A prática do colecionismo que remonta à antiguidade clássica já foi definida pelo bibliófilo José Mindlin como uma “consciência da raridade” ou como “uma compulsão patológica”, “um verdadeiro vício”. Segundo Mindlin, colecionar é preservar o passado sem ficar mergulhado nele – tem de incluir o presente e tornar acessível o mundo de conhecimentos e de informação que ali se encontra. João Sattamini, um dos maiores colecionadores de arte no Brasil, assim define a importância e a função de uma coleção: “Uma coleção só existe se puder ser vista, comparada com as outras, analisada em suas eventuais deficiências e na sua dinâmica de crescimento. Ela deve servir para que artistas a usem em seu processo de aprendizado, além de instrumento para a permuta entre instituições para suas exposições”.
O principal desafio de um museu de arte contemporânea é acompanhar as transformações da arte mantendo a sua autonomia, sem se deixar influenciar por pressões econômicas, políticas ou de ordem mercadológica. Diante da falta de recursos próprios ou provenientes de agências especializadas no fomento às artes, alguns museus não têm outra alternativa a não ser a rápida via do patrocínio. Museus que dependem inteiramente desses recursos correm o risco de sucumbir a outras influências que não as culturais e estéticas na sua programação anual. Não cabe aqui analisar a fundo essa questão, mas sim avaliar a importância da Coleção João Sattamini e Coleção MAC Niterói nesse jogo de forças. Uma coleção é um patrimônio fundamental para um museu. Mesmo não sendo de propriedade do museu mas sob seus cuidados, como é o caso da Coleção João Sattamini, ela é um organismo vivo, matéria para a pesquisa, para a produção de conhecimento e para projetos de educação. Via de regra ela é também o fiel de uma balança (do citado “jogo de forças”) que custa a equilibrar-se. Lançar mão de obras da Coleção João Sattamini assim como da Coleção MAC Niterói, estudá-las e expô-las ao público é, portanto, não apenas oportuno, mas fundamental para tornar o Museu, se não independente, ao menos dono de sua própria voz.
O MAC de Niterói abriga a Coleção João Sattamini desde sua inauguração, em setembro de 1996. Em regime de comodato, a Coleção vem sendo estudada pelas equipes de teoria e pesquisa, de educação, de arquitetura e de museologia deste museu e mostrada ao público em exposições individuais e coletivas, dedicadas a artistas que representam o que há de mais relevante na história recente da arte no Brasil. Em paralelo às mostras, o MAC vem publicando catálogos com textos dos curadores e outros críticos de arte, o que tem motivado a pesquisa acerca dos artistas da coleção e, em última instância, a divulgação da arte brasileira dos últimos 50 anos. Todo este projeto, que reúne a iniciativa de um museu público, da cidade de Niterói, e a coragem e determinação de um empresário brasileiro, já seria por si só louvável. Mas o fato de esta reunião realizar-se em um dos mais belos prédios desenhados por Oscar Niemeyer constitui um feito no mínimo singular. É como se a arquitetura de Niemeyer apontasse o caminho, nos conduzindo para “uma poética do infinito”, como tão bem define Luiz Guilherme Vergara em seus textos para esta publicação, sem perder de vista nosso passado, quando o modernismo brasileiro instituiu pela primeira vez no país, nos anos 30, os preceitos de Le Courbusier de “Síntese das Artes”. Momento em que urbanistas, arquitetos e artistas reuniam-se em projetos interdisciplinares, realizados especialmente para ocupar espaços idealizados para todas as artes.
Segundo Guilherme Bueno, ex-diretor da Divisão de Teoria e Pesquisa do MAC, o período abrangido pela Coleção João Sattamini circunscreve três momentos “estruturais” da arte brasileira do pós-Guerra: no primeiro, observa-se o “impacto sistemático da abstração no Brasil, a partir da fundação dos museus de arte moderna do Rio e São Paulo, em 1948” . Como integrantes desse conjunto podemos citar os artistas Iberê Camargo, Samsor Flexor, Ivan Serpa, Lygia Clark, Maria Leontina, Aluísio Carvão, Ione Saldanha, entre outros; no segundo, torna-se evidente a interrupção do projeto moderno com o golpe de 64 e o “surgimento de vanguardas de resistência que, através da subversão de valores culturais, questiona valores estruturais de uma sociedade reprimida política e moralmente” . Aqui podemos reunir Nelson Leirner, Rubens Gerchman, Antonio Dias, Antonio Manuel, Artur Barrio e Cildo Meireles, por exemplo; e no terceiro, testemunha-se a “retomada de investidas mais subjetivistas como também a avaliação do legado do experimentalismo das gerações anteriores” . Neste último período incluem-se os artistas Jorge Guinle Filho, Victor Arruda, Beatriz Milhazes, Daniel Senise, Jorge Duarte, Ernesto Neto, Eliane Duarte e outros.
Ao falar da “dinâmica de crescimento” da Coleção, na entrevista a Guilherme Bueno, Sattamini aborda ainda a questão da formação de um “perfil” de cada artista. Tal preocupação o fez adquirir uma obra de Sérgio Camargo com mais de 700 quilos. “(…) Existe uma opção pela coleção, quer dizer, não é ter um Sérgio Camargo, tem que ter um Sérgio Camargo expressivo, representativo.” Claro está que sua coleção, iniciada nos anos 60 e, como ele mesmo pontua, em um país no qual não há qualquer incentivo fiscal à atividade, o colecionador, movido talvez pelo desejo de “deixar uma contribuição na vida”, ainda não tenha tido tempo de adquirir exemplares suficientes para suprir suas eventuais deficiências. Mas Sattamini vem trabalhando para formar um conjunto de obras significativas de cada artista de sua coleção. Vale citar, por exemplo, o conjunto de obras de Lygia Clark que, segundo o colecionador, é o maior em uma coleção brasileira, e ainda os de Aluísio Carvão, Antônio Dias, Maria Leontina, Milton Dacosta, Raymundo Colares, Ione Saldanha e Paulo Roberto Leal. Alguns desses “perfis” foram objeto de exposições no MAC, sob curadoria de Reynaldo Roels, Luiz Camillo Osorio e Guilherme Bueno. Outros, como o de Paulo Roberto Leal, estão em fase de estudo para futuras mostras.
Aos “perfis” e outras características da Coleção João Sattamini, Luiz Camillo Osorio se dedica no texto a seguir, escrito quando ainda era diretor do Departamento de Teoria e Pesquisa do MAC, cargo que ocupou até 2000. Seu profundo conhecimento sobre a coleção, associado a uma larga experiência na crítica e na pesquisa da arte moderna e contemporânea brasileira, produz valioso testemunho do qual podemos extrair um olhar apaixonado sobre uma das mais importantes coleções de arte no Brasil.
Claudia Saldanha (2006)
Crítica de Arte e Historiadora / ex-Diretora da Divisão de Teoria e Pesquisa
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