Foi representado ontem, 29 de outubro de 1898, no Theatro Municipal desta capital, pelo Clube Dramático Assis Pacheco, a comédia Un pied dans le crime (1866) do dramaturgo francês Eugène Labiche, em três atos, traduzida pelo nosso companheiro Benevenuto Cellini, com o título de Homem por Gato.

Sobre esse espetáculo escreveu o jornalista que assinava Caetano Kean, para o jornal 'O Fluminense':

A sociedade escolhida que no sábado último enchia mais de dois terços da casa, no Theatro Municipal, a despeito do sem número de bailes e festas que na mesma noite se realizaram, prova à sociedade que o Clube Dramático Assis Pacheco tem já firmados os seus créditos.

Gaudiband (Antônio Bentes) velho solteirão, que tem por mania beliscar os cotovelos femininos, que se lhe deparam, tem por vizinho de campo, Blancaford, com o qual está de candeias às avessas. Tem também um afilhado (Fernando Bastos) a quem ele julga seu filho, de quem fez um advogado; recebe visita do seu amigo Garinais, a mulher e a filha (Irênio Coelho, Julia Santos e Selika Pereira da Costa) que vem passar com ele o dia; levado pelas circunstâncias que sobrevém, Gaudiband é desafiado para um duelo por Blancaford e encarrega Garinais de ser seu padrinho.

Este dá a Blancaford, em quem reconhece um sujeito que, em tempos, salvou-lhe a vida, todos as satisfações e prepara-se para matar a tiro de espingarda, um gato de Gaudiband, que era um dos motivos de briga. Carrega a espingarda com sal e uma noz, servindo de bucha a tira de um jornal de Blancaford, deixado pelo carteiro, por engano, em casa de Gaudiband.

Mas não sabe Gatinais que anteriormente Poteu (Martins Teixeira Júnior), criado de Gaudiband, carregara a espingarda com chumbo para os pombos, outro motivo da rixa. E, julgando ser o gato, ao lusco fusco, Gatinais dispara a espingarda no posterior de Ganidard (Leopoldo Fróes), um alfaiate que poda uma parreira trepado sobre o muro de meiação.

Sobrevém Edgard, que se encarrega do processo de Ganidard contra o autor do ferimento, autor esse que só Poteu conhece.

E daí parte a série de quid-pro-quos e situações cômicas que vão em crescendo até ao final da peça em que Edgard casa-se com Júlia e Blancaford, que fora preso e julgado, é absolvido.

Podíamos terminar aqui a notícia aqui, acrescentando que os amadores foram muito aplaudidos chamados à cena, tendo a plateia rido a bom rir.

Nós, porém, que há tempos, nos atrevemos a criticar o trabalho de Castro Vianna, "amador artista", como o chamou o Jornal do Commercio, no papel de Jean Renaud da "Aimée", sentimo-nos com o direito e a competência de fazer alguns ligeiros reparos aos amadores de sábado, reparos esses que, por eles bem compreendidos, sem falsos amores-próprios ofendidos, só redundarão em seu proveito, não importando desmerecimento aos esforços que fizeram.

É bem de compreender, que em um trabalho teatral, como o Bendegó ou o Abacaxi se possa impunemente, deixar de decorarmos papéis e de atender às rubricas, mas é impossível fazê-lo em uma peça, cujo principal mérito consiste na afinação do conjunto, afinação essa que, na sua perfeição, deve levar os seus intérpretes ao ponto de representar em cena lisa, isto é, sem ponto.

Com efeito, tudo ali depende de réplica pronta, certa, dita sem esforço e naturalmente.

Som decorar papéis, todo esse efeito é perdido, levando os intérpretes, que bem compreendem esse fato, ao deplorável e condenável abuso de enxertar os papéis com frases, às vezes completamente inoportunas, afim de evitar os claros que deixam um diálogo em tais condições; além do inconveniente altamente incomodativo para a plateia de ouvir o ponto, que se torna, por necessidade, um eco antecipado.

O abuso do enxerto, palha de casa, como se diz em gíria de bastidores, foi cometido, por deficiência de estudo de papeis. E se dessa operação, grandemente delicada, alguns saíram-se bem, outros deram resultado estupefacientemente negativo.

Assim, Antônio Bentes transformou, na cena da pasta, no 3º acto, uma frase de grande alcance como crítica literária, em pesado gracejo, felizmente, quero crer, não compreendido pelas senhoras presentes; fazendo, além disso, outros pequenos enxertos de ocasião. Este amador, cujo papel era o de um velho solteirão de quem, no decorrer da peça, dizem outras personagens, que nada lhe adiantam na sua idade, os gracejos e tiradas amorosas, faz um Gaudiband todo levez e desempeno.

Martins Teixeira, o Poteu, papel de um cômico limitado e definido, exagerou-o, levando-o baixo cômico de pochade, berrando para ser ouvido na rua, e levando o pouco caso o estudo do papel ao ponto de, na libré de cocheiro, de cartola e chicote, sentar-se à mesa de um restaurante frequentado por jurados e advogados!...

Verdade é que aquele restaurante...

Fernando Bastos, se soubesse o papel, nada lhe diríamos que não o louvasse, mas... o enxerto foi infalível, chegando até ao ponto de, na leitura do documento de evasão, matizá-lo o Bastos de vários apartes de sua lavra, que tiraram do original todo o cunho da originalidade e do momento.

Os demais amadores desempenharam-se a satisfatoriamente dos seus papeis, dando Leopoldo Fróes ao de Genidard, certo cunho de originalidade, que por excesso de apuro ia descaindo para o exagero.

O movimento contribuiu para o mau final do 1º ato com a demora inexplicável e imperdoável na descida do pano, durante 6 segundos que pareciam 6 séculos. Tratemos agora dos dois papéis que, em extremos opostos, tocaram-se como todos ao extremo, pela boa feição de desempenho.

Um, o papel de Garinals, principal da peça. Conduzido com segurança pelo Irênio Coelho, que além de o ter decorado, no mais que o pode, soube fazê-lo, criando um tipo verdadeiro e sem exagero, estudando as cenas e delas tirando todo e efeito que lhe foi possível.

O outro, o de Lucette, papel incidente e que nada tem que ver com o enredo da peça, emprestando-lhe, entretanto, uma ponte elegante de malícia e ingenuidade, foi cabal e graciosamente desempenhada por Belinha Pereira da Costa, que ou sabia o seu papel na ponta da língua e havia estudado o personagem, ou então, no caso contrário, tem um ouvido e uma intuição admiráveis.

Que não se zanguem conosco os amadores do Clube Dramático Assis Pacheco. É boa a nossa intenção e já os temos honrado nesta mesma coluna. Se querem aceitar um conselho de amigo e corrigir os defeitozinhos que apontamos e que, todos, podem resumir-se em dois: estudem os personagens e decorem os papéis, se o querem, dizemos continuam a proporcionar-mos Labiche, Pilleren, Meilhac, etc.; se não estão dispostos a isso, então representem somente operetas e revistas, onde a música, como... bandeira, cobre a carga... dos enxertos.

Não julguem, porém, que não os aplaudi, muito, pois é sempre digna de aplausos a intenção e o esforço deve ser recompensado. E conosco aplaudiu-os a plateia, que se retirou desopilada a satisfeita, fins materiais a que aspirava a comédia.

Sobre a encenação não falemos. O teatro é paupérrimo de cenários e o Clube não é rico. Falta-lhe ainda a animação monetária de plateia.

Nota

Essa crítica foi respondida dias depois, em 5 de novembro, pelo tradutor da peça Benevenuto Cellini, também em 'O Fluminense'. Segundo ele, por diversas razões alheias à vontade da produção do espetáculo, alguns amadores desistiram de atuar, dando pouco tempo para que seus substitutos estudassem os personagens e decorassem os textos.

Na véspera, o próprio ator Antônio Bentes respondeu ao crítico: "o papel de Gaudiband foi, pelo autor da peça, distribuído a um amador que, depois de diversos ensaios, recusou-se desempenhá-lo e, para que a comédia não deixasse de ser representada, incumbi-me do papel com verdadeiro sacrifício, esforçando me ao mais possível pelo bom desempenho, nem só do papel como de toda a peça."

Eugène Labiche (Paris, 6 de maio de 1815 - 23 de janeiro, 1888) foi um dramaturgo e escritor francês. Autor de várias comédias, vaudevilles e farsas nas quais satirizou os costumes da sociedade francesa do século XIX, particularmente a burguesia. Em 1880 foi nomeado membro da Academia Francesa.


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Publicado em 22/11/2024

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