No último dia 8 de setembro de 1862 subiu à cena no Theatro Santa Thereza, em Niterói, em benefício do Sr. Leal, o bonito drama intitulado "Virtude e Vício”, de assunto e lavras nacionais, em festejo ao aniversário da nossa emancipação política.

É este mais um drama nascido das imaginações vivas e luminosas de dois filhos dos trópicos, os srs. Joaquim Silvério dos Reis Montenegro e Antônio Francisco Duarte, que se inspiram ante a majestade sublime de natureza americana, ao som das canções ainda virgens. Os autores são dois jovens acadêmicos da Escola Militar, e nenhum dos dois conta ainda 20 anos de idade.

Nunca a este teatro concorreu tanto povo e nunca os seus atores foram tão vitoriados como naquela noite. E foi tal a impressão que causou a representação daquele drama, que em muitos semblantes se divisavam abundantes lágrimas. Desde já protestamos que nunca censuraremos ao sr. João Caetano, se nos der sempre dramas como aquele que na noite de segunda-feira fez as delícias do público niteroiense.

Poucos dias foram bastante para que a Companhia de nosso teatro dramático ficasse sabendo perfeitamente os seus papeis, desempenhasse-os com toda a fidelidade. Os atores desempenharam o melhor que puderam, e entre estes com especialidade, o sr. Florindo, o sr. Leal, o sr. Lisboa e a sra. Leonor Orsat.

Atuações

Coube ao ator Florindo o papel de Cláudio Menezes e à Clara Ricciolini o de Thereza, sua esposa, que foi reproduzido com toda a fidelidade e expressão: esta atriz compreendendo o papel, apoderou-se da ação e disse-o ao público com verdade que agradaria, inda quando fosse um papel de menos valor.

Ao sr. Florindo, escusado é tecermos elogios por quanto o público já bem o conhece, e altamente avalia os atributos cênicos desse grande ator: tudo o que de melhor disséssemos em seu favor seria pouco à vista de seu mérito real. Executou as cenas com tanta naturalidade, que sentimos pulsar o coração.

O sr. Lisboa, ainda que tenha decaído da graça dos niteroienses, todavia no papel de Jorge, filho do negociante Araújo, satisfez-nos completamente, granjeou os nossos maiores elogios. O sr. Lisboa não é mau ator: o que perde é querer, por força, fazer papeis de primeiro galã, o que não está em suas forças. Encorajamento e estudo, sr. Lisboa, e deixe o mais... por nossa conta!

A sra. Anna Chaves mostrou ter compreendido a ingenuidade de Claudia, uma menina de 18 anos. Notamos, porém, que à proporção que fala, a sua voz vai decaindo; todavia é de esperar que nas outras representações, de quaisquer dramas que forem assim não aconteça.

O sr. Leal, um dos beneficiados, compreendeu e desempenhou com toda a maestria o papel de Júlio, o enjeitado, jovem órfão, e dedicado e extremoso àqueles a quem deve à vida: a família Menezes. Ao entrar em cena foi recebido pelo público com uma roda de palmas. Fiel interprete dos sentimentos do personagem que ele interpreta, é sempre interessante pela naturalidade de sua exposição; ainda pouco conhecido na arte que abraçou, é ele hoje uma das mais viçosas esperanças da companhia que serve ao Theatro Santa Thereza. As cenas que se passam quando Júlio reconhece seu pai, quando pergunta por sua mãe e quando finalmente descobre que ela já não existe, o sr. Leal descreveu-as com tanta verdade e natureza, que conseguiu arrancar pungentes lágrimas do auditório que afluíra ao teatro. Chamado à cena no final, pôde reconhecer nos aplausos que recebeu o quanto pode fazer na arte... se estudar.

Avante, mancebo, o grande progresso que tem feito na espinhosa carreira a qual te dedicaste, confere-te o grão de artista! Avante, pois, que tens devotados amigos e patrícios, espontâneos admiradores do teu reconhecido talento, hão de sempre aplaudir-te e animar-te ali no palco brasileiro, donde podes ser o orgulho!

A Sra. D. Leonor Orsat deixou de o ser para se identificar no papel de Emília, também filha de Claudio e Thereza: na cena do 4° ato, confessou com tanta ingenuidade e sedução o... "sou eu que o amo", que parecia sentir o que dizia. Tipo da menina brasileira, com a ternura e beleza da filha do Brasil, a sra. Orsat daguerreotipou perfeitamente a amável fluminense. Os dotes com que a natureza a fadou para artista concorreram para o sublime desempenho do papel de Emília. Com quanto lhe falte ainda o tempo e o estudo do sr. Florindo, é contudo uma atriz ante quem se descortina o mais brilhante futuro na arte que professa. E tão profundamente compenetrou-se do papel de Emília que o desempenhou com a habilidade, com o talento, com o encanto, com que poderia fazer uma atriz de um mérito elevado ao grão máximo.

E como não ser assim quando a simples leitura do drama dos jovens Montenegro e Duarte tanto interesse inspira? Como deixaria pois de agradar; como o nosso público tão ilustrado poderia ficar indiferente às lições de alta moral, que encerra aquele drama? Incontestavelmente "Virtude e Vício" é o primeiro drama brasileiro que se representa em nosso teatro. É como composição literária, no nosso modo de entender, magnífico, tem belos lances, sucessão de acontecimentos naturais e um final perfeitamente lógico. A moralidade de que está revestido é mais um predicado, a favor de seus autores.

Os jovens e talentosos autores deram-nos nesta sua primeira composição a esperança de vermos no futuro o repertorio brasileiro enriquecido por outras muitas composições em que primem a moral e o epigrama delicado. Desta forma, pois, conseguiremos breve ter literatura dramática nacional. Com quanto não tenha ela ainda, entre nós, atingido aquele grau de perfeição que fora para desejar, tem, entretanto, chegado ao ponto de poder civilizar entretendo o espírito.

Prossigam os srs. Montenegro e Duarte nessa brilhante senda que trilharam, continuem a dotar o seu país com produções dessa ordem, e mostrem à velha Europa que a Terra de Santa Cruz já tem filhos que pela sua inteligência vão nos colocando no rol das primeiras nações do mundo.

Findo o drama foi o beneficiado chamado à cena e ali ouviu duas poesias* recitadas pelos autores do drama, felicitando-o por haver tão bem compreendido o papel de que se tinha encarregado; sendo estes depois chamados também à cena, recebendo o justo prêmio de sua produção em frenéticos aplausos.

A peça

No 1° ato, entre os lindos lances de que se compõe, distingue-se aquele em que Cláudio de Menezes, homem quinquagenário, demitido arbitrariamente do seu emprego público, depois de nele ter servido com abnegação por espaço de 20 anos, condena o governo despótico que, reduz uma pobre família à miséria, para dar lugar a um afilhado acobertado com a capa do patronato. Ali se vê também um hipócrita, Jorge, que para seduzir Emília, maculando a sua honra, oferece-lhe nessa ocasião o lugar de guarda-livros na casa de seu pai, aparentando apenas uma generosidade desinteressada.

Não é menos interessante o colóquio do 2º acto em que Jorge tem com Emília, em que esta repele com energia os oferecimentos que aquele lhe faz, exprobrando-lhe a infâmia que usou para com ela. Entre as belezas deste ato, notam-se duas que provam o talento de seu autor que sabe compreender as situações e conhece perfeitamente o segredo de arrebatar as plateias: a primeira é quando Emília ouvindo a acusação que faz seu pai às mães que abandonam suas filhas ao adro de uma igreja, toma a defesa dessas criaturas queridas, e explica a maneira porque muitas vezes elas se veem obrigadas pela miséria e pela fome a arremessar à caridade pública os pobres anjinhos saídos de suas entranhas; a segunda é quando Júlio, o triste órfão, vê tarde da noite um homem forçando a porta do quarto particular da filha de seus protetores, e arremessa-se a ele, exclamando: "ladrão!" Eis que depois, reconhecendo nesse mesmo homem, Jorge, o fez sair no mesmo instante pela janela, lugar por onde entrou.

No 3° acto, apresentam-se dois tipos muito vulgares em nossa sociedade: Eugênio, o mau amigo, e Botelho da Silva, o parasita, mendigante de jantares que arrota sempre independência.

O 4° ato é escrito com tal perícia, que dificilmente se poderá citar o melhor pedaço dele; tem cenas de arrancar pungentes lágrimas, ainda mesmo ao espectador que não é dado ao sentimentalismo. "Oh, a minha mãe...", são palavras que tocam no âmago do coração!

Depois de ter a orquestra executado o Hino de D. Luiz I, o espetáculo terminou com a Tonadilha Espanhola, cujas letras serão novas e executadas pela sra. Clara Ricciolini e os srs. Martinho e Gusmão.

Assim finalizou o pomposo benefício do inteligente ator Leal e do ponto dos Theatros de Santa Thereza e São Pedro, ambos merecedores da estima que lhes consagra o público da província do Rio de Janeiro, tendo sido todo este espetáculo honrado com a presença de S.Ex. o presidente da província Luís Alves Leite de Oliveira Belo.

O Theatro Santa Thereza tem sido aquele onde as peças nacionais tem feito mais feliz sucesso do que, quando representadas no São Pedro de Alcântara, na Corte. Tanto que "Virtude e Vício" será novamente levada à cena nos dias, 26 de setembro.


* Poesias lidas para o ator Leal

Remeto-lhe, sr. Redator, essas poesias recitadas pelos autores do drama, em homenagem ao talento artístico do beneficiado dessa noite, para, se vm. quiser e tiver lugar em seu jornal, fazer o obséquio de publicá-las, por cujo favor agradece-lhe do intimo d'alma, seu cordial amigo Epaminondas.

Ao sopro rijo do vento
Sem vigor e sem alento
No ermo da soledade:
Vive a planta sem amor;
Sem orvalho e sem calor,
Myrrada com'a saudade!

O tufão que vem do norte
Traz os vestigios da morte
Para a misera, infeliz!
Seccas as folhas, cahidas,
Triste - esperanças perdidas
Tudo no mundo maldiz!

Vagando á tôa no mar,
Correndo ás vezes no ar
Vive a pobre sem amor!
Jogo e ludibrio do vento
Supporta, infeliz - desalento -
Exposta a tanto rigor

E qual planta sem pousada
Que vive tão mal fadada
Sem orvalho e sem calor:
Assim o artista no mundo
Soffre tudo com profundo
Sentimento de valor!

Contente, - quando só dôres -
Machucam todas as flôres
De seu viver tão tristonho:
Vai para a scena sorrindo
Coitado! sempre mentindo, -
Soffrendo sempre risonho!

Chorando, rindo e cantando
Vai soffrendo sempre amando
A' arte que é tão má!

Faz chorar e o povo rindo
Prazeres doces sentindo,
Admira o que lhes dá

E recebe o artista nobre
Uma esmola como o pobre
Que mendiga esfarrapado!...
O genio, o fogo dos céos,
A luz brilhante de Deos
É na terra desprezado!

Trabalha, luta e se cança
Venturas nunca elle alcança
E afinal morre sosinho!
Sem vintem n'um hospital!-
E da vida o triste mortal
Seguio honrado o caminho!...

Que importa? - soffre essa cruz -
Clareada só pela luz
Da gloria que é bello hymno!
O ouro não compra talento
E da sorte nunca o vento
Extingue o sopro divino.

Eia moço ! - Eia avante ! -
Segue na arte constante
Constante sempre a estudar
Soffre trabalho - dureza -
Que em ti a - natureza -
Esperança-veio traçar! -

R. M.

Redobra com ardor, actor ingente,
O passo nessa senda, que seguiste!
Há pouco pensamentos traduziste
Com sublime expressão, tão grandemente!

Nessa corôa de artista, florescente
Junta mais um laurel, que conseguiste!
Essa plena ovação, que há pouco ouviste,
Que já s'applaude o genio, não desmente!

Eia...Avante...Prosegue...Além t'acena
A gloria conquistada com fadiga,
Na risonha gentil, brasilea scena.

Despreza o zoilo vil, a torpe intriga.
Não te póde ferir, não envenena,
Quem tão bom coração, n'um peito abriga.

A. F. D.




Com informações do jornal "O Moderado", de 10 e 30 de setembro de 1862; "O Binóculo", de setembro de 1862; e "A Revolução Pacífica", 30 de setembro de 1862. Com a presença de sua Majestade o Imperador D. Pedro II, o espetáculo voltou ao Santa Thereza em 17 de agosto de 1863, uma semana antes do falecimento do empresário do teatro, João Caetano dos Santos.


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Publicado em 30/07/2023

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