e deu Cr$15 para ele alugar uma roupa a fim de se apresentar no Festival da Canção.

O cantor reuniu seus amigos num galpão nos fundos do restaurante para a apresentação de seu convidado, revelando que ele havia inscrito três músicas no festival. O caipira não queria cantar temendo que alguém roubasse suas composições. No dia do festival estourou: Travessia, Morro Velho e Maria Minha Fé. O convidado de Agostinho era ninguém menos do que Milton Nascimento.

Depoimentos para Ney Reis, do Jornal do Brasil

O lugar onde hoje está o Edifício Modigliani, de luxo, atraía adolescentes rebeldes, como a professora de Física da UFF, Camila Morato, 36 anos. "Eu ia ao Petit desde os 16 anos. Dizia pro meu pai que ia dar uma volta na Moreira César e aparecia no bar. Ele descobria e me tirava de lá à força. Eu, é lógico, ficava danada da vida", lembra ela sorrindo.

Hélio de Castro Júnior, engenheiro da Petrobras e namorado de Camila, também frequentava o Petit Paris, mas ficava só "olhando os outros se divertirem, pois era estudante e não tinha dinheiro para 'entrar naquele lugar meio simples, meio sofisticado', para usar uma expressão sua.

O dentista Claudio Costa Carvalho, 45 anos, irmão do baixista Tião Neto, era outro que não saía do bar. "O Petit era nossa terapia", lembra.

Imagem de capa, do arquivo de Ângela Vasconcellos Ramos.


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Publicado em 01/10/2024

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