Ainda pode estar na memória de nossos antepassados niteroienses os antigos nomes da bucólica área verde do Centro, mais conhecida como Praça do Rink. Lá já foi o Largo da Memória, nome dado em homenagem a primeira visita a Niterói do rei de Portugal Dom João VI, em 1816. A área, compreendida hoje entre as ruas Aurelino Leal, XV de Novembro, Almirante Teffé e Dr. Borman, foi palco de um "beija-mão", cerimônia pública de cumprimentos a Dom João VI, da qual participaram membros da casa real, da nobreza e do campo diplomático.

Mas originalmente, o Largo da Memória era bem maior que a atual Praça do Rink.

O processo histórico mais simples para discorrer a respeito do histórico Largo da Memória, seria sistematizá-lo cronológica e documentalmente, obedecendo as diversas denominações oficiais e nomes populares que ele tem tido, desde 1816 até hoje. Por exemplo:

- Campo de Dona Helena
- Largo do Capitão-mór
- Passeio da Memória
- Largo da Memória
- Praça João Alves Carneiro
- Praça Gomes Carneiro
- Cemitério dos Prazeres
- Praça do Rink





Se nesse rol, quiséssemos englobar as denominações que se foram dadas ao "Largo do Pelourinho", que também fazia parte do primitivo Campo de Dona Helena - e do projeto original do Passeio da Memória ('Capim', 'Praça de Santo Alexandre', 'Marechal Floriano', 'Praça da Prefeitura'), seria um almanaque patronímico.

Campo de Dona Helena

O antigo Campo de Dona Helena de certa forma ainda hoje existe, mas sem a mesma configuração de outrora, diminuído como foi pelas edificações que contornam a praça e pelo retalhamento da propriedade original.

Em destaque a gleba antes conhecida como Campo de Dona Helena
Eram naquela época terras de uma fazenda de mandioca, que se estendia pela zona ora circunscrita pela rua Direita da Conceição (tortuosa, como as suas congêneres 'direitas') até a base do morro em que está a Capela de Nossa Senhora da Conceição, vertentes do morro do Buraco da Onça (na continuação da rua XV de Novembro), do morro do Hospital (Valonguinho) e rua Visconde do Rio Branco. Neste espaço existem hoje as ruas da Conceição, Dr. Bormann, XV de Novembro, Aurelino Leal, José Clemente, parte das ruas Visconde do Rio Branco, General Andrade Neves, praças da Prefeitura Velha e Rink.

Essas terras, que limitavam-se com as de Antonio Tavares Rocha, cônego José Mendes e Ignacio de Carvalho, foram em 15 de Fevereiro de 1753, arrematadas por Aleixo dos Santos Alves, na execução movida pela viúva do sargento-mór Antônio de Figueiró Almeida, Dona Isabel da Conceição Vieira, contra José de Souza Meirelles e sua esposa Dona Anna de Oliveira. Falecendo Aleixo, foram elas adjudicadas por sentença de 6 de março de 1776, do Juiz de Fora Machado Cardoso, a sua viúva D. Quiteria Maria de Figueiró e Almeida, que contraiu segundas núpcias com José da Silva Antunes.

Este e sua mulher venderam-nas em 28 de Março de 1789 ao tenente-coronel de artilharia Antonio Joaquim de Oliveira e sua mulher Dona Marianna Rita de Bulhões, os quais por seu turno, as venderam por 2.150$000, em 14 de Março de 1791, ao Dr. Domingos de Freitas Rangel e sua mulher D. Anna Maria de Jesus, Destes proprietários passaram as terras, por escritura de 6 de março de 1794, lavradas em notas do tabelião João dos Santos Rodrigues Araújo, para Manuel José Bessa, que as comprou por 2:700$000.

Principais pontos do Plano de Arruamento da Vila Real de Praia Grande (1820)
Bessa tomou posse das terras em 12 de Março de 1794 e do termo respectivo consta que "praticou todos os actos possessorios e do estylo", abrindo e fechando portas nas casas que ficam na beira da praça e nas de vivenda (estas ficavam no canto da atual rua XV de Novembro), atirando com terra ao ar, cortando ramos de árvores e praticando as cerimônias que se costumam praticar em semelhantes atos e depois o dito porteiro, virando-se para o dito Manoel José Bessa, lhe disse: "Dou-lhe uma, duas, uma maior e outra mais pequena, faça-lhe bom proveito, entregando-lhe um ramo verde, em sinal de posse. Manoel José Bessa casou-se com Dona Helena Francisca Casemiro, que por morte do marido, houve as terras por sentença de 20 de janeiro de 1811.

Uma das filhas deste casal, Dona Maria José Bessa, casou-se com o Capitão-mór Gabriel Alves Carneiro, que por largos anos andou em litígio com a Câmara e a Província e, em morrendo, deixou ao seu filho José Alves Carneiro (capitão do exército e tabelião), toda herança litigiosa. Eis a origem da denominação do "Campo de Dona Helena" em terras originalmente das sesmarias dos índios de São Lourenço, mas que, como vimos, eram identificadas legalmente como privadas nos cartórios da Corte desde o século XVIII.

Beija Mão em 1816





A primeira visita do ainda Príncipe Regente D. João VI à Praia Grande se deu após a morte de sua mãe, a Rainha D. Maria I, quando decide passar um período de descanso na região. D. João VI chegou à ponte de São Domingos acompanhado de sua família, da corte, autoridades civis e militares, magistrado, clero e pessoas importantes da Cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro.

D. João VI permaneceu todo o mês de maio em São Domingos, dividindo seu tempo entre as caçadas e acompanhando os exercícios da Divisão dos Voluntários Reais d'El Rei, que seguiriam de viagem para o sul no dia 29 de maio de 1816.

A esta visita deve-se a mudança do nome Campo de Dona Helena para o de "Passeio da Memória" e, de fato, da criação da própria identidade do futuro município. Vejamos.

O monarca achava-se com toda a sua corte no sítio de São Domingos pertencente a João Homem do Amaral, um dos maiores proprietários das terras dos índios de que era administrador e Capitão de Ordenanças interino. O ainda Príncipe regente, ocupou um belo palacete - localizado na atual esquina de rua José Bonifácio com praça Leoni Ramos - que lhe foi doado por Homem do Amaral, e que foi demolido no início da década de 1910.

    "A vivenda de D. João VI, em Nictheroy, á beira mar; um casarão antigo, sustentado por grossas columnas de alvenaria, avarandado e acaçapado, typo fiel das construcções abastadas d'aquelle tempo; que devia ser guardada e conservada, foi demolida como cousa inutil e imprestavel, depois de ter descido ao vilissimo mister de cocheira!" (Mensagem do prefeito Paulo Alves à Câmara Municipal, 1904)


Aproximando-se o dia 13 do mês e ano citados, e aniversário do nascimento do Rei, fez-se ele e a sua corte transportar para o Campo de Dona Helena onde as tropas se acantonavam, afim de assistir as honras ao seu aniversário.

Da "Gazeta do Rio de Janeiro" de 22 de maio de 1816, que descreveu com minúcias todos os acontecimentos, destacamos um trecho:

    Constando esta Real Resolução, concorrerão alli muitos Membros do Corpo Diplomatico, e hum grande numero de pessoas da Nobreza para terem honra de comprimentar a S. M. pela solemnidade do Dia.

    Ema observancia da Ordem do dia, que abaixo publicamos, a Divisão dos Voluntarios Reaes, tendo á sua frente o General Lecor, se havia postado no Campo de D. Helena, formando hum quadrado vazio, em cujo centro se tinhão levantado tres barracas.

    Ao meio dia El-Rei Nosso Senhor, SS: AA. os Senhores Principe D. Pedro, e Infante D. Miguel montarão á cavallo acompanhados de hum grande numero de Officiaes Generaes, (entre os quaes hia o Exmº Marechal General Marquez de Compo Maior) e de Criados da Sua Caza, e se dirigirio so lugar da parada. Seguirão-se em coches a Rainha Nossa Senhora, e as Princezas Suas Augustas Filhas.

    SS. MM. SS. AA. se apearão defronte das barracas, que lhes estavão destinadas, e immediatamente as Tropas fizerão as continencias devidas, derão as descargas do costume, e seguidas de muitos vivas; desfilarão em parada depois na Presença de El-Rei, e da Sua Augusta Familia, e for mando depois quatro columnas cerradas se reunirão á do centro, e na mesma linha marcharão em frente da barraca de S. M., e fizerão alto em distancia conveniente.


A guisa de nota, lembramos aqui, que os 'coches' em que vieram as princesas ao Campo de Dona Helena, foram os primeiros que rodaram pelos caminhos da Praia Grande.

Passeio da Memória

Detalhes do projetado Passeio da Memória
Em homenagem àquela primeira festa oficial a que já assistiram o povo desta terra e nossos antepassados, o antigo campo de Dona Helena passou a se chamar 'Passeio da Memória', por conta de um projeto de arruamento datado de fevereiro de 1820, quando a Câmara Municipal da recém criada Vila Real de Praia Grande consagrou uma das praças projetadas "à feliz memória do faustosíssimo dia 13 de maio de 1816". Mas somente em 1847, como veremos mais adiante, o largo receberia um monumento lembrando a data uma coluna cilíndrica, de granito, assentada sobre lajes formando um octógono, que ainda hoje está na praça.

A índole da bajulação daquele tempo fez bem em denominar o Campo de Dona Helena de "Passeio da Memória", quando o podia batizar Campo ou Passeio de D. João VI. Mas assim não sucedeu. O vocábulo "Memória" formando uma locução com o "Passeio" de seu nome, significaria, não um aniversário de 'Reis', porém um fato histórico nos anais do crescimento e progresso de um pedaço do Brasil.

E foi em, "memórias" deste acontecimento que a primeira Câmara liberal da recém criada Vila Real de Praia Grande, sob a presidência de seu primeiro Juiz de Fora, Dr. José Clemente Pereira, enviava a D. João VI a seguinte petição constante dos Livros de Atas e Registros da Câmara (5 de Fevereiro de 1820).

"Senhor: A Camara da Real Villa da Praia Grande, depois de levantar a V. M. um monumento de Lealdade amor e gratidão sobre o assemto puro de seus corações fieis, desejando levar a eterna posteridade a Saudosa Memoria do Faustissimo dia treze de Maio de mil oitocentos e dezesseis, no qual Vossa Magestade se dignou Honrar este Sitio com sua Real Presença. Celebrando tão Sagrado Dia sobre o Campo chamado de Dona Helena, concorrendo ali a Corte pessoalmente e os tribunaes, tem a honra de pedir a Vossa Magestade, queira por effeito de Real Grandeza se Digne Fazer-lhe a Mercê de Approvar e Proteger uma obra que é toda de Vossa Magestade. E receberá Mercê. (Assinados) José Clemente Pereira, Presidente, os vereadores Pedro Henrique da Cunha, João de Mouro Brito, Francisco de Farias Homem".

Em um plano da vila, que neste mesmo ano de 1820 a Câmara remeteu ao Rei, lê-se:

    "O Campo Numero 1 será destinado para sobre elle se levantar um Passeio Publico consagrado á feliz Memoria do Faustissimo Dia treze de Maio de mil oitocentos e desesseis, que será denominado: "Passeio da Memoria. No lugar do segundo se levantará hum "Rocio" que será formado por hum quadrado retangulo de 1.540 palmos; no centro delle se collocará o "Pelourinho" (5-2-1820).


O Pelourinho possuía um formato de cruz e na sua base havia um escaninho onde se guardavam os "pelouros", que eram bolas de cera dentro das quais se guardavam as listas dos nomes mais votados para vereadores e demais cargos de eleição.

Do exposto verifica-se que o primitivo Campo de Dona Helena foi dividido em dois largos: "Passeio da Memória" e "Rócio" ou "Largo do Pelourinho", como vamos ver. A Câmara ordenara o alinhamento das ruas da Vila recém-criada. A seu favor, tinha a Ord. L. I. Tit. 66*11 etc., que doava a todas as vilas recém-criadas uma légua de terras para seu patrimônio. Sucedia ainda que as terras de nosso município pertenciam à sesmaria dos Índios de São Lourenço, em usufruto, as quais eles não podiam vender.





Causas do litígio

Mas como surge o litígio entre o Capitão-mór Gabriel Carneiro e sua sogra Dona Helena, os maiores proprietários dessas terras, com a Câmara? A questão começou porque estes mandaram arrancar os marcos do alinhamento das ruas que a Câmara mandara fincar em terrenos que o Capitão-mór dizia-se dono (Dec. 20-5-1734 e lei de 1766).

O Dr. Angelo Miranda Freitas Filho explicando a causa do litígio entre a Câmara e os herdeiros de Dona Helena, escreveu ao "O Paiz" (década de 1910).

    "A posse do terreno, quer no local hoje chamado da Memória, quer na Praça de Santo Alexandre, ou Capim, na parte que faz frente à rua principal da Conceição" foi tomada sem audiência nem consentimento de Dona Helena Francisca Casemiro, que, despojada da propriedade que legitimamente deverá possuir, intentoa contra a Câmara uma ação de reivindicação. A primeira Câmara só se limitou a erigir o pelourinho em uma das extremidades do campo; mas as suas sucessoras, tendo concebido um plano da cidade, no qual traçaram duas praças distintas, uma a da Memória e outra a do Pelourinho, foram mais longe na violação da propriedade: mandaram arrancar cercas de grossos moirões, ripas e varas que se achavam em terrenos ocupados por arrendatários e foreiros da mesma senhora. "


O procurador da Câmara, informou ao Desembargador da Comarca Joaquim José Queiroz:

    "Que procedendo a Câmara antepassada ao alinhamento e vestoria da Rua que vae da Conceição da dita Villa para a freguezia de Icarahy, se fincaram marcos de pedras nos pontos ou fralda do morro da chácara do Capitão-mor Gabriel Alves Carneiro que ficava dentro do predito alinhamento para o bem do publico e afim de que a rua, ficasse com aquela largura devida para se poder abrir uma vala que dê exgoto as aguas do mesmo morro, afim de evitar a grande ruina que ellas fazem na mesma rua; como o mesmo Capitão-mor pedio vista da vistoria e alinhamento até agora nada tem dito em sua defesa, mas antes tratou de mandar plantar uma cerca de espinhos pela margem da dita rua, que tem dado causa a que a mesma se tenha posto intransitavel; motivo este porque requereu a Camara a V. Ex. como conservador dos indios a quem compete o mesmo terreno, haja por bem mandar que se deite a dita cerca abaixo e se corte o barro do dito morro até onde conste foram fincados os ditos marcos, assim como mandar abrir a rua que principia no fim e lado da chacara do Conselheiro Serrão Estelita da Fonseca que vae dar a rua nova que se abrir do lago do Pelourinho as portas da Roiz Antonio da Silva Guimaraes etc".


O Desembargador Queiroz mandou que o Capitão-mór dos Índios de São Lourenço, José Cardoso de Souza, também informasse, o que ele fez.

    "O que a Camara allega no seu requerimento é a mesma verdade e, por isso nas circumstancias de ser attendido no que requer, visto que é para bem publico. E o que posso informar a V. Ex. que mandará o que for justo" (Quartel de S. Lourenço dos Indios, 13 de Junho de 1824).


Ouvido o curador dos índios J. Gaspar Almeida, nada opôs, pelo que o Desembargador Ouvidor Geral e Corregedor da Comarca e conservador dos ditos Índios mandou que a Câmara procedesse de acordo com as informações.

Daí iniciou-se a série de litígios entre o Conselho, os parentes e herdeiros de Gabriel Alves Carneiro, que prolongou-se até 1846 quando este - mesmo obtendo vitória na justiça - desistiu, fazendo renúncia das terras das duas praças sem indenização, além da oferta de 2 contos de réis para construção de um cais (calçamento) fronteiro a elas. Ainda estes cais em terrenos fronteiros à antiga Praça do Mercado, deram lugar a novo litígio que juridicamente... não terminou.

Em 1825 já a Câmara tinha protestado contra o esbulho que se fazia da terras dos Índios onde ela edificava a cidade, e isto em termos veementes perante à Assembleia e depois perante Pedro I, como se vai ver:

    "Primeiramente parece rasoavel que sendo esta villa assentada na planicie que se prolonga pela praia fronteira a Corte entre os montes de Gragoatá, de D. Helena, do Capitão-mor Gabriel Alves Carneiro, da Pedreira da Armação, e estando este terreno compreendido e a sesmaria dada a Martins Affonso, Capitão-mor dos Índios que o acompanharam a esta Corte em auxílio contra os francezes e para depois seus sucessores possuíram-na sem apoderem-se alienar a qualquer sesmaria consta de légua de testada das Barreiras vermelhas contíguas à fortaleza de Boa Viagem e vai acabar adiante da horta de Stas. Anna e fazendo-se o Brigadeiro Manoel Álvares da Fonseca Costa ser hoje dono da mencionada planicie por uma nula compra feita a possuidores de má fé, em duas porções; a 1ª por 600$000 rs. e a 2ª por 700$000 rs. esta até o presentem passando arrendamento por 9 anos a 40rs. por braça quadrada com laudemio (coisa impraticavel segundo a nossa legislação) e com outras clausulas onerosas que desanimam o povo edificar a villa".


Este protesto longo explana todos os processos que Gabriel Carneiro e o brigadeiro Álvares da Fonseca praticaram (V. Cartorio do 3º e 2º officio). O certo é que foram eles os maiores doadores ao patrimônio da vila, de terrenos que, para a Câmara Municipal, legalmente não lhes pertenciam.

Durante todo esse tempo, o terreno original foi sendo utilizado como servidão pública, enquanto aguardava a finalização do processo. Abriram-se ruas, construíram-se casas diminuindo consideravelmente as dimensões do terreno original da antiga proprietária, o Campo de Dona Helena.

Aproximadamente em 1840, o Capitão-mór Gabriel Alves Carneiro autorizou a construção de um trecho de casas entre esses dois largos, denominada de travessa do Pelourinho atual Travessa Alberto Victor e antigo Beco da Tapioca.

Fim do Litígio

Temos, por vezes, nos referindo ao quase secular litígio que se estabeleceu entre os herdeiros de Dona Helena, a Câmara e a Província, tendo por origem as terras do Largo da Memória. Este litígio em parte foi terminado por uma conciliação que se vai ver dos dois documentos dirigidos ao Capitão-mor Gabriel Alves Carneiro e adiante exibidos, mas, anos depois, renovou-se sobre a porção do terreno que, pertencente ao mesmo Campo, limitava-se com a praia a praça do antigo Mercado.

    "Havendo Vossa mercê offerecido espontaneamente á Camara Municipal desta Imperial Cidade não só os terrenos em que estão situadas as praças da Memoria e a do Capim, com 3.858 braças quadradas, como as custas do processo que intentara contra ella, importando em mais de sete contos de réis, para coadjuvar a construcção do caes da praça de Martim Affonso, e tendo já sido presentes a este Governo os traslados dos respectivos autos, dos quaes se mostra estarem satisfeitas todas as formalidades e a Provincia e a Camara Municipal de posse dos objectos doados: cumpre-me agradecer a Vossa Mercê esta prova de seu patriotismo e reconhecido interesse pelos melhoramentos desta Capital. Deus guarde a Vossa Mercê. - Palacio do Governo da Província do Rio de Janeiro, 29 de Abril de 1846. (Assignado) Aureliano de Souza Oliveira Coutinho."


A Câmara Municipal não foi indiferente - e era ela a mais interessada - à generosa doação e testemunhou o seu apreço neste ofício:

    "Illmo. Sr. - A Camara Municipal desta imperial Cidade manda communicar a Vossa Senhoria que ella faltaria ao sagrado dever de gratidão se não manifestasse a Vossa Senhoria, pela maneira mais positiva, o seu reconhecimento pelas concessões por Vossa Senhoria feitas em beneficio dos habitantes desta Capital: Vossa Senhoria não só desistiu das causas que com que ella trazia, como das quantias que della tinha de haver pelas sentenças que em favor de Vossa Senhoria foram dadas no Poder Judiciario até ultimo recurso, que decretaram a restituição dos terrenos do largo da Memoria e do Pelourinho á sua propriedade e pagamento das respectivas rendas, que importavam, segundo as quitações dadas por Vossa Senhoria e apresentadas pelo procurador da Camara, em sessão de 4 de Março deste anno, em mais de 7:300$, além das custas das sentenças e sobre sentenças de que tambem Vossa Senhoria fez concessão e apresentou quitação e egualmente franqueou suas pedreiras e barreiras para as obras que a Camara precisa fazer. Taes serviços, Illmo. Sr. merecem sem duvida ser galardoados, e a Camara na impossibilidade de fazel-o, roga a Vossa Senhoria que haja de acceitar o presente testemunho do seu reconhecimento. Deus guarde a Vossa Senhoria. Nictheroy, 5 de maio de 1846. Illmo. Sr Capitão-Mór Gabriel Alves Carneiro. (Assignado) Pedro Antonio Gomes, secretario.


Largo da Memoria

Detalhes do projetado Passeio da Memória
Não obstante o antigo "Campo de Dona Helena" ter tido o seu nome original, e crismado oficialmente de "Passeio da Memoria", ao dito "passeios", o povo, pela lei de menor esforço, começou a chamar de "Largo". Era, então, uma clareira natural, aberta entre restingas e paus, sobre terreno arenoso. Pelos tempos adiante a Câmara o foi arborizando.

Portador de um título respeitável naquele tempo, o Capitão-mór Gabriel Alves Carneiro morava no morro vizinho ao Campo ou ao "Passeio da Memória", então este começou a ser conhecido pelo cognome de "Largo do Capitão-mór. Foi de pouca duração esta antonomásia, devido especialmente à reação dos partidários contrários, que não eram poucos. O nome de "Capitão-mor" foi-se restringindo aos poucos a denominação de um morro (do Estado) e de um beco (rua Padre Anchieta) .

Com este nome perpetuou-se, por décadas, aquele logradouro público e é sob esta designação que se deram os acontecimentos mais notáveis de Niterói.

Vimos que no primitivo Campo de Dona Helena, quando se solenizou a criação da Villa Real da Praia Grande em 1819, outro monumento não foi levantado senão o Pelourinho de pau que simbolizava a administração despótica da época. A esta primeira iniciativa correspondeu mais tarde a segunda, promovida pelo Governo provincial, fazendo elevar, no então e já conhecido por "Largo da Memória" uma coluna comemorativa.

Resolvida por este, em 1845, a construção do já citado chafariz, que teria a forma de uma coluna, foi a pedra fundamental assentada em presença do presidente da província, conselheiro Aureliano de Souza e Oliveira Coutinho (Visconde de Sepetiba), aos 19 de novembro do mesmo ano, ficando a obra concluída dois anos depois sob a direção do engenheiro André Alves Pereira Ribeiro Cirne.

Por esta época, achava-se em viagem pelo interior da província, o Imperador D. Pedro II, que, de regresso, honraria pela primeira vez com sua visita a capital da província, em terras n quais seu pai e seu avô descansaram das fadigas do governo. Foi o momento escolhido para a inauguração.

D. Pedro II voltando de Itaboraí e de Porto das Caixas, onde a fidalguia dos Torres e dos abastados fazendeiros do seu tempo proporcionaram ao monarca uma feliz excursão, chegou a Niterói a 30 de abril, hospedando-se no palácio da presidência, que era então o edifício que se erguia na esquina das ruas de São João e da Rainha, hoje José Clemente e Dr. Bormann (1).

O monarca brasileiro, antes de entrar no modesto palacete e de receber à sua porta as saudações da Assembleia Legislativa Provincial, que ali comparecera, passou sob um vistoso arco de flores naturais, cujo plano fora concebido pelo engenheiro militar Antonio Pinto de Figueiredo Mendes Antas, e das janelas do improvisado paço, das quais pendiam riquíssimas colchas de damasco, presenciou o desfilar das forças da guarda nacional da legião de São Gonçalo e Niterói, antes de conceder aos seus súditos a graça do beija-mão.

À tarde, D. Pedro II desceu do palácio e assistiu ao Te Deum na igreja de S. João Baptista, passando sob uma têa armada do palácio à porta do templo, feita sob o risco do referido engenheiro Mendes Antas.

Do Te Deum não há que dizer senão que durante a cerimônia foi o imperante incensado por duas formosas crianças vestida de anjos. Foi depois disso que D. Pedro II e sua comitiva passaram para o Largo da Memória, inaugurando o monumento em memória de seu avô, com o simples ato de fazer correr um pouco d'água do chafariz.

Era o monumento todo de granito, assentando a coluna cilíndrica, sobre um pedestal que descansava em uma pequena escadaria. Cercavam-no grandes lajes de granito, sendo octogonal a forma da base.

Além das torneiras, por onde correria a água, tinha o monumento, na face que olha para o oeste, esta inscrição comemorativa:


1816

El Rey Dom João VI...
De saudosa memoria
Deu neste logar beija mão
Quando honrou esta cidade
Então simples arraial
No dia 13 de maio.


Na face de leste havia outra inscrição:


...Em utilidade publica...
E para eternizar o facto
Mandou o imperador o senhor
Dom Pedro II
Construir este chafariz
Sendo presidente da provincia
O senador
Aureliano de S. e O. Continho

1847




Apesar das boas intenções dos presidentes da Província, nunca foi ajardinado o largo da Memória, tornando-se um centro onde se reuniam as lavadeiras, as aves e os cabritos da vizinhança, solidários no desafio às posturas municipais.

Paulo Alves, primeiro prefeito de Niterói (1904), teve piedade do monumento e mandou restaurá-lo, colocando em torno oito lampiões de iluminação à gás, e, talvez por nojo da praça, mandou capiná-la. Da obra de restaurar o monumento foi incumbido o escultor Benevenuto Berna, e aos 7 de Setembro daquele ano, o logradouro e o seu monumento tinham uma nova consagração, diante do presidente do Estado, Dr. Nilo Peçanha; do ministro de Portugal, conselheiro Camello Lampreia; do Dr. Fróes da Cruz, presidente da Câmara; do Dr. Paulo Alves, prefeito, e de outras pessoas gradas.

A Prefeitura fez colocar um medalhão de bronze, com o perfil de D. João VI, em uma das faces, e na outra em baixo relevo, um tacape, um arco, uma flecha e colares de dentes, símbolos do Brasil colonial. Nas outras faces as datas - 1500 a 1822 - 1822 a 1889 - e - 15 de novembro pregadas ao monumento, indicam as três fases do nosso país, Colônia, Império e República, sendo acrescentada mais esta inscrição:


Interpretando a justiça
Soberana da Republica
A Prefeitura Municipal
Mandou restaurar este
Monumento, sendo presidente
do Estado o Dr. Nilo Paçanha
Em 7 de Setembro de
1904


Estas segundas núpcias do município com o monumento terminaram com a sessão solene no Theatro João Caetano (ex-Santa Thereza), na qual, entre outros oradores, o Dr. Oliveira Lima pronunciou um curto, mas bem lançado discurso histórico sobre D. João VI.

A lua de mel, porém, durou pouco... O medalhão de D. João VI, por obra de perversidade, foi abalado e a Prefeitura felo retirar, recolhendo-o ao seu edifício, para evitar que a selvageria se consumasse.

Vieram novos dias e o Largo da Memória, destinado a recordar às gerações que se sucedem, o 13 de maio de 1816, voltou ao que dantes era.

O Dr. Paulo Alves, cuja administração sofreu odiosa campanha, mereceu censuras por este e outros atos que praticou. No memorial apresentado ao seu sucessor, em 1904, escreveu o administrador da cidade estas linhas (pag. 25), que justificam plenamente sua iniciativa:

    "Só D. João VI portanto, destinguio e amou esta cidade, fasendo d'ella a sua estancia de verão, o seu retiro e a sua estação de banhos. Fez paradas e revistas, aquartelou tropas na Armação, deu festas, levantou a terra e animou o povo em cujo seio passava os dias destinados ao repouso e ao recreio. Foi um amigo e um protector d'este então modesto arraial da Praia Grande. Fez construir aqui duas vivendas, uma das quaes ainda existe em ruinas, no bairro de S. Domingos. Por tudo isso a gratidão popular levantou em 1816, no largo que por tal motivo passou a denominar-se da "Memoria" uma modesta columna de granito montada, por utilidade publica como reza a lapida, sobre um bebedouro ao costume de então. O deploravel abandono em que encontrei esse monumento, cujos arredores eram um vasto vasadouro de immundicies e cujo antigo bebedouro servia (permitta-se-me o termo) de cloaca, era o mais esmagador libello do desamor criminoso da cidade á memoria dos seus maiores. Pois bem, o monumento agora está limpo, ajardinado e illuminado. Quatro novas placas de marmore com dizeres em bronze foram collocadas. Á inspiração de Benevenuto Berna devem-se os bellos medalhões contendo o busto do saudoso amigo da cidade e a allegoria ao periodo selvagem do Brazil, que ornamentam hoje as duas faces da columna, até então desguarnecidas. Tudo simples e modesto, é certo, mas digno e sincero. Não estará, ainda assim, justificada a commemoração ou a festa como dizem por ahi?"


Praça Gomes Carneiro

No período entre a Proclamação da República e a reforma de 1904, o logradouro ganharia dois outros nomes. Em novembro de 1889, o largo passou a se chamar, por proposta do vereador José Carlos da Costa Velho, Praça Tenente Coronel José Alves Carneiro, em homenagem a um neto de Helena Francisca Casemira. A denominação não pegou, continuando ser chamado Largo da Memória. Oito anos depois, por proposição do pelo vereador Julio Timbau, o nome foi mudado para Praça Coronel Gomes Carneiro, homenageando um dos heróis do cerco da Lapa, durante a Revolta Federalista de 1897.

É esta a denominação oficial com que foi por último, crismado a antigo Campo de Dona Helena. Esta mudança deve-se ao tenente Feliciano Sodré, quando prefeito de Niterói. Não só esta mudança de nome, mas também a dos melhoramentos de estilo estratégico que o ilustre engenheiro de fortins fluminenses ali introduziu em 1913. As obras deram à praça um estilo europeu de ajardinamento e foram colocadas quatro estátuas de mármore, esculpidas por Modestino Kampo, representando as estações do ano, e as figuras de quatro leões, também em mármore.

Havemos de convir que o valor histórico do nome do bravo general mineiro, Gomes Carneiro, não poderia destruir o prestígio tradicional e histórico dos acontecimentos intimamente nossos, como os celebrados no Largo da Memória. O povo parece ter compreendido, a seu jeito, a troca casada à arquitetura militar da atual Praça Gomes Carneiro, pois que não a reconhecia por tal nome, e sim pelo de Cemitério dos Prazeres e a partir dos dos anos 1920, Rink.

O advento de um esporte muito popular no início do século fez o nome 'Largo da Memória' cair, aos poucos, no esquecimento. Patinar era o esporte da moda, o que levou a Sodré inaugurar também - na mesma reforma - um rinque no local.

Durante muito tempo a praça foi realmente 'passeio público', o povo de Niterói ali se reunia aos domingos e feriados, especialmente nos dias de Carnaval, até que, após a Revolução de 1930 na administração do Prefeito Júlio Limeira da Silva, foi cometido o primeiro atentado contra essa obra de arte, transformando-se a fontes artísticas em fontes luminosas, obra em desacordo com o conjunto, havendo sido retiradas dessas fontes as estátuas de mármore que aí existiam, estátuas que mais tarde Alberto Fortes mandou colocar na Praça Enéias de Castro (no Barreto) e depois transferidas para a Praça Arariboia.

O rinque de patinação desapareceu em outra reforma - promovida pelo prefeito Alberto Fortes, em 1958, mas a denominação popular permaneceu. Se são denominações pejorativas estas últimas, porque não voltamos a chamar de "Largo da Memória" um logradouro que, por si só, conta parte da história de Niterói. Ali está parte de nossa memória.

Fontes: Pedro Argemiro, O Fluminense, 1993; Romeu de Seixas Mattos, O Fuminense, 1974; Maristela Chicharo de Campos, O Governo da Cidade: elites locais e urbanização em Niterói, 2006; Manoel Benício, O Fluminense, 1909; Revista Fon-Fon, 1919










Publicado em 28/09/2022

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