Imagem de capa, 'Pedra de Itapuca', Antonio Parreiras, 1891


A Pedra de Itapuca, recanto bucólico de nossa cidade, que é símbolo turístico de Niterói e inclusive faz parte do brasão da cidade, possui uma belíssima lenda, ligada aos primitivos moradores da Praia Grande, que poucos niteroienses conhecem.

Essa lenda, que ganhou forma literária através da pena de Alvarus de Oliveira, tendo sido publicada em diversos jornais e revistas do país há algumas décadas (ver abaixo o texto original publicado em 1944 em 'O Malho'), foi transformada em enredo para um bailado, cuja estreia, no Teatro Municipal João Caetano, a 22 de novembro de 1970, encerrará com chave de ouro as festividades comemorativas do 397º aniversário de Niterói, sob o patrocínio do Instituto Niteroiense de Desenvolvimento Cultural.

Alvarus de Oliveira
A professora Albertina Fortuna Barros, mestra de renome, ilustre acadêmica e uma das grandes incentivadoras das artes em Niterói, há muito pensava realizar a montagem teatral da lenda de Itapuca. Como o Prof. Basil Dmitri, o afamado 'maitre de ballet' e coreógrafo radicado em Niterói, estava a procura de um enredo diretamente ligado à história da cidade, D. Albertina logo sugeriu "Itapuca", tendo ela mesma elaborado o enredo com aquele entusiasmo que lhe é característico.

"Itapuca", devido à variedade de cenas que envolve, teria de ser montado em 3 atos. Assim, surgiu o problema de música, que não somente precisava combinar o ambiente indígena da história, como também, dar apoio musical a uma construção dramática tão extensa. Entretanto, seria dificílimo conseguir uma partitura musical suficientemente longa e que acompanhasse o desenvolvimento do enredo.

Foi quando o prof. Aloisio Pinto sugeriu ao condutor da Escola de Ballet Dmitri, Domari Esposito, que fosse utilizado "O Descobrimento do Brasil", de Villa-Lobos, o mais brasileiro dos compositores nacionais. Seria elaborada então, uma fita com uma seleção de trechos, cuja ordem satisfizesse as exigências do desenvolvimento cênico.

Exposta à viúva do compositor, D. Amanda Villa-Lobos, a ideia foi recebida com grande entusiasmo, e a conhecida mestra prometeu estar presente à estreia, no próximo domingo.


A coreografia

Coreógrafo e professor Dmitri, foto de A Noite (1953).
Uma vez elaborada a fita com a suíte adaptada, o Prof. Dinitri logo começou a trabalhar na coreografia, cuja característica principal é a utilização do vocabulário clássico puro, aliado ao gesto expressivo, usando agrupamentos cênicos de grande efeito e originalidade, além de fraseado coreográfico que condizem perfeitamente com a grandiosidade da partitura de Villa-Lobos.

Na estruturação das cenas, bem como nos ensaios, o Prof. Dimitri contou com a assistência de Esposito, aluno seu que, hoje já mestre, demonstra a grande capacidade de formação técnica e teórica do professor.

Quanto à montagem em geral, o Prof. Dimitri faz questão de ressaltar que foi um trabalho de equipe por parte dos alunos, os quais, através da participação em um bailado em três atos, estão adquirindo experiência inestimável para a sua formação, tendo a sua dedicação, satisfeito plenamente às exigências do mestre.


Trajes e cenários

A pedido do prof. Dmitri, a pintora Frida Vargas Afonso criou os trajes, baseando-se nas pinturas da pele e no vasto material de plumária e tecelagem dos nossos indígenas. Como o bailado seria montado através do vocabulário clássico, fez-se necessária uma estilização completa tanto dos trajes como dos cenários.

Uma montagem estilizada da Pedra de Itapuca ocupará a cena, uma vez que a pedra tem um papel destacado no desenvolvimento da história. Para a iluminação, fator de grande importância na montagem, foi convocado Washington Alves, conhecido homem de teatro com bastante experiência no gênero. Toda a direção de cena estará a seu cargo, assessorado pelos funcionários do Teatro Municipal.

A maquilagem ficara a cargo de Fernando Bonorino, "expert" no assunto. A confecção dos adornos e as pinturas nas malhas serão feitas pela sra. Olga N. Queiroz.


Grupo experimental

Aimbiré (Esposito) despede-se de sua amada (Lowenthal), do topo da pedra de Itapuca, em cena cheia de arrebatamento, culminando o primeiro ato.
Foto Zalmir Gonçalves, O Fluminense - 15/11/1970.
Para a encenação de Itapuca foi selecionado um grupo de alunos da Escola de Ballet Dmitri (EBD), que passará a atuar como o Grupo Experimental da Escola, composto apenas por elementos que pretendem dedicar-se profissionalmente à Dança.

Nos papéis principais atuarão Joia Diva Lowenthal, como a jovem índia Guacira; Domari Esposito, o amante Aimbiré; Mario dos Santos, o noivo; e Dorothée Mittmann, a Lua.

Os Espíritos da Natureza serão interpretados por Solange Maria B. Silva (Água), Nádia B. Ribeiro (Fogo), Mariza Miranda (Terra) e Rubélia M. Aventura (Ar). Maria Emília N. Queiroz e Ruth Aparecida G. Duarte serão as pequenas nuvens; Regina Fátima Rachide completa o conjunto de índias, composto por algumas das anteriormente citadas, que dobrarão papeis.


Primeira vez

Assim Niterói terá, pela primeira vez, a oportunidade de assistir a um bailado com enredo diretamente ligado à sua história. Será também a primeira oportunidade que os niteroienses terão de assistir a um bailado em três atos, realizado inteiramente com elementos de nossa cidade.

Após a estreia, no dia 22, às 21 horas, quando estarão presentes as principais figuras dos corpos administrativos municipais e estaduais, bem como personalidades diretamente ligadas aos meios artísticos e culturais de Niterói, o espetáculo será repetido quatro vezes, nos dias 28, 29 de novembro (à noite), e 5 (à tarde) e 19 (à noite) de dezembro, dando oportunidade aos niteroienses amantes da arte de apreciar com orgulho a obra pioneira, que vem sendo realizada pelo prof. Dmitri e seu assistente Domari Esposito.


O enredo

"Pas de deux" do segundo ato, quando Guacira (Lowenthal) e Aimbiré (Esposito), já sabedores que terão a ajuda da deusa Lacy (a Lua), dão mostra do amor que os une.
Foto Zalmir Gonçalves, O Fluminense - 15/11/1970.
O enredo trata de uma jovem índia que, estando oficialmente prometida a um guerreiro de sua tribo, não sente por ele a necessária afeição. Seu coração pertence a um guerreiro de outra tribo, que vem encontrar-se com ela junto à pedra de Itapuca. O casal é surpreendido num desses encontros pelo noivo, o qual ataca o rival e é impedido de matá-lo pela amada, que se interpõe quando ele atira a flecha, recebendo em si o ferimento. Ela pede ao amante que se vá, para que possa ser socorrida, e tenta explicar ao noivo que não o ama.

Desmaiada, ela é carregada pelo noivo para a taba. Seis luas mais tarde, a jovem, já recuperada, presencia uma reunião de Lacy, a deusa da Lua, com os espíritos da natureza: estão procurando uma solução para o caso amoroso dos dois, atendendo as preces dos desesperados amantes.

Novamente o noivo intervém, mas é impedido pela Deusa. Quando os guerreiros vão de novo travar uma luta decisiva Lacy provoca uma escuridão e quando a Lua volta a brilhar, os amantes desaparecessem. Então, para o desespero do jovem índio, a Deusa revela o casal no interior da Pedra de Itapuca, onde ela os escondeu para sempre para que possam amar-se longe das restrições humanas.


Viúva de Villa-Lobos assistiu 'Itapuca', por Domari Esposito (06/12/1970)

"Itapuca", que deu ontem sua quarta récita no Teatro Municipal João Caetano, teve, na apresentação do dia 29, a honrosa visita da professora Arminda Villa-Lobos, viúva do notável maestro, cuja partitura do "Descobrimento do Brasil" foi utilizada por nós na elaboração da suíte para o bailado. D. Arminda subiu ao palco para cumprimentar o prof. Dmitri e os componentes do Grupo Experimental da Escola de Ballet Dmitri, pela bela montagem, mostrando-se muito contente com o resultado obtido, tanto da música e dos cenários e figurinos, como da coreografia e do eficiente trabalho realizado pelo grupo; seus elogios compensaram os inúmeros sacrifícios que a EBD enfrentou para dar a Niterói um bailado inteiramente seu.

A viúva do compositor não havia comparecido à estreia devido a um forte resfriado. Sua visita e seus cumprimentos muito nos alegraram, e estamos orgulhosos de tê-la satisfeito. "Itapuca" terá sua última récita, na atual temporada, no dia 19 (21 horas), em apresentação especialmente dedicada aos professores primários e secundários.

O espetáculo de ontem, patrocinado pelo INDC para os estudantes em geral, teve casa cheia e público entusiasta: uma confirmação de que Niterói pode não só produzir, mas também aplaudir as iniciativas de gabarito.


'Itapuca' provocou aplausos e elogios, por Domari Espósito

Na direção da Escola de Ballet Dmitri, na qual temos a honra de complementar o trabalho do nosso estimado mestre, o Prof. Dmitri, tem sempre sido nossa preocupação montar espetáculos que contribuam para a elevação do nível de entendimento do público para com a nobre arte da Dança. Sempre procuramos fazer com que os bailados que montamos tenham o mínimo de aparência "de escola"; sempre procuramos derrubar a ideia provinciana de que Ballet é arte para crianças, tanto no que diz respeito a público como no que toca aos executantes.

A estreia de "Itapuca", no domingo passado (22), parece ter contribuído de maneira decisiva para nossa vitória nesse sentido. Foi opinião unânime entre os presentes que o espetáculo apresentado, embora realizado com um grupo de alunos, tinha o caráter de um programa para adultos.

Os elogios foram dos mais gratos; não só quanto a atuação dos jovens componentes do Grupo Experimental foi considerada excelente, como também os cenários e figurinos causaram comentários elogiosos. Foi, entretanto, a coreografia que chamou mais a atenção, pois, disseram os presentes, nem era necessário que se lesse o programa para se entender o que se passava em cena.

Isto tem grande importância, pois mostra que o Prof. Dmitri conseguiu comunicar-se com o público sem lançar mão da mímica estereotipada que infesta os bailados em três atos. Daí o nosso orgulho de termos contribuído diretamente para o sucesso alcançado.


A Lenda, por Alvarus de Oliveira - 'Revista O Malho', 1944

    Niterói era ainda a plácida Niterói...

    Ainda não lhe tinham arrancado nem o silêncio encantado, nem a morbidez infantil...

    Era a ainda a mulher criança, ingênua, que corre pelos campos mostrando a veludínea pele sem que, por isso, se lhe incendeie o sangue, se lhe ruborizem as faces...

    Era-lhe pura a beleza, por ser-lhe beleza verdadeira, sem os adornos do homem, sem sua engenharia...

    As praias estendiam-se-lhe sem coação, até onde queriam e o chiar das ondas, confundindo-se com o cântico delicioso dos pássaros, parecia-lhe uma orquestração divina do Senhor...

    Jurema, índia bela, sorridente, segundo os costumes do seu povo, tinha já, na tribo, o seu companheiro escolhido.

    Mas certa vez, quando andava, à noite, pela praia meio clara, meio prateada pela lua, uns olhos grandes, negros como a noite, atraíram-na maravilhosamente...

    Ela notou o peito desnudo fremir pelo bater do coração, pelo sentir da alma tão imaculada quão pura!

    Mais uma noite, outra mais, e aqueles olhos tentadores e feiticeiros já a acarinhavam, já eram seus...

    Cauby, guerreiro de outra tribo distante, passando por aquelas redondezas, ouvira um cantar mais sublime que o gorjeio dos pássaros, mais impressionante que a sonata das frescas e cristalinas cascatas de sua nação...

    Tivera medo...

    Alguma sereia talvez o quisesse atrair para levá-lo ao fundo do mar...

    Fugira.

    Mas, na taba, pensando no cantar melodioso, ficara desde a noitinha até que a aurora envolvesse aqueles recantos com o seu manto cor de rosa...

    A noite, voltara e descobrira que o anjo era da terra e que a voz lhe era mais suave e mais branda que a de todas as sereias, que a beleza e o frescor lhe eram mais sedutores e mais atraentes que os de todas as virgens da sua tribo...

    Assim a espreitava, assim a ouvira cantar noite e dia...

    E uma vez, mil vezes, eles se falaram às escondidas, pelas praias formosas...

    Viu ela que o amor dedicado ao outro não era mais que amor fraternal, mas a Cauby, aquele que lhe fez vibrar as cordas do sentimento, amava tanto quanto a Tupã, o seu Tupã poderoso, muito poderoso...

    Mas o escolhido para Jurema já não a via como sempre.

    O ciúme gritando-lhe no íntimo, farejando como um cão, fê-lo segui-la numa noite de lua, fê-lo, num desatino, arremessar a flecha envenenada...

    Comovido, pela primeira errou o alvo.

    Cauby tinha Jurema nos braços, esvaindo-se em sangue, quando outra flecha vibrou no ar e o feriu no peito forte.

    - Parte Cauby. Deixa Jurema, que dela tratarão...

    Ele, a custo, abandonou-a.

    - Por Tupã, Jurema, Cauby voltará...

    E perdeu-se pelo mar calmo e sereno, como calma e serena era a noite.

    Duas feridas tinha Jurema.

    Uma no seio, outra na alma...

    Aquelas cercanias não lhe ouviram mais a voz mariosa. Os pássaros não mais tiveram quem os acariciasse.

    Cinco luas passaram, cinco luas prantearam-lhe as lágrimas...

    Na sexta, realizar-se-ia o casamento.

    Na véspera, quando o sol desaparecia quase, chegou-se à praia e soltou pelo espaço a melodia chorosa e angustiosa do seu triste coração.

    O canto lhe tinha um quê de súplica, um quê de despedida.

    E Tupã, seu poderoso Deus, a oviu.

    No horizonte, ela distinguiu a canoa vitoriosa de Cauby.

    Veio aumentando, aumentando, até que ela correu a ele, que empurrou barco para a praia e desceu ao seu encontro, precipitadamente...

    Esperou ansiosa e ansioso se lhe chegou ele.

    - Jurema te esperou até hoje...
    - Cauby morrerá a teus pés...
    - Jurema só poderá ser tua...
    - Cauby, se teu não for, de ninguém será...

    Fugiriam mais tarde, quando a noite fosse alta e alto fosse o silêncio na taba...

    A hora marcada, dois vultos se encontraram na praia, quando, porém, tomavam o barco, cem outros abantesmas avançaram e centenas de flechas furaram o ar...

    Cauby avançou e quis reagir, mas cercado no mar, na terra, parou junto à pedra.

    O cerco se foi fechando e fechando-se foi o círculo de flechas...

    Quando, entretanto, chegaram os perseguidores, viram, com espanto, que Cauby e Jurema haviam desaparecido... Os índios rodearam, atônitos, o recife em busca da entrada...

    Era, ele, porém oco apenas para os que verdadeiramente, divinamente, e abençoados por Tupã, amavam...

    Então, desde esse tempo, a pedra se chamou Itapuca; Itapuca, ainda hoje, altaneira, poética, encantadora, quando a vaga lhe toca de leve, cicia para quem ama a história do se lindo nome ... (3) (4)


    Alvarus de Oliveira


Leia também: Itapuca, por Joaquim Norberto de Souza e Silva

Edição e Pesquisa: Alexandre Porto


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Publicado em 30/08/2021

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