Cap. 39 - 'Niterói em Três Tempos', por Heitor Gurgel

Quem, morador em Niterói ou a esta cidade vinha amiúde, não conhece um anãozinho vendedor de bilhetes de loteria, na Ponte das Barcas?

Joãozinho é um dos nove irmãos Anchieta, nascidos em Maricá, todos, como seus pais, exceto ele, de estatura normal. Mas, Joãozinho tem uma interessante história a contar.

Num belo dia de maio de 1923, tinha ele apenas 14 anos, deixou Maricá e veio para Niterói tentar a vida. Embora soubesse ler, escrever e contar, por causa de sua baixa estatura só conseguiu arranjar o emprego de vendedor de bilhetes, sua única ocupação ate hoje. Ao tempo, já existia a Loteria do Estado, com duas extrações semanais e prêmios maiores de 25 a 50 contos de réis. Nesses cinquenta anos de atividade, Joãozinho vendeu a sorte grande muitas vezes, recebendo de alguns felizardos pequenas gratificações. Mas, Joãozinho nunca se aborreceu por isso; para ele, a felicidade estampada na cara do freguês bafejado pela sorte, sempre foi a sua maior recompensa.

Uma vez, restou-lhe à última hora, um bilhete inteiro e, para devolvê-lo, Joãozinho começou a atravessar às carreiras, como lhe permitiam as perninhas curtas, a distância que separava a Estação das Barcas, do Largo do Loureiro, que era uma pequena praça no canto da Rua da Conceição com a Rua Visconde do Rio Branco, hoje desaparecida. La é que ficava a Casa Lotérica para a qual Joãozinho trabalhava.

Por aquele tempo, os bondes contornavam a Praça Martim Afonso para voltar aos bairros que serviam. Justamente, nessa tarde, os bondes estavam todos parados, um atrás do outro, por falta de energia elétrica, dificultando quem quisesse atravessar a praça com destino à Rua Visconde do Rio Branco, que dava então, mão dupla, para bondes e automóveis. Tais imprevistos concorreram para que Joãozinho só pudesse chegar à Casa Lotérica 5 minutos além da hora convencionada para a devolução de bilhetes não vendidos.

Triste com o insucesso, Joãozinho sentou-se num banco da pracinha, pensando com quem iria arranjar o dinheiro para pagar o bilhete encalhado, já que o que havia ganho de comissão com os bilhetes que vendera, não chegava. E matutando, puxando pela cuca, ainda estava ele, às 15 horas, quando resolveu voltar para casa. Foi então que ele viu um empregado da Casa Lotérica a lhe fazer acenos e mais acenos. Julgando que o chamavam para receber o bilhete que tinha em mãos, Joãozinho presto levantou-se e para lá se dirigiu, contente. Vinte e cinco contos de réis! A sorte saíra para Joãozinho! O bilhete encalhado tirará o 1º prêmio! Foi uma aleluia para o anãozinho e seus amigos. Toda a Praça Martim Afonso vibrou de contentamento.

Dias depois, com parte do dinheiro recebido Joãozinho comprou um terreno numa pequena rua, lá para os lados de Santa Rosa, aberta precariamente por uma companhia de loteamento, e que o rio transformara num lamaçal. Foi o início do pé-de-meia de Joãozinho que, economizando sempre, pôde, em 1947, construir a sua casa própria. Mas a rua continuava lamacenta, sem água e sem esgoto. Hoje, aquela ruazinha transformou-se na bonita e espaçosa Avenida Ary Parreiras, construída pelo Governador Roberto Silveira, melhorada pelo Prefeito Silvio Picanço e iluminada pelo Governador Paulo Torres. Mas a casa de Joãozinho só foi mesmo beneficiada de todo com a construção da segunda pista da avenida, no governo do Prefeito Emilio Abunahman. Contando estas coisas, Joãozinho quis reverenciar nos governantes do Estado e do município que, o fizeram proprietário de uma casa de altos e baixos que vale hoje mais de Cr$ 200.000.00.

Joãozinho não se casou, mas tem e sempre teve família. Não, leitor amigo, não tire conclusões apressadas. O grande pequeno João sempre cuidou dos irmãos mais moços prestando-lhes assistência financeira, graças à qual puderam educar os filhos. Ainda hoje moram com ele duas irmãs, sobrinhos e um cunhado. Dois de seus sobrinhos, o Capitão-de-Mar-e-Guerra Lourival Anchieta e a irmã de caridade Maris Luísa, do Colégio de N. Sa. das Mercês, são o seu maior orgulho e a eles Joãozinho deve dias de grande felicidade e alegria, quando receberam o espadim da Escola Naval, e o véu de noviça.

Joãozinho aproveita-se do ensejo para contar que o dia mais triste de sua vida foi o dia 24 de agosto de 1954, quando morreu Getúlio Vargas. E prosseguindo no mesmo embalo diz que é amigo do Comandante Amaral Peixoto, que sempre que vem a Niterói e o vê, acena-lhe amigavelmente com a mão, quando não se achega para cumprimentá-lo. Vez por outra, o Comandante compra-lhe bilhetes. Mas o tipo humano que Joãozinho mais admirou e estimou foi o poeta e boêmio Luís Leitão, que fazia ponto no Restaurante Miramar. Quando o vate morreu, Joãozinho chorou, pôs luto, foi ao enterro, à missa de sétimo dia e à de mês.

Dos antigos homens de Niterói, Joãozinho diz que guardou boas recordações de vários deles, como o Dr. Jerônimo Dias que, além de freguês era seu médico; do Desembargador Itabaiana de Oliveira (o velho desembargador que teve dois filhos também com assento no Tribunal de Justiça do Estado); do Desembargador Oldemar Pacheco, homem duro e bom ao mesmo tempo, que, quando à noite regressava a Niterói e se punha a atravessar a Praça Martim Afonso em direção à Rua Dr. Borman, onde morava, dispersava, sem o saber, todos os malandros que faziam ponto na praça. E ele também se lembra com saudades do "seu Antonio Paz", homenzarrão simpático que, não acreditando na sorte que não fosse fruto do trabalho, não comprava bilhetes de loterias.

Do ex-prefeito João Brandão Júnior, "sujeito mal-encarado e que quando se zangava dizia terríveis nomes feios", Joãozinho asseverou que a "raiva dele era como chuva de verão: passava logo..." Embora as relações entre ele e o seu xará prefeito, não fossem grandes, certa vez Joãozinho precisou de um favor dele. Subiu as escadas da Prefeitura, deu seu nome ao porteiro e entrou meio encabulado e sem graça no gabinete do "homem de cara feia", dali saindo minutos depois, servido e alegre.

Joãozinho lembra-se, ainda com saudades, do Comandante Ary Parreiras, do Almirante Protógenes Guimarães, do Desembargador Ferreira Pinto, dos ex-prefeitos Gustavo Lyra e Ribeiro de Almeida. Dos homens agora em evidência e que ele conhece bem e gosta estão o Marechal Paulo Torres e o ex-prefeito Emílio Abunahman. Mas o político fluminense que ele mais admirou e estimou foi o falecido Roberto Silveira, a quem conheceu ainda ginasiano e com quem tirou um retrato, que guarda com carinho e mostra com orgulho, dizendo: "desde menino que o Roberto era meu amigo; depois como governador continuamos amigos". E Joãozinho, terminando a sua longa e curiosa história, justificou a estima por Roberto Silveira: "além do mais, Roberto era do Partido de Getúlio...".


Publicado originalmente no jornal O Fluminense em 27 de dezembro de 1973

Na imagem de capa, o Largo do Loureiro.


Série Niterói em três tempos








Publicado em 17/05/2023

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