Tinha tudo para não dar certo. O comércio fechado por ordem dos bandidos e, consequentemente, o centro do Rio morto. Eram 14 pessoas em um teatro que cabem 700. Um monólogo de duas horas em um cenário que só havia uma banheira e uma mesa. Parecia um fiasco anunciado, mas era o começo de uma trajetória de quase 11 anos.
Ao comando de Elisa Lucinda, o espetáculo Parem de Falar Mal da Rotina coleciona 1,5 milhão de espectadores e volta a Niterói para nova temporada até 21 de abril, amanhã e domingo, no palco do Teatro Municipal.
"Foi muito decepcionante essa estreia, porque quem está no palco se sente como se estivesse vazio. Mas, ao mesmo tempo, tudo era tão novo. O espetáculo foi um pedido do diretor do teatro na época, Amir Haddad, e eu quis falar dos poemas que brindam, elogiam o inédito de cada ação", diz Lucinda.
Confira a galeria de fotos de Elisa Lucinda no Teatro Municipal de Niterói (Facebook)
Nem a própria Elisa creditava tanto sucesso na peça. Fato raro: não é qualquer espetáculo que se mantém vivo por quase 11 anos, arrastando uma multidão para o teatro.
"Não esperava esse retorno. A peça é uma poesia aliada ao humor, me sinto uma artista muito ligada à comédia, gosto do riso para uma compreensão. Não esperava que, na próxima apresentação, já teria quase 80 pessoas e a outra, lotação completa. Em setembro vai fazer 11 anos de espetáculo. Me sinto muito orgulhosa pelo público se multiplicar em tantos anos. O corte é transversal, é um ciclo. A avó leva a neta, que leva a amiga, que leva o irmão. Não dá para traçar o meu público. É de todas as cores, de todas as classes. Um dia, estava apresentando a peça em uma periferia e, logo depois, estava no Palácio com a presidente Dilma", conta.
Com sua tamanha sensibilidade demonstrada em seus olhos verdes e fala forte, Elisa consegue equilibrar o paradoxo que se faz presente de forma única. No monólogo, situações do cotidiano são passadas à plateia de forma simples, em uma poesia sem amarras.
"É uma poesia livre o que faço, que sai do coração, como se estivesse conversando. O espetáculo deu muito certo. Quanto melhor a plateia, melhor o espetáculo. O público acha que tudo é improviso, mas, quem vê de novo, percebe que não é por aí. Em um espetáculo na Bahia, já desci do palco e atendi o celular de uma mulher. Ao perguntarem do outro lado da linha quem era, respondi que era a atriz que estava parando a peça para atender o telefone. É nesse nível a interação", diverte-se Elisa.
Fazendo o processo inverso, Parem de Falar Mal da Rotina subiu aos palcos para depois virar livro. "Geovana Pires, hoje minha assistente de direção, que transcreveu o texto para mim. Passou para o papel e aí virou livro", conta a atriz.
Perguntada como lida com a nudez no palco, já que a primeira cena é ela tomando banho, Elisa é sucinta ao dizer que isso é normal e tem que ser mostrado como tal. E, muito além disso, esclarece que é necessário ter essa intimidade com o prrio corpo.
"Para quem nasceu pelado, a gente anda muito tempo vestido. Fico muito pelada em casa. Não estou nem aí se estou mais gorda ou mais magra. Tomar banho é uma coisa que todo mundo faz. Nunca teve uma gracinha, coisa ruim ou algo grosseiro, sabe? Pelo contrário, fico me sentindo. O que fazem as pessoas se sentirem desejadas, queridas, é a qualidade do seu romance com você mesmo. Amor é encantamento. Não são os critérios da academia que decidem sua solidão. O que faz o negócio ficar bom ou não pro seu lado é o quanto você se gosta", ensina Elisa.
Sobre o poema Só de Sacanagem, pedido feito pela cantora Ana Carolina à atriz para abrir um show com Seu Jorge, ela conta que o texto retrata também a corrupção velada.
"A gente pode reinventar teu lugar, teu espaço, com tua atitude. A Ana Carolina me encomendou esse poema e acabou virando um discurso ético. Se não quer corrupção não pode corromper o policial, por exemplo. Meu ex-marido saiu de casa uma vez sem a carteira de motorista e foi parado. Ele, que era médico, ligou para a secretária para desmarcar todas as consultas do dia para resolver esse problema. Aí o policial pediu para ele ter calma, que ia ser um processo complicado, mas que poderiam resolver de outra maneira. Ele, na mesma hora, respondeu que não tinha outra maneira, que não fosse pela lei", conta.
Elisa acredita que falar da corrupção e não fazer nada para que isso mude caiu na rotina.
"Acho que virou rotina falar sobre política, corrupção, mas ninguém nunca fala de si. Tem uma cultura da corrupção. Certa vez, estava apresentando a peça e o prefeito da cidade estava na plateia, eu brinquei com ele dizendo que tinha que voltar lá mais vezes, ele sorriu e disse "ok". Quando acabou o espetáculo, a secretária de educação falou para deixar tudo com ela, que estava tudo certo. Virou para a Geovana e falou que ela também estava dentro. Entende o que quero dizer? Eu não gostaria de perder o lugar porque você é filho do diretor ou sei lá o quê. Não gosto de fazer com o outro o que podem fazer comigo. Outra coisa que não suporto é essa coisa de ter preço. Uma vez li em uma periferia de São Paulo a seguinte frase: ‘Quem não tem valor, tem preço’".
Radiante, Elisa conta que está prestes a lançar seu primeiro romance.
"Fernando Pessoa, o cavaleiro de nada, é como se o próprio estivesse contando a história dele. Pensei em fazer para gente grande para não me atrapalhar, e, depois, fazer adaptações. Um dia, meu agente me ligou e falou ‘Elisa, tem que mudar pro Jorge Amado’, mas aí eu já estava apaixonada pelo que estava escrevendo. Ele pediu para que eu lesse o primeiro capítulo e, depois de ouvir, começou a chorar e falou ‘Elisa, faz para adulto’. Estou contando isso de primeira mão, é a primeira entrevista que falo sobre", conta ela, com uma alegria quase juvenil.
Discreta, a artista não tem pretensão em divulgar sua vida pessoal e não se esconde ao falar de quem opta por isso.
"Teve um momento em que o artista se misturou com celebridade. Acho um fato trágico. Empresas grandes procuram por gente famosa. Eu penso totalmente diferente. Faço comercial raramente, porque é uma associação de grife. Quem vai patrocinar meu espetáculo? Uma empresa escrota que trata mal seus funcionários? Tony Ramos falou que todo mundo pode achar que você é uma celebridade, menos você", diz.
O cotidiano de uma ‘hiperativa sem medicação’
Parece ser inimaginável pensar que Elisa Lucinda faz outra coisa além de trabalhar. Porém, ela faz questão de dizer, entre risos, que tem uma rotina.
"Tudo me interessa. Eu tento fazer minhas vontades e sou uma hiperativa sem medicação. Cheguei até aqui assim e estou achando bom. Tento fazer tudo que gosto. Hoje acordei, fui pra aula de yoga, peguei a bicicleta e fui visitar meu afilhado. Passei na feira e comprei peixe. Aliás, eu gosto de cozinhar para muita gente. Vou trabalhar no meu livro à tarde e depois vou dar aula. Cuido de três jardins. Da minha casa, da casa de Itaúnas, e da Casa Poema. Amo correr na praia e jogar tarô. Leio muita poesia, adoro decorar poesias. Inclusive tenho um grande parceiro aí em Niterói que é o Marcus Lima. Faço um show com ele chamado Ô Danada e devemos gravar um DVD dele no Teatro Municipal" fala, sem cortes, Elisa.
A respeito da Casa Poema, Elisa conta que o projeto é para pessoas que almejam se expressar melhor.
"Tenho muita vontade de levar a Casa Poema para Niterói. Adoro ser cidadã niteroiense, tenho esse título e me sinto muito honrada. Tenho alunas de Niterói que vão para Botafogo. É uma casa centenária, um lugar muito poético. A gente dá aula para pessoas de qualquer profissão que queiram se expressar melhor. É uma casa de expressão. Tem pessoas que vão lá porque são muito tímidas, a maioria sem foco ou de muita timidez limitativa, opressora, incluindo gagueira e outras alterações da fala. São frutos de traumas na história pedagógica escolar. É uma loucura! O educado é um travado, é o que menos se expressa. Toda estrutura de educação se insurge contra o pobre do palhaço, aquele colega de classe que faz todo mundo rir. Não tem que tirar o palhaço dele, use o palhaço dele. Na Casa você aprende a falar poesia sem espantar o público. Falando de poesia sem ser chato. Se você for poeta, tímida, gay ou hetero, tudo que você é, a sua poesia vai mostrar. É um mistério lindo. A gente chega lá e acorda os impulsos humanos", explica.
Colunista da Revista O Flu, Elisa comenta que é mais uma realização profissional.
"Sempre gostei de revista e de escrever. Escrevo para o meu público de Niterói e para mim significa muito, pois amo esta terra. Fico feliz que tenha esse jornal onde eu possa falar o que penso", complementa.
Sobre o seu melhor e maior poema, Elisa não poupa elogios.
"Meu filho, Juliano Gomes, é um poema vivo. É um cineasta. Aos 4 anos ele disse para mim ‘Mãe, sabe por que que eu gosto de você ser negra? É porque combina com a escuridão. Então mamãe, quando é noite, eu nem tenho medo, tudo é mãe e tudo é escuridão’", orgulha-se.
Serviço: O Teatro Municipal de Niterói fica na Rua Quinze de Novembro, 35, Centro. Às sextas e sábados, 21 horas, e domingos, 20 horas.
Cissa Loureiro para O Fluminense (29/03/2013)
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