Capítulo 26 da Série "A Niterói que eu vi e a que viram meus avós", de Romeu de Seixas Mattos

O Largo do Chafariz ficava na base do Morro de São Lourenço. Do Morro de São Lourenço, centro pioneiro de vários acontecimentos históricos de nossa invicta cidade, devem ter-se irradiado os principais elementos da nossa evolução.

Possuindo nas suas encostas várias fontes de considerável rendimento foi, no caso da evolução do abastecimento d'água, o centro primordial desse advento.

Assim também, sob o ponto de vista de urbanismo, essa predestinação histórica, aliada aos fatores de coesão social, ter-se-ia repetido, surgindo aí o primeiro centro urbano da cidade nascente, a célula embrionária do nosso urbanismo.

No caso do abastecimento de água consideramos a Bica dos Caboclos - fonte que alimentou o núcleo de aborígenes cristianizados, sob a chefia do cacique Arariboia - a célula embrionária de nossas captações d'água e quando esse núcleo, liberto dos perigos das emboscadas, desceu do morro e irradiou-se pela planície, surgia aí o primeiro centro urbano, a célula, embrionária de uma cidade que nascia, trazendo as características heroicas do seu fundador.

O nome de "Largo do Chafariz" indica claramente a influência da água como fator de coesão social que atuou nesse caso.

A princípio, provavelmente o ponto de tomada da água deve ter tido origem numa desaparecida fonte, cujo remanescente, que chegou aos nossos dias, foi um olho d'água que existiu no quintal da desaparecida Cocheira da Empresa Funerária, não constituindo esse olho d'água um chafariz propriamente dito.

A cocheira da Empresa Funerária ficava na esquina da Rua de São Lourenço com a antiga Rua Diamantina (atual Marquês do Paraná).




Passando por aí o antigo litoral que existiu em 1568 (para mim a verdadeira Praia Grande, no meu modo de pensar) essa fonte que naquela época deveria ter muito mais água, em virtude da abundância de matas que desapareceram, talvez tivesse fornecido água às primeiras embarcações que aportaram na baía, o mesmo acontecendo à também desaparecida fonte que ficava em frente à Igreja de Nossa Senhora da Conceição, na estrada para São João de Caraí, ponto igualmente localizado à beira-mar de então, que abasteceria com facilidade os navegantes.

Crescendo as necessidades do consumo de água e diminuindo o rendimento da fonte, com a derrubada das matas, as circunstâncias modificaram-se, exigindo nova modalidade na solução do problema.

Desde os primórdios da humanidade que existem no problema do abastecimento d'água os três elementos constitutivos: a fonte, o transporte e o consumo.

No caso do homem primitivo (aqui, os tamoios e temiminós) eram empregadas as conchas das mãos, naturalmente, como elemento de transporte, até que apareceram os vasilhames diversos, como o copo e o cantil (que também serviram para o transporte da água que passarinho não bebe).

Evoluindo, provavelmente fizeram primeiro uma instalação rudimentar com aquedutos de madeira, de telhas, canalizações de taquaraçu, bambus e umbaúbas, instalações que ainda hoje vemos nos acampamentos de escoteiros, manobras militares e canteiros de serviços de engenharia, obtendo assim o elemento embrionário de um chafariz, para utilizar as águas de uma fonte mais distante, e assim aproveitaram parte da água fornecida pela fonte que posteriormente veio a pertencer ao Conselheiro José Caetano de Andrade Pinto.

Passaram-se os tempos, o núcleo de população cresceu através de uma vida vegetativa, até que Junot invadiu Portugal, provocando um reflexo de progresso nesta Banda de Além.

Transmigrada para o Brasil, a Corte Real Portuguesa, realizados o desfile de tropas lusitanas e o beija-mão de D. João VI no Campo de Dona Helena, criada a Vila Real da Praia Grande e apresentado, por José Clemente Pereira, em 5 de fevereiro de 1820, à aprovação de D. João VI, o plano de arruamento da cidade (então vila), cogitava este do chafariz e respectivo largo, conforme se encontra no seguinte trecho contido a fls 64 das Notas para história de Niterói, de Mattoso Maia Forte: "Mencionava também o local para o matadouro, na entrada de São Lourenço, e do chafariz, no largo da Detenção, praça onde foi construída a gare (ou oficina) de carros da companhia Cantareira".

Como se vê a cidade tecnicamente se urbanizava e cuidava de um chafariz para abastecimento de água no local.

No Tomo II de Legislação Provincial do Rio do Janeiro, de 1835 a 1850, páginas n.º 84 e 85, encontra-se o seguinte:

"Não sendo a água que alimenta o chafariz da estrada de São Lourenço, nesta cidade, cedida pelo Conselheiro José Caetano de Andrade Pinto para uso público, suficiente para abastecer os habitantes da mesma cidade, sendo de manifesta utilidade pública a desapropriação da outra metade, que para seu uso reservara o mesmo conselheiro, hei essa utilidade por verificada a vista das informações que me foram (ilegível) a da respectiva planta, por desapropriada a mesma metade d'água, à exceção de um anel dela que fica reservado para uso do dito conselheiro. Hei igualmente por desapropriados doze palmos do terreno de cada lado ao aqueduto do sobredito chafariz, em toda a sua extensão que corresponde a duzentos e dezenove braças, contadas desde as vertentes até a grota do arco grande do mesmo aqueduto, ficando em roda do açude e das ditas vertentes desapropriado o mesmo espaço de doze palmos. Palácio do Governo da Província do Rio de Janeiro, 28 de abril de 1838. Paulino José Soares de Souza."

Abordando ainda o assunto - abastecimento d'água - encontra-se, nas páginas nº 309 e 310 do Tomo II acima referido, mais o seguinte:

"O Presidente da Província do Rio de Janeiro, atendendo a que é absolutamente indispensável e necessário que uma porção de terreno aos lados do aqueduto de São Lourenço em todo o seu prolongamento desde as nascentes d'água, seja plantada de arvoredos e contadas, a fim de que não diminua a água potável desse chafariz, o único desta capital, com as ardentias do sol e (ilegível) nas secas, tem deliberado em face do art. 1º da Lei n.º 17 de 14 de abril de 1835 desapropriar para o indicado fim somente todo o terreno que for indispensavelmente necessário para o plantio de arvoredos de um e de outro lado do aqueduto, o qual será determinado pelo chefe da 3ª Seção com audiência dos respectivos proprietários que ficarão com direito a indenização que for julgada. O fiscal da fazenda provincial fica encarregado de realizar esta desapropriação judicialmente, se o mesmo chefe não puder amigavelmente concordar com os desapropriados. Palácio do Governo da Província do Rio de Janeiro, 20 de março de 1844. - João Caldas Vianna."

Pelos dizeres destas duas leis de desapropriação verifica-se que:

a) Na época da desapropriação da segunda metade da água a ser fornecida, em 28 de abril de 1838, já existia o aqueduto de São Lourenço abastecendo diretamente um chafariz;

b) Esse chafariz era, nessa época, o único desta capital;

c) Naquela ocasião o nome de Largo do Chafariz não estava ainda vulgarizado para que pudesse servir de referência, tanto assim que mencionaram: a Estrada de São Lourenço, que nada mais era que um trecho da antiga Estrada para Santa Maria de Maricá que transformou, através dos tempos, em Rua Diamantina e, finalmente, em Rua Marquês do Paraná;

d) Na referida deliberação, o Presidente da Província faz alusão a uma planta; isso indica que o assunto estava sendo tecnicamente estudado, embora eu não tivesse conseguido saber qual o serviço realmente feito, pois não encontrei essa documentação, procurando orientar-me através dos remanescentes que ainda existem;

e) Em março de 1844 fizeram a desapropriação do terreno necessário para o reflorestamento da bacia hidrográfica e, uma vez que estavam estudando tecnicamente o assunto, é provável que a desapropriação tivesse atingido os divisores de águas, de modo que ficasse isenta de poluição e devidamente protegida a bacia hidrográfica;

f) Neste caso, tratava-se de desapropriar terras situadas dentro da sesmaria concedida ao índio Arariboia, cuja concessão foi feita mediante à condição de prestar servidão de caminhos, veeiros de pedras, fontes etc., enquadrado perfeitamente dentro dos dispositivos do art. 9º da Lei n.º 17 de 14 de abril de 1835, e não como em outros casos, nos quais era aplicado esse dispositivo legal em terras que depois verificavam estar fora da referida sesmaria.

A seguir, transcrevo ainda os seguintes documentos referentes à correspondência trocada entre a Câmara Municipal e a Presidência da Província do Rio de Janeiro, que nos fornecem alguns elementos para o nosso caso. Niterói era, então, administrada pela Câmara Municipal, porque o cargo de Prefeito somente foi criado em 1903, como sabemos. No exercício da função executiva, expedia a Câmara os ofícios abaixo:

"Ofício nº 61 - Illmo. Exmo. Sr. - vendo sempre sobras d'água no depósito edificado na chácara do finado Conselheiro José Caetano de Andrade Pinto, e parecendo maior conveniência que sejam aproveitadas tais sobras: a Câmara Municipal d'esta cidade resolveu mandar (ilegível) seu engenheiro proceder ao orçamento e planta de um depósito com capacidade necessária para conter 8.000 palmos cúbicos d'água e com uma pilastra no centro da praça do chafariz em São Lourenço, servindo essa água exclusivamente para as carroças que a vendem por esta cidade; cuja planta e orçamento tem a honra de submeter à consideração de V. Exa. que se dignará dar as convenientes ordens a fim de que tal construção seja levada a efeito em beneficio público. Deus Guarde a V. Exa. Niterói, 29 de julho de 1858 - Ilmo. Exmo. Sr. Conselheiro Antônio Nicolau Tolentino, Presidente da Província do Rio de Janeiro." Assinados (os Srs.) Galvão Júnior - Gomes - Castro - Baptista - Fróis - V. Gomes.

Vê-se, por este documento, que naquela data já havia sido construído o reservatório de 200m3 na chácara do Conselheiro, que o citado Conselheiro já era falecido, que nas instalações existentes havia um desperdício d'água diário de 8.000 palmos cúbicos, ou sejam 85m3.184, e que esse desperdício seria aproveitado pelas carroças que vendiam água pela cidade (já nessa época estava superado o conceito antigo de que a água, sendo um bem de todos, não poderia ser negada, nem comercializada).

"Ofício nº 65 - Illmo. Exmo. Sr. - A Câmara Municipal desta cidade, em resposta à portaria de V. Ex., de 23 de agosto último, que autoriza mandar construir o reservatório d'água na praça de São Lourenço; resolveu solicitar a V. Exa. se digne ordenar o devolvimento da planta, para ser presente aos pretendentes a arrematação da obra, cujo contrato ficará dependente d'aprovação de V. Exа.; гоgando bem assim a mesma Câmara a V.Exa. se digne expedir as convenientes ordens a fim de que seja paga a respectiva despesa pelos cofres provinciais. D.G. de a V.Exa. Niterói, 2 de setembro de 1858 - Ilmo. Sr. Conselheiro Antônio Nicolau Tolentino - Presidente da Prov. Assinado os mesmos Srs. do oficio nº 64 (Assinaram o oficio nº 64): (Os Srs.) Galvão Júnior - Gomes - Castro - Baptista - Fróis - Vicente Gomes.

Através deste documento, verifica-se que o Governo Provincial, por portaria de 23 de agosto de 1858, autorizou a construção do reservatório de 8.000 palmos cúbicos ou sejam 85 metros cúbicos e 184 litros, e que a Câmara pedia fossem dadas ordens para pagamento das obras respectivas pelos cofres provinciais e, bem assim, a devolução da planta para orientação dos executores do serviço.

"Ofício nº 69 - Ilmo. e Exmo. Sr. - A Câmara Municipal desta Imperial Cidade tem a honra de levar ao conhecimento de V.Exa. a cópia inclusa do contrato que celebrou com José Teixeira de Souza para a construção do depósito que deve abastecer uma pilastra que tomem água as pipas que a vendem por esta cidade; a Câmara julga que tal contrato foi feito com muita vantagem para os cofres provinciais, e que o arrematante oferece bastantes garantias para se esperar o exato cumprimento d'aquilo a que se obrigou. D.G. de a V.Exa. Niterói, 2 de outubro de 1858. Ilmo. e Exmo. Sr. Conselheiro Antônio Nicoláu Tolentino. Presidente da Prov. do Rio de Janeiro. (assinados os mesmos Srs. do oficio n.º 68A). Assinaram o oficio n.º 6A: (assinados os Srs.) Galvão Júnior - Gomes - Castro - Fróis - Tavares.

Nota-se no ofício n. 69 referência ao título de Imperial Cidade que os outros não contêm, título concedido a Niterói por D. Pedro II, pelo Decreto nº 3 de 22 de agosto de 1841, referendado por Cândido José de Araújo Vianna (Marquês de Sapucaí), equivalente ao título de Vila Real com que a distinguiu, vinte e dois anos antes, o avô D. João VI, pelo Alvará com força de lei de 13 de fevereiro de 1819.

Finalmente, transcrevo ainda o ofício nº 72 da Câmara Municipal de Niterói, ao Presidente da Província do Rio de Janeiro, relativo ao terreno da Casa de Detenção, o qual fornece alguns esclarecimentos para o nosso caso:

"Ofício nº 72 - Illmo. e Exmo. Sr. - Pelo Tesouro Nacional, foi remetida à Coletoria das Rendas Gerais d'esta cidade uma relação de possuidores de terrenos de marinhas, na qual figura a Câmara possuidora de uma que, em algum tempo, pertenceu a Luís José de Brum, sito no largo do Chafariz, em São Lourenço, cujo terreno lado do desapropriado pela Câmara, foi depois tomado pelo governo desta província para construir-se acomodações para os (ilegível). A Câmara Municipal d'esta Cidade resolveu submeter à consideração de V.Exa. as inclusas cópias do ofício do coletor das rendas gerais d'este município, da informação do seu procurador e igualmente da portaria de 8 de julho de 1842, a fim de que V.Exa. se digne solicitar do Ministério da Fazenda a expedição das convenientes ordens, em termos a ficar esta Câmara desonerada de tais marinhas. D.G. de a V.Exa. Niterói, 28 de outubro de 1858. Ilmo e Exmo. Sr. Conselheiro Dr. Tomas Gomes dos Santos - Vice-Presidente da Província do Rio de Janeiro. (Assinados os Srs.) Galvão Júnior - Gomes - Castro - Baptista - Fróis - Dr. Victorino - Vicente Gomes - Dr. França Júnior".

Por esse documento certificamo-nos de que o Largo do Chafariz vinha até em frente da Casa de Detenção, terreno esse de "marinhas", de propriedade de Luiz José de Brum, desapropriado mais tarde pela Câmara Municipal de Niterói e tomado depois pelo Governo Provincial, para nele fazer construir a Casa de Detenção.

Observa-se ainda, através dos documentos transcritos, que o reservatório chamado "de Vintém" é o reservatório menor, de 8.000 palmos cúbicos ou sejam 85m3,184, construído dentro do "Largo do Chafariz para abastecer as carroças (pipas) que vendiam água pela cidade e não o reservatório maior, de 200m3, situado dentro da chácara do finado Conselheiro Andrade Pinto, no morro.

Daí lhe veio o nome de "Vintém", porque esse era o preço cobrado por um barril de água (15l), conforme Deliberação provincial de 10 de janeiro de 1861, que sujeitou, por uma postura, os barris de vender água à aferição.

Cada um desses reservatórios - o maior de 200m3 e o menor de 85m3.184 - tinha uma placa de mármore, informando relativamente à data e outros detalhes da sua inauguração.

Infelizmente, porém, essas placas foram arrancadas, ficando os vestígios dessa retirada, principalmente no reservatório menor, que se achava em local bem visível.

Em 1924, quando atingi a chefia do Serviço de Abastecimento de Água de Niterói, encontrei o reservatório maior (de 200m3) ainda em pleno funcionamento e dele fazia uso, na distribuição d'água da cidade, quando havia oportunidade.

O reservatório menor (de 85m3.184) já encontrei perfurado, nele funcionando a oficina de ferreiro do Serviço de Águas.

Atualmente, o reservatório maior está completamente em ruínas, sem cobertura, e o reservatório menor serve de residência para empregado do Serviço de Águas.

Em 1911, quando entrei para o serviço da Prefeitura Municipal de Niterói, como topógrafo, e depois de ter feito alguns trabalhos, fui levantar a planta de algumas ruas em São Lourenço, verifiquei que a Rua do Indígena não chegava até a Rua Marquês do Paraná, isso porque, quando acabaram com o Largo do Chafariz, não ressalvaram uma faixa com a largura da rua e com a extensão de 73 metros que pertencia ao desaparecido largo para possibilitar que a Rua Indígena viesse até Marquês do Paraná.

O prolongamento da rua Indígena até à rua Marquês do Paraná, como existe atualmente, foi feito na administração do Prefeito Dr. Feliciano Sodré, não conhecendo eu os detalhes dessa operação que não foi feita quando acabaram com o Largo do Chafariz, como deveria ter acontecido.

Preferi transcrever "ipsis verbis" a documentação relativa ao caso em estudo, ao invés de resumi-la somente quanto ao assunto em causa porque, divulgados na íntegra, esses documentos poderão conduzir a outras informações, fora das minhas cogitações, mas que interessem a outrem.

Exemplo: Pelo Ofício nº 65 poder-se-á ver que em 3 de setembro de 1858 estava, exercendo a Presidência de Província o Conselheiro Antônio Nicolau Tolentino, ao passo que, pelo Ofício n.º 72, concluímos que, em 28 de outubro de 1958, quem estava no exercício da presidência era o Vice-Presidente Conselheiro Dr. Tomas Gomes dos Santos. Assim também a relação dos vereadores que assinam os ofícios poderá ser útil a quem esteja levantando dados para trabalhos sobre as atividades legislativas (ou mesmo executivas) na cidade de Niterói, etc.

Baseado nesses documentos e no exame do local, organizei um croquis que mostra toda a extensão ocupada pelo Largo do Chafariz, situado embaixo do Morro de São Lourenço e avançando através do (ilegível) da marinha além do litoral que existiu em 1568, vindo até em frente à Casa de Detenção.


Publicado originalmente em O Fluminense, em 01 de setembro de 1974
Pesquisa e Edição: Alexandre Porto
Imagem de capa: o croquis citado pelo autor


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Publicado em 23/10/2024

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