Inventário das Desutilidades
No terreno alagadiço percorrido por Manoel de Barros, tudo que existe, cada elemento que compõem o cenário pantanoso, aparenta estar em um infinito vir a ser. As pedras, cobertas de musgos e envolvidas nos tentáculos da hera, são algo mais além de pedras, por vezes podem ser gente. Imaginemos um homem com índole de pedra, tendendo à árvore?
Vaga-lumes e sua conduta errante em meio à noite úmida e inebriante, são forças incendiárias incorporando-se ao escuro que escorre do céu. A imagem de um rio como uma cobra gigante incrustada na terra, escavando as rochas e movendo-se por detrás das casas, satisfaz mais a imaginação que a visão do rio como um repositório de água. Se esse conjunto de coisas parece estar em constante devir, é porque, em toda sua completude, elas já o são. Por isso, um rio, um sapo e seu canto jocoso, um pedregulho repleto de limo, um pente desdentado e obsoleto, em suma, tudo o que foi expelido pelos rumos do progresso, o avesso do processo civilizatório, servem para a poesia.
Partindo das meditações de Manoel de Barros, a exposição Inventário das Desutilidades, busca investigar a atualidade de suas ideias e suas reverberações nas artes visuais. Guiados pela oportunidade de experimentar novas formas de conceber um fazer artístico que opere com o que aparentemente carece de serventia, a mostra reúne o trabalho dos artistas Dalton Romão, Higor Alcântara e Hilda Gaspar, no qual apresentam um conjunto de obras que ecoam as múltiplas facetas que a noção de desutilidade assume no pensamento de Manoel de Barros. Os artistas, provenientes de diferentes gerações, compartilham entre si o mesmo interesse por processos fotográficos
e por características comuns à técnica da colagem, como a sobreposição, a recomposição, a coleta e apropriação de imagens e materiais - orgânicos e não orgânicos.
No rastro do poeta, o desútil não é tão somente o que perdeu sua função e penetrou o cosmos da inutilidade, mas é aquilo que, ao deixar de cumprir o seu papel no mundo, foi convertido em assunto para a arte, a sua substância. Como recorda Manoel: “Todas as coisas cujos valores podem ser disputados no cuspe à distância servem para poesia”. A
poesia, assim como a arte, envolvidas numa morosa e delirante dança que parece aspirar ao ócio, tem no gosto pelo supérfluo, na observação detida dos sopros do vento sobre as folhas de uma laranjeira ou no estampido impetuoso de um trovão, a sua matéria. De fato, deve-se salientar que, se a arte e a poesia jogam com as possibilidades e limites do inútil em uma sociedade utilitária, pronta para excretar o que lhe causa indigestão, é porque elas, também, são consideradas experiências descartáveis. Por fim, a exposição vem lembrar que a inutilidade sempre foi tema transversal à arte, logo, o comum, o trivial e o pífio seguem sendo os seus territórios de sobrevoo.
Curador: Caique Cavalcante