Cap. 38 - 'Niterói em Três Tempos', por Heitor Gurgel
Niterói, anotou o cronista da cidade, Nivaldo de Aguiar Lopes em uma micro reportagem para 'O Estado' (09/09/1957), sempre teve tipos populares que desapareceram sem deixar vestígios e maiores recordações. Nesse caso estava o
Catinga de Onça que se dizia estudante de medicina e descendente de destacada família do Fonseca. Meio gira, gostava de fazer discursos políticos em Icaraí, por onde perambulava, vestindo sempre surradas roupas e não raro uma sebenta casaca de talhe antiquado. Pacífico por índole, embora seus discursos demonstrassem o contrário, o Catinga de Onça só se enraivecia quando alguém por troça ou para enfezá-lo o ameaçava de lhe dar um banho à forca. E foi por esse desamor à água e ao sabão que ele ganhou o apelido pelo qual era conhecido.
Outro tipo das ruas niteroienses chamava-se
Perigo, porque era realmente um perigo quando escutava alguém assim chamá-lo. Fabricante de bodoques que vendia aos garotos dos bairros por onde andava, era com eles que ameaçava a quem o instigava. Com uma pontaria de fazer inveja aos caçadores mais exímios, Perigo com o seu bodoque não perdia rolinha, mesmo que ela estivesse pousada nos mais altos fios elétricos ou nos mais distantes galhos de árvores. Rolinha que ele mirasse, era rolinha morta. Magro, usava uma barbicha rala que lhe dava um certo ar patriarcal. Perigo era frequentador assíduo do Jardim Icaraí, das praias das Flechas e Icaraí.
Jesuíno, simples vendedor ambulante de doces, tinha uma maneira original de apregoar suas guloseimas. Com o tabuleiro na cabeça, lá se ia ele gritando, a pleno pulmões, pelas ruas de Icaraí e Santa Rosa: "Aqui vão as mais gostosas e custosas especialidades de doces: 'Bom Bocados', que deixam muita preta de água na boca; as 'Cocadas Pretas ou Puxa', que as brancas tanto gostam; os deliciosos 'Suspiros', os 'Beijos de Moça', de moça mesmo porque não vendo beijos de velha!!..." E, quando numa esquina ele mal parava para descansar um pouco, começavam a aparecer os fregueses e, enquanto os ia atendendo, Jesuíno recomeçava a sua cantoria: "Aproveite minha gente, que doce de Jesuíno é mais que doce, é doçura"...
Jesuíno era tão afreguesado em Icaraí e Santa Rosa, bairros que ele percorria de ponte a ponta, dia sim, dia não, que era a pessoa mais conhecida ali. Não havia dona-de-casa, criança ou moleque que não o conhecesse. Jesuíno tinha uma mania que concorria para sua popularidade. Se por acaso um de seus fregueses ou alguém de sua família morresse ele comparecia ao enterro, envergando uma roupa preta e de gravata, levando sempre umas flores para depositar no caixão do falecido. E fazia questão de cumprimentar e expressar sua dor à família enlutada.
Desde o Governo Ary Parreiras, havia um cidadão que frequentava diariamente o Palácio do Ingá. Baixotinho, quase imberbe cabelos pretos, bem falante, ele era por demais conhecido dos antigos contínuos do Palácio já que o viam aparecer todos os dias úteis, mal o portão da rua se abria. Entrava, cumprimentava o porteiro e ia direto pare um enorme salão de espera onde ficavam as pessoas que queriam falar com os Oficiais de Gabinete. O 'Homenzinho' sentava-se, pegava num jornal velho deixado por alguém e começava a ler pachorrentamente. Lá pelas tantas, levantava-se dirigia-se ao primeiro contínuo que encontrasse e reclamava contra a demora em ser atendido. O funcionário dava uma desculpa qualquer e ele voltava a sentar-se na poltrona até que, findo o expediente, o porteiro a ele se dirigia dizendo que ele voltasse outro dia, pois o 'Doutor Fulano' não tivera tempo de o atender. Pachorrentamente como entrara, o 'Homenzinho' saia sem mugir nem tugir.
Com tempo, ou melhor, com os anos, ele entrava cumprimentava o porteiro e se dirigia para o 'necrotério', onde permanecia horas e horas, bebendo cafezinhos e batendo papo com outras pessoas até a hora em que a Bandeira Nacional era retirada do mastro e se fechava o portão de entrada do Palácio. Findava-se mais um dia de trabalho no Ingá. Um dia, porém, em 1939, por ter chegado mais tarde, o 'Homenzinho' conseguiu falar sem o saber com o Secretário do Interventor, coisa que ele não esperava.
Estava o alto funcionário passeando pelo jardim, após almoçar, como de hábito, quando o 'Homenzinho' entrou e ao invés de subir a escada que dava para a portaria, dirigiu-se ao encontro do Secretário a quem tomou por um dos Oficiais de Gabinete. "Eu queria falar com o Secretário do Interventor disse. Tenho uma carta de recomendação. Preciso arranjar um emprego público com urgência, mas quero coisa boa, de muito boa paga e de pouco trabalho. "Venho aqui há muitos anos, mas não me deixam falar a Sua Excelência".
Foi dizendo e metendo a mão no bolso do paletó, dele sacando um amaranhado envelope dirigido ao Ilustríssimo Secretário do Governo fluminense. O Secretário que já o conhecia de vista e sabia de sua velha mania, resolveu atendê-lo pelo que o levou para seu gabinete onde o fez sentar-se numa cômoda poltrona, enquanto se punha a trabalhar, atendendo às pessoas que tinham audiência marcada - os Diretores de Serviços Oficiais de Gabinete do Interventor e mais uma dezena de partes.
E o 'Homenzinho', firme na poltrona, sem pestanejar. Findo o trabalho, já passadas às 19 horas, volta-se o Secretário para o postulante e lhe diz: "Veja como são as coisas; o senhor velo pedir-me um emprego de boa paga e de pouco trabalho, coisa que também ando atrás, faz muito tempo. O senhor assistiu apenas a metade do meu dia de trabalho, eis que chego aqui habitualmente antes das 9 horas da manhã. Vamos fazer um acordo: primeiro vou ver se arranjo um emprego desses para min, e logo que o consiga, prometo-lhe arranjar outro para o senhor!!
Foi quando o 'Homenzinho', ao que parece, se deu conta de que estava na presença do Secretário do Governo, pessoa que ele há muitos anos porfiava em falar. E ainda mais, ficou certo de que o seu pedido não podia e nem devia ter sido feito, pois colocação rendosa e pouco trabalhosa, toda a gente quer... E nunca mais o 'Homenzinho' apareceu no Ingá.
Talvez não haja homem algum, morador em Niterói, de 1920 a 1955 que não tivesse, pelo menos uma vez, se utilizado dos serviços de
Carmine Mônaco, que durante esse longo período exerceu profissão de engraxate numa das portas do Café Paris, situado no pequeno largo existente até 1943, nas esquinas das ruas da Conceição e Visconde do Rio Branco. Carmine conhecia meio mundo em Niterói e entre seus habituais fregueses havia políticos, homens de negócio, banqueiros e funcionários públicos.
Publicado originalmente no jornal O Fluminense em 26 de dezembro de 1973
Na imagem de capa, o Palácio do Ingá
Série Niterói em três tempos