por Manoel Benício, em 1919
Os índios Tamoyos foram os primeiros navegantes conhecidos em nossa baía de Nictheroy ou Guanabara. Usavam embarcações ou almadias feitas de casca de árvores, sem pregos nem cavilhas de 5 a 6 braças de comprido e de 3 pés de largura onde cabiam até 50 pessoas em cada uma incluindo as mulheres para esgotarem a água que entrava. Serviam estas canoas tanto para a guerra e o saque como para pescarias. Elas representaram um papel muito saliente na defesa do nosso litoral guanabarino.
Entre muitos feitos históricos cabe citar o famoso
Combate das Canoas em 1566, em que tomaram parte 180 dessas embarcações capitaneadas pelo índio Guaxará de Cabo Frio contra o famoso chefe tupiminó Arariboia a respeito do qual combate de que originou-se a
Festa das Canoas, discorrem todos os cronistas nacionais.
Não é nosso intuito reproduzir aqui estes feitos de guerra já tão conhecidos, mas somente estudar o desenvolvimento que entre nós tem tido a navegação niteroiense em sua maior extensão que é contada da ponta de São João à foz do rio Magé, e mede 30 km (5,5 léguas marítimas).
A sua máxima largura é, entre as bocas dos rios Meriti e Macacu, de 35km. Toda a sua circunferência, acompanhando os contornos das praias é de 140km ou sejam 25 léguas.
A navegação entre o primitivo Sitio da Praia Grande e a cidade ocidental e fronteiriça, era praticada por botes e faluas que partindo das diversas praias entre Barreto e Imbuí, iam abicar à antiga praia de Dom Manuel, do outro lado da baía e vice-versa. Este percurso, obrigado a vela ou a remo, fazia-se em mais de uma hora.
Não havia cais, nem pontes de atracação e sim determinadas aglomerações de pedras em lugares a que denominavam de
Molhe, servindo de porto aos barcos.
Uma estatística de 1779 enumerara os molhes ou embarcadouros que pontuavam, neste tempo as margens da Praia Grande, assim como registra os nomes dos barcos que faziam a carreira entre as duas bandas da baía de Guanabara.
É de um vice-rei do Brasil, o marquês de Lavradio, a estatística a que nos referimos e sintetizamo-la.
Havia, em 1779, 22 lanchas e 10 saveiros, no então chamado Saco da Boa Viagem, que outro não é, hoje, senão o litoral formado pelas praias das Flexas, Itapuca e Icaraí. De São Domingos à Praia Grande, havia 5 lanchas e 18 saveiros. Os portos ou molhes principais eram: 2 em Mata-Porcos; 2 em Maruí; 7 na Vala e 3 no Barreto.
Nota-se nesta estatística a falta de menção dos molhes de pouca concorrência e do número de outras embarcações menores para pescarias.
O número dos molhes foi com o tempo diminuindo, porém se focalizando em praias menos violentas e mais populosas, já com feição segura de paredão e tomando o designativo de
Porto que muitos ainda hoje conservam.
Porto de Matta-Porcos (Icaraí), das Faluas (Praça Martim Affonso) da Vala (Golfo de São Lourenço), todos mudaram de denominação.
Uns extinguiram-se de vez, outros mais se desenvolveram como o de Maruí, o do Barreto e o das Faluas. A excelência coube a este último (hoje Ponte Central), onde se pode dizer que foi incubado o ovo de Colombo de nossa viação interurbana. Vamos atracá-lo e estudá-lo.
A rua Direita da Conceição que ali desemboca, era, em princípios do século passado, o grande empório comercial do nascente povoado que Dom João VI elevou à categoria de Vila em 1819, e não só a sua proximidade do antigo Porto das Faluas justificava a preferência, como também era esse um caminho obrigatório para as roças do interior, tendo demais, à sua margem, construída em um outeiro, a capela milagrosa da Senhora da Conceição, levantada pela piedade de todos e devoção de um mulato conhecido por Pai Correia.
O movimento deste porto era extraordinário, tal como é hoje, relativamente, depois de ter decaído por cerca de meio século.
Faluas, botes, barcos e os originais perus vindos da Corte e dos portos que se estendiam ao longo do litoral, da baía até Macacu, serviam a florescentes povoados, lavouras e fazendas, muitos, hoje, em decadência, faziam ali o seu ponto de partida e de chegada, quando não de escala forçada pelas necessidades do intercâmbio comercial.
Ocupavam-se neste serviço para mais de 400 pretos, quase todos escravos, os quais, na labuta da carga e descarga das mercadorias, davam ao porto das Faluas, ao Beco do Molhe e à rua da Conceição, uma vida intensa e movimentada e ao comercio local a nascente prosperidade de que ora colhemos os frutos.
Do interior chegavam por sua vez as tropas carregadas de cereais, de frutas, e de indústrias várias fabricadas nos engenhos e fazendas que ora constituem os bairros do Baldeador, Barreto, Fonseca, Cubango, Portão-Vermelho ou Santa Rosa, Icaraí, etc.
Todas as mercadorias eram descarregadas para os casebres que, posteriormente, sendo propriedade de Agostinho Pinto de Miranda, foram desapropriados em 1840 para formação da praça Martim Affonso, que seria mais vasta e não com as dimensões a que irrevogavelmente foi condenada pela Prefeitura de 1908.
A tradição do Porto das Faluas, ainda permanece bem viva na memória de nossos octogenários e são dele miniaturas, os portos do Barreto, Coqueiro e outros, pelos quais se embarca, diariamente, talvez metade do que a Capital da Republica consome de frutas, legumes, aves, ovos, peixes e em geral produtos de pequena lavoura.
Ao lado dessa vida movimentada em que vibrava o progresso 'praiagrandense', havia, diz o cronista que a descreve, o emblema da barbaria: "o poste da flagelação em que eram atados nus e açoitados publicamente os escravos de um e d'outro sexo."
A navegação regular nos barcos veleiros e a remo foi até 1835 o único meio de transporte entre as duas atuais cidades, sem embargo de se ter feito em 1826, segundo consta de um jornal de 1857, ensaio de uma carreira entre Praia Grande e a Corte, na qual se empregara um pequeno vapor que foi a pique nas proximidades da Armação.
Era então toda esta navegação regulada por posturas municipais como se verifica em atas da Câmara Municipal, de maio de 1820, em que se estabelece, pela primeira vez, por editais, convite para os donos dos barcos dos portos da Vila virem alistar os seus nomes, a qualidade, comprimento e largura na casa do Escrivão da Câmara, sob pena da prisão do mesmo barco.
O primeiro movimento em benefício do estabelecimento de comunicações por barcos a vapor, deve-se à lei nº 60 de 9 de outubro de 1833, que autorizou o Governo a contratar a navegação nos rios e baías do Império.
Um negociante natural da Grécia, o Sr.
João Camnós, residente em Niterói, lembrou-se de organizar uma companhia, conseguindo reunir algum capital, aliás insuficiente para um empreendimento de tal importância.
Após grandes esforços empregados contra a desconfiança dos capitalistas, constituiu-se a companhia, e dela foi seu primeiro presidente
Guilherme Platt.
Por decreto de 6 de março de 1834 o Governo Imperial concedeu o privilégio para navegação entre diversos portos da costa e entre a Praia Grande e a Corte. A companhia deu-se pressa em encomendar o material flutuante, de sorte que em 1835 inaugurava-se a navegação a vapor, entre as duas cidades fronteiras.
Era o primeiro ensaio de navegação a vapor no Brasil.
Cinco anos depois, em maio de 1840 inaugurava-se, também, o primeiro ensaio de navegação fluvial a vapor entre a Corte e o rio Inhomerim.
Referindo-se às barcas que compuseram a nossa primeira flotilha, dizia o Correio Official de 25 de setembro de 1835: "Acham-se já surtos nas águas de nossa baía três barcos a vapor, postos por uma companhia para transportar gente da cidade de Niterói à Corte."
Denominam-se aqueles barcos:
Nictheroyense, Praiagrandense e Especuladora.
"Agora verão praticamente os que não acreditam em maquinas, as vantagens que colhe o público na navegação feita por semelhante modo".
Seja-nos permitido bordar, à margem deste registro, notas ilustrativas.
A citada barca
Especuladora foi alvo de horrível catástrofe, mais tarde, em 25 de maio de 1844, causada pela explosão da máquina, morrendo 70 passageiros e ficando outros tantos feridos; os que portanto, não acreditavam em máquinas, naquele tempo, podiam ter razão de desconfiar delas.
Continua o Correio Official:
"Poupam estas barcas trezentos braços que se ocupavam em remar e marear 50 ou 60 faluas empregadas diariamente no transporte das pessoas, os quais braços se podem agora utilizar em outros misteres: teremos viagens mais breves, porque em menos de 1/2 hora faremos a que se fazia regularmente em uma hora e mais: teremos navegação mais segura, porque os temporais e ignorância ou descuido de alguns mestres de barcos, todos os anos, originavam alguns desastres e tudo isto sem diferença de fretes".
Convém notar que o preço da passagem em faluas e botes era de 60 réis por pessoa até 1835. Conclui o Correio Official:
"E se maiores vantagens não obtiver a Companhia só de sua imprudência se deve queixar, porquanto, devendo os barcos, agora em princípio serem pequenos com lotação para 50 pessoas cada um, mandou construí-los com cento e tantos palmos de comprido, capazes de transportar 200 pessoas de cada vez: o que é menos proveitoso e consomem por dia grande quantidade de combustível e não podem, por muito grandes, chegar a uma das pontes que para esse fim construiu-se".
Essa ponte primitiva, que era em frente a rua do Imperador, correspondia à outra da Corte, sita a rua de Dom Manuel em frente ao beco do Cotovelo. O lugar em que ela foi construída algum tempo chamou-se -
Belveder. Não era como as de hoje, mas fixas, sem flutuantes, passando os passageiros por sobre pranchas em perigosos passos prussianos.
A primitiva parte da Praia Grande sofreu serias avarias no começo e só depois foi construída a do
Cabaceiro, cujas ruínas ainda existem e são a ponta de cais que avançam pelo mar, em frente a antiga Companhia Manufatora Progresso, em São Domingos.
Da sexagenária Belveder (palavra italiana que traduz a ideia de mirante ou torre) nada mais resta que um aterro fora da linha do cais em frente à rua do Marechal Deodoro.
A 14 de Outubro de 1835, inaugurou-se com todos os sucessos da novidade, o serviço de barcas a vapor entre Niterói e a Corte. Era a maior novidade da época e a primeira experiência feita no Brasil.
As barcas cruzavam a nossa esplêndida baía completamente cheias e, diz um noticiarista do
Jornal do Commercio: "Tão grande foi a concorrência de passageiros ávidos pelo gozo da travessia da formosa Guanabara em um barco a vapor, que dias depois da inauguração, o administrador da
Companhia de Navegação de Nictheroy, o Sr.
João Morrissy, era obrigado a limitar a 250, o número de passageiros em cada viagem".
O noticiarista esqueceu-se de declarar que o preço das passagens subiu, mas diz em tom saudoso: "Nesses felizes tempos a passagem por pessoa livre, custava, nos dias de semana e trabalho 100 réis e nos dias santos de festas 160 réis; por escravos 80 réis, sendo tais preços mantidos até às 6 horas. Desta hora em diante era quase nula a navegação de passageiros entre as duas cidades. Nas viagens extraordinárias custava a passagem 320 réis por pessoa livre e 160 réis por escravo."
A leitura de um trecho do regulamento a que obedecia ao serviço das barcas, naquele tempo vai nos patentear os melhoramentos introduzidos até hoje.
Vejamos:
"A carreira das barcas principia às seis horas da manhã, largando todas as horas, tanto de um como de outro lado, até as seis da tarde, que é a última carreira. [...] Os passageiros não deverão conversar com o maquinista nem com o homem do leme. [...] Nos assentos de ré não é permitido fumar nem assentar escravos. [...] A Câmara interior é destinada para senhoras na qual não é permitido entrar passageiro algum. [...] O mestre da barca será responsável por qualquer omissão etc."
O tipo das primeiras barcas não tem hoje igual nossa baía; daria a lembrar a forma de um iate.
Advirta-se que, embora as comodidades da travessia em barcos a vapor, muita gente, por economia, senão por espírito rotineiro ou receio, por muito tempo, ainda, se conservou a traspassar a baía em faluas a vela ou bote que faziam o transporte de mercadorias, cereais frutas e o mais.
Se a exposição até agora feita foi árida e fastidiosa, mais bocejante tornar-se-á a que se segue, por ser um pespontado de cronologia em matéria de viação entre Niterói e a banda de lá.
A 5 de Março de 1844 expirou o prazo do privilégio concedido a 1ª navegação a vapor no Brasil, e que teve lugar na baía de Niterói.
Por decreto de 4 de outubro do mesmo ano, a partir de 6 de março, foi o privilégio renovado, sendo declarado pelo decreto de 20 de Junho de 1848 que só acabaria a 6 de março de 1854. Um decreto posterior, de 12 de junho de 1852, prorrogou-o novamente, fixando a sua cessação para 1861.
Em 1855, autorizada pelo decreto de 24 de fevereiro, do mesmo ano, a Companhia fundiu-se com a de
Inhomerim, que fora inaugurada em maio de 1840, e foi a primeira de vapor fluvial entre nós.
As duas constituíram, então, desde primeiro de março de 1855 a
Companhia de Navegação de Nictheroy e Inhomerim. Graças a esses favores do Poder Público, a Companhia das primitivas barcas, desfrutou tranquilamente das vantagens do privilegio por espaço de 26 anos.
Mas, já então a grita, as reclamações eram diárias e os dias do privilégio estavam contados e com eles os da Companhia da primeira viação a vapor à margem de nosso litoral.
Em 1853, vindo ao Rio de Janeiro o americano Dr.
Cliton Van Tuyl, deu o primeiro golpe, pretendendo estabelecer um outro serviço, e embora a 'Nictheroy e Inhomerim' tivessem o privilégio, conseguiu obter a aprovação dos estatutos de uma empresa de navegação, em 5 de julho de 1858.
O Dr.
Thomaz Rayner, também americano, avocou para si a ideia do estabelecimento do novo serviço, pois em polêmica que travou pela imprensa desta época com o seu compatriota Van Tuyl, declarou que: achando-se no Rio de Janeiro em 1855, percebeu a necessidade de haver
Vapores Ferry, sistema americano, mas tendo ainda a 'Nictheroy e Inhomerim', privilégio por 6 anos, não julgou oportuno tratar do assunto, oferecendo-se-lhe o Dr. Tuyl para pedir a concessão".
Em 1858 o Dr. Tuyl foi à Nova York e vendeu ao Dr. Rayner a concessão, e este voltou ao Rio para tratar de organizar a Companhia. Foi feliz na sua empresa.
Expirando o privilégio da 'Nictheroy e Inhomerim', inaugurou a
Companhia de Barcas Ferry que outra não é, depois de diversas transformações, senão a seção de navegação da atual
Companhia Cantareira.
Foi por este tempo que se construíram as duas novas pontes em Niterói, uma em São Domingos e outra em frente à rua do Marquês de Caxias, outrora Chagas, ambas com flutuante e estacaria de madeira para facilitar a atracação.
Do mesmo sistema era a Ponte do Largo do Paço. Afora estes melhoramentos, a Ferry estabeleceu o serviço de barcas até as 10 horas, ao passo que a 'Inhomerim' só funcionava até às oito horas.
Prontas as pontes e edifícios necessários bem como as barcas
Primeira,
Segunda e
Terceira que tinham vindo dos Estados Unidos e eram do tipo mais ou menos das que hoje trafegam, o Dr. Rayner marcou a viagem inaugural para o dia 29 de junho de 1862, designado pelo secretário José Duarte Galvão Junior. O 'Jornal do Commercio' de 29 de junho de 1862, publica o programa da inauguração e descreve as peripécias e ocorrências dela.
O Imperador, família, semanários e ministros, às 11 horas, embarcaram na 'Segunda', para São Domingos, sendo comboiados pelas 'Primeira' e 'Terceira', onde iam os acionistas e convidados em número de 1.600. Às 11h30 desembarcaram na Ponte de São Domingos.
Ao sair da Ponte da Corte, a barca 'Terceira' caiu sobre um patacho que estava fundeado e não sendo logo possível desembaraçar o leme que sofrera no choque, foi bater sobre a antiga barca de banhos, resultando estragos recíprocos. Logo em seguida, a 'Terceira' pôs a pique um escaler que lhe passava pela proa.
Os exploradores da viação entre Niterói e Rio, deviam tirar conjectura aziaga da duplicidade dos desastres que se deu na 1ª barca que, com a denominação de 'Terceira', foi inaugurada em nossa baía. 33 anos depois, outra barca 'Terceira' incendiou-se quando, também, festejava a sua inauguração.
Visita do Imperador
Merece curiosa atenção dos que me leem, a descrição que neste 29 de junho de 1862, fez o nosso bondoso e do patriótico monarca em Niterói. Mas do que Floriano Peixoto era ele um homem de ferro.
Parece incrível que desembarcando em São Domingos, as 11h30, naquele tempo em que as ruas não eram calçadas e não havia bondes, pudesse ele ter percorrido tantos recantos, visitado tantos estabelecimentos e voltado às 6 horas para a Corte!
A sua celeridade era tida, proverbialmente, como uma espécie de fenômeno de mobilidade. Mas ainda assim, a digressão por ele feita em Niterói, em 1862, ultrapassa as raias ou limites da velocidade dos automóveis modernos. Fala um cronista da época.
Recebido pelo presidente da Província e comissões, em São Domingos, Suas Majestades entraram para as suas caleças e passando pelo Ingá e Itapuca, foram à Icaraí ver a casa comprada para o Asilo de São Leopoldina. E sendo recebidos pela mesa, examinaram todo o edifício. Nesta ocasião, foi presente ao Imperador o plano das obras que se iam empreender no edifício.
Daí, tomando pelo Calimbá e Cubango foram à Vicência, percorrendo todas as fontes encanadas, caixas d'agua e parte do encanamento. S. M. provou a água das diversas nascentes e ouviu do Sr. Diretor das Obras Públicas todas as informações relativas àquela obra.
Em seguida, foram as augustas pessoas ao estabelecimento de criação e depósito de sanguessugas no campo do Fonseca, dirigindo-se daí ao Asilo de São Leopoldina que ainda funcionava à rua Boaventura.
S. M. o Imperador visitou com a maior minuciosidade o estabelecimento em todas as suas partes, demorando-se bastante tempo em verificar como eram as asiladas tratadas, educadas etc.
Passaram depois à Escola Normal, estabelecida em um prédio sito à rua da Princesa, sendo recebidos pelos professores e o Diretor que lhes leu um discurso. Assistiram à prestação do juramento dos novos professores nomeados para a 2ª Escola Normal, estabelecida pela Província.
Seguiram para o Ingá, onde descansaram. Daí o Imperador veio a pé ao Quartel do Corpo de Polícia, onde demorou-se, percorrendo com a maior minuciosidade todos os alojamentos, enfermarias, casas de arrecadação, prisões; indagou com cuidado como corriam todos os ramos daquele serviço, preços e qualidades dos gêneros, asseio da casa e provou do rancho dos soldados, mostrando-se muito satisfeito.
Voltando ao palácio do Ingá, reuniu-se à família e às 6 horas da tarde se passaram para a Corte, embarcando em Niterói.
Em todo este prodígio da atividade em marchas, contramarchas, zig-zags, paradas, visitas, indagações, conselhos, discursos, solenidades, o nosso falecido Imperador não despendeu mais de seis horas!
Reatemos o assunto
Nos primeiros tempos, a Companhia Ferry deu viagens até 11 horas e meia. O preço das passagens era: 120 réis na 1ª classe e 80 réis na 2ª até oito horas, e depois dessa hora, 240 réis para ambas as classes.
O serviço logo no início não foi regular e havendo protestos e até ameaças, o Dr. Rayner justificou-se.
Em 1867, a 'Inhomerim' cessou o tráfico não podendo concorrer com a sua rival cujas barcas eram asseadas, ao passo que as outras já não ofereciam esse motivo de preferência.
Senhora do privilégio que lhe assegurava a falta de concorrência, a Ferry tirou partido até ao abuso, elevando o preço das passagens a 200 réis até às 9 horas da noite e a 500 réis até às 10 horas.
Do exposto remata-se que o movimento de passageiro, há 50 anos, entre as duas capitais, paralisava depois das dez horas da noite e foi devido a esta dificuldade de comunicações contínuas, diurnas e noturnas que, por largos anos, Niterói anquilosou-se no
status quo da primitiva Praia Grande.
Concorrência
Até 1869, a Ferry ficou só, monopolizando a navegação. Um ano depois apareceu-lhe um concorrente tenaz na pessoa do Sr.
Carlos Fleiuss, que a 6 de janeiro de 1870 inaugurava o nosso serviço com as barcas fluminenses, presente mais uma vez o Imperador, que sempre animava com a sua presença as festas assinaladoras de um melhoramento a bem da pátria.
A nova flotilha era composta das barcas denominadas
Corte,
São Domingos e
Nictheroy, de uma só proa, movidas por hélices. Contam os jornais do tempo que até então em Niterói nunca houvera uma festa tão concorrida e popular. O regozijo e o entusiasmo do povo, manifestados quando pela 1ª vez o Imperador D. Pedro II veio a Niterói assistir a 1ª inauguração de barcas a vapor em 1862 não foram tão triunfais.
Eram justas essas manifestações de júbilo e simpatia pela nova empresa de navegação, por isto que a Ferry desagradara e explorava o público desde que se vira livre da concorrência da 'Nictheroy e Inhomerim'.
Era por este modo que a população vingava-se de seus exploradores, há cinquenta anos, tempos idos e fartos em que não estava ainda instituída a pratica do
avança. Deduz-se isto do resultado do banquete opíparo que o Sr. Fleiuss ofereceu aos convidados.
Diz o 'Jornal do Commercio': "O serviço deste banquete foi feito pela casa Schroeder & Co. e era tal a profusão de manjares, vinhos, doces e sorvetes que centenas de pessoas não os consumiram".
Permiti que eu me interrogue a mim mesmo: "Por ventura este fenômeno de abstinência e temperança subsistem nos costumes de nossos dias?"
As Barcas Fluminenses que a lei do menor esforço provocou ao povo crismá-las por barcas do Fleiuss, localizaram as suas pontes em Niterói e São Domingos, onde a Cantareira tem hoje as suas oficinas, e na Corte, no pavilhão de madeira que se demoliu, no Largo do Paço, ao lado do atual edifício da Cantareira. Mais tarde serviu esta ponte para o serviço de Paquetá e Santana, onde outras pontes foram construídas a prol da viação interurbana.
A concorrência entre as duas companhias Ferry e Fleiuss estabeleceu-se rudemente. A população que acompanhara com interesse a luta, a princípio tirou partido com a diminuição das tarifas. Era este o lado pacífico do pleito náutico. Mas apareceu um ponto ameaçador e perigoso para os passageiros.
As barcas saindo quase às mesmas horas de pontes vizinhas, por pouco não abalroavam. Isto por imprudência e despeito dos respectivos mestres que se esforçavam por cortar reciprocamente as proas. Contava-me um velho amigo que foi no tempo da Fleiuss e da Ferry, que a população das duas cidades fronteiras mais se visitou, porque os preços das passagens baixavam semanalmente.
E concluía compungido:
No entanto, foi o tempo em que se apanhou mais moléstia de coração em virtude do terror pânico que, diariamente, se derramava a bordo das barcas sempre prestes às abordagens. Houve
mister da intervenção das autoridades marítimas.
Vamos reproduzir uma crônica quinzenal da Revista Popular, de 1872.
"As folhas diárias da Capital, considerando que o começo da carreira das novas barcas da Comp. Ferry que vão navegar da Corte a Niterói pode dar lugar a sinistros causados pelo abalroamento ou encontro dessas barcas com os da Comp. de Nictheroy, tem prudentemente aconselhado cautela àqueles que a devem ter. De fato, a causa me parece séria e o perigo não pequeno.
As barcas da Nictheroy nunca primaram pelo cuidado e zelo dos seus patrões: as novas não sei se serão neste ponto melhores do que as velhas. Que há de haver ciúmes entre umas e outras é coisa positiva e que o ciúme é um diabo cheio de más tentações, todos o sabem.
Os ciúmes do sexo feminino são mais terríveis do que os masculinos e as barcas, se não tem sexo, são pelo menos do gênero feminino.
As pontes das barcas das duas Companhias estão muito próximas, partem e chegam as barcas às mesmas horas quando se não topam na travessia e por consequência aí tornam-se muito fáceis os encontros, os choques e conflitos. Vejam, pois, a que riscos não teremos de nos achar expostos, se nos abandonarem à mercê dos ciúmes das barcas e das picardias dos patrões das duas companhias".
O Dr. Rayner, compreendendo que era impossível a permanência daquele estado de coisas com prejuízo para ambas as empresas e para o público que naquele tempo não era bastante para custeá-las, tentou um acordo, prognosticando a falência ou ruína de uma ou de outra empresa.
Não foi ouvido.
Sucedeu-o na diretoria o Comendador A. Martins Lage que não foi mais feliz em nova tentativa de composição amigável e a luta desencadeou-se cheia de riscos para os passageiros e prejuízos para os acionistas. Em julho de 1877 a Empresa Fluminense fraqueou, desapareceu, vendendo à rival todo o seu material.
Ficou então a Ferry com uma flotilha composta das seguintes barcas: 1ª, 2ª, 3ª, 4ª, 5ª, 6ª, Sábado, Dona Isabel e mais as três adquiridas à Companhia Fluminense.
Neste mesmo ano a Ferry inaugurava a viação efetiva para Paquetá, partindo as barcas da Corte. Pertence a era da República a série dos grandes melhoramentos por que tem passado a navegação interurbana.
Companhia Cantareira e Viação Fluminense
Em 1º de Outubro de 1889, fundou-se a Companhia Cantareira e Viação Fluminense, não só para explorar a navegação na baía do Rio de Janeiro, em consequência da fusão da Ferry com a Empresa de Obras Públicas no Brazil, como para o serviço de carris e águas em Niterói, cujos contratos haviam sido transferidos a essa mencionada empresa que dez anos depois, em 1899, viu-se forçada a liquidar, só erguendo-se após, sob a diretriz enérgica e auspiciosa dos irmãos João e José Julio, conhecido este por
Visconde de Moraes. Realmente, não sabemos a quem deve mais a navegação fluminense, desde 1835 a 1900.
Durante estes 80 anos, se os nomes do grego
João Camnós e de
Guilherme Platt, os iniciadores da viação guanabarina, foram esquecidos pela gratidão pública, cada barca que sai e volta a Niterói, lembra pela boca fumarenta de suas chaminés a nossa história náutica, recordações consoladoras que não teve Napoleão em Santa Helena, vendo, ao longo da costa de seu exílio, barlaventear o primeiro barco a vapor inventado pelo americano Roberto Fulton.
Realmente, depois de Camnós, Platt e João Morrissy, é que surgiram o
Dr. Rayner,
Carlos Fleiuss, os
Lage, o
Dr. Paulo Cesar, J. Duarte, Nogueira de Carvalho e outros não menos dignos da nossa homenagem, pelos esforços empreendidos a prol da navegação niteroiense.
Mas estamos em 1919, e coube a um português dos mais brasileiros de nossa terras, - o
Visconde de Moraes -, de acordo com as necessidades e vantagens públicas da ocasião, casadas à sua largueza de vistas e inteligência fecunda, colocar no fecho da abóbada náutica niteroiense, a chave sólida de melhoramentos duradouros.
A ele deve-se entre tantas benfeitorias que a sua larga esfera de ação enxameou por Niterói, a concentração de todo movimento urbano para o primitivo porto das Faluas, hoje Ponte Central, inaugurada em 29 de junho de 1908. Neste dia, 46° aniversário da inauguração das barcas Ferry na baía de Guanabara, ele entregou ao serviço público a nova Ponte Central de Niterói, construída no local em que existiu até 1905, o edifício que deveria ter servido de Mercado da Cidade, mas que nunca o foi realmente, acabando por ser quartel de um batalhão do exército. (I. do Comm.)
Em 1908, o Visconde de Moraes vendeu a Companhia Cantareira em Niterói, compreendendo as seções de barcas e bondes aos ingleses, como vulgarmente se diz. Fê-lo justamente magoado com o proceder ingrato de certa parte da população que a ele deve os mais importantes melhoramentos do município.
Ofício do Prefeito à Marinha
A crítica que se pode fazer à atual Companhia dos ingleses anda por todos os jornais, do lado ocidental e oriental da Guanabara, máxime os que pertencem ao mês de abril e maio do corrente ano (1919). Basta lembrar que pela 1ª vez, um presidente do Estado, o Dr. Raul Veiga, viu-se no dever de reclamar por ofício ao Ministério da Marinha contra a empresa desmazelada.
Abaixo reproduzimos este ofício, mas vem a propósito lembrar a existência de uma deliberação municipal que autoriza o Prefeito desta cidade a contratar o mesmo serviço com quem melhores vantagens oferecer. Essa deliberação que tem o número 347 e a data de 20 de agosto de 1917, teve a sua base num projeto apresentado à Câmara Municipal, naquela época, pelo vereador Coronel José Evangelista.
Vê-se, pois, que o próprio Governo do município acha-se dotado de meios para resolver esse grande problema da máxima importância para a nossa população. Eis o ofício, que achamos digno de ser registrado nesta monografia:
"Gabinete do Estado do Rio de Janeiro, Niterói, em 5 de maio de 1919 - Nº 148 - À Sua Excelência o Senhor Vice-Almirante Gomes Pereira, Ministro e Secretário de Estado dos Negócios da Marinha. Sr. Ministro.
Tomo a liberdade de submeter à apresentação de V. Ex. fatos que reputo de gravidade e que exigem dos poderes públicos solução urgente. O serviço de transporte marítimo entre Niterói e a Capital Federal é feito pela Companhia Cantareira e Viação Fluminense, que emprega, nesse serviço, embarcações licenciadas pela Capitania do Porto do Rio de Janeiro.
Esse serviço, infelizmente, não está sujeito à ação direta do Governo deste Estado, a Companhia organizando-o como melhor convém aos seus interesses particulares. Não quero discutir, no presente momento, essa anomalia, nem mesmo a situação evidentemente irregular, qual seja a da exploração industrial de um serviço público da natureza daquele, sem compromissos sérios, por parte da empresa, para cautelar a vida, segurança e bem estar dos transeuntes. Obrigações são pelos Governos sempre impostas para a regularidade do tráfego e consequente acautelamento dos diversos interesses em causa, procurando conciliar a remuneração justa do Capital com o interesse maior das populações.
Ora, pelo que tenho pessoalmente observado, o serviço marítimo entre esta Capital e o Rio de Janeiro exige uma severa fiscalização por parte da Repartição, única que tem ação sobre esse tráfego, se bem que limitada. As velhas e novas barcas da Cantareira, com sua vagarosa marcha, reduzem o número de viagens ao estritamente indispensável, e, por isso, nas horas de maior movimento a lotação das mesmas fica em muito excedida.
O fato é fácil de se verificar nas horas de maior movimento, parecendo-me que talvez a Capitania do Porto pudesse fixar a lotação máxima de cada veículo, para se evitar possíveis desastres.
As reclamações que nesse sentido tenho endereçado aos Diretores da empresa, não têm tido o acolhimento que esperei e apesar das promessas repetidas a mim feitas de um novo horário, que melhor consultasse os interesses da população de Niterói, ainda não lograram o resultado que desejo. O material que possui aquela Companhia permite, desde já, cogitar-se de obrigá-la a dar transporte mais a miúdo, e disso é exemplo o serviço feito durante o último Carnaval.
Solicitando a atenção de V. Ex. para esse assunto, ressalvo a responsabilidade do Governo Fluminense, certo de que V. Ex. providenciará como melhor lhe parecer em seu alto critério. Prevaleço-me do ensejo para apresentar a V. Ex. os protestos de minha viva simpatia pessoal e distinta consideração.
Vamos concluir
Toda embarcação é, em geral, considerada um símbolo de vitalidade: nasce, batiza-se, vive a vida pacífica na calma do fundeadouro seguro ou navegando em mar bonançoso, ou acidentado, resistindo ao temporal no porto ou no oceano; presta-se a representar todos os fatos em que figuram os homens que se notabilizam pelos feitos de toda ordem: é o teatro de cenas comoventes, como também heroicas em que salvam a pátria, enriquecem-na, enobrecem-se e a glorificam, pelo que também recebem as maiores distinções honoríficas ou são eternamente guardadas e conservadas como penhor de gratidão e objeto de admiração; por fim morrem como o homem, de velhice, ou por moléstia e acidente na tempestade ou na guerra.
Assim, pois, abaixo das obras da natureza, os navios - artefato do homem - são o que mais se lhe assemelham, com a diferença de que, enquanto a raça humana mais se propaga, mais fisicamente definha, na ordem inversa estão as embarcações, tanto mais decrescem relativamente ao número, quanto mais se avolumam em grandeza material e mecânica.
É por isso que as primitivas flotilhas indígenas de ubás, e canoas, foram substituídas pelas faluas, saveiros e perus, barcos e pranchas. Vieram as ligeiras lanchas e velozes iates a vapor precursores das primeiras barcas que cruzaram a nossa baía. Apareceram os mastodontes de guerra e de transporte.
Que diferença alucinadora entre as pirogas de casca de árvores e os monstros marinhos artificiais que mergulham, como cetáceos, até o fundo das quietas águas guanabarinas e os albatrozes mecânicos que deslizando à flor d'água, erguem voos serenos e somem-se em demanda do Cruzeiro do Sul!
Manoel Benício, originalmente publicado na 'Revista Marítima Brasileira' em julho de 1919. Na imagem de Capa, a Barca Primeira, construída em 1862, em foto de 1905.