Cap. 43 - 'Niterói em Três Tempos', por Heitor Gurgel
Entre as distrações que o niteroiense contava nos princípios do século, sobressaíam os recitais de música nas praças e jardins públicos. No antigo Largo do Quartel (Praça Fonseca Ramos), no Largo de São João (Praça D. Pedro II) e no Campo de São Bento, aos domingos, a Banda da Polícia Militar dava concertos, sempre muito aplaudidos pelo povo que acorria para assisti-los. Aliás, essa prática vinha dos tempos do Império quando a "briosa" se chamava Corpo da Polícia Provincial. A banda era então o orgulho do Coronel Gomes Machado porque, não raro, ela era requisitada para tocar na Corte, em festividades a que compareciam os imperadores.
Dessas boas reminiscências restam hoje apenas os coretos, alguns em estado de ruins, todos, porém, sem serventia, abandonados. O belo Campo de São Bento teve suas retretas sempre muito frequentadas, principalmente no verão, quando à sombra de folhudas árvores, sentavam-se famílias inteiras, gozando a fresca da tarde e escutando com enlevo as músicas tocadas. Mas, os concertos públicos acabaram, como acaba tudo neste mundo.
O último concerto, como informou o conceituado cronista da cidade na década de 40, Divaldo de Aguiar Lopes, em colaboração para o 'O Estado', realizou-se num domingo de setembro de 1921, no Campo de São Bento:
"Estávamos então na primavera e a banda executara brilhantemente, como de hábito, um repertório de muito bom gosto, entremeando músicas clássicas com algumas músicas populares, em perto de trezentos, aplaudiram calorosamente o final, depois de ter a banda tocado dois números extras, atendendo aos pedidos de bis do povo aglomerado ao redor do coreto. E já era noite fechada quando a banda se retirou e o povo começou a se dispersar, certo de que no domingo seguinte um novo concerto seria executado na Praça D. Pedro II, a quem cabia à vez. Mas nesse domingo e nos seguintes o povo esperou em vão pela banda. Acabara-se uma das distrações prediletas do povo, talvez a mais inteligente que o Governo podia dar."
Praça Martim Afonso
A que hoje se chama Praça Arariboia chamou-se primitivamente Porto das Faluas, denominação de origem popular que manteve até 1830 e que nasceu do fato de ser aquele ponto o ancoradouro das faluas que faziam o trajeto Rio-Niterói. Na primeira planta da cidade estava previsto que no Porto das Faluas seria construída una praça de dimensões maiores que o Rossio do Pelourinho (atual Praça Floriano Peixoto) onde se venderia peixes e hortaliças. Era também pensamento do Governo Imperial permitir no local um mercado diário para a venda de galináceos, de modo a combater os ambulantes que faziam seus negócios de porta em porta, sem nada pagar à Real Ucharia. Assim, cinco anos eram passados quando surgiram no Porto das Faluas umas barracas para a venda de peixe e hortaliças, de galinhas e ovos.
Em 1833, o largo fronteiriço ao Porto das Faluas tinha duas entradas para a Rua da Conceição, que era então uma vila cheia de casinholas construídas com vários alinhamentos e que davam à rua, forte sinuosidade. Na planta da cidade, figura Porto das Faluas entre as ruas São Pedro, direita da Conceição e o Canto do Loureiro. A grande transformação do Porto das Faluas ocorreu em 1841, quando no terreno se construiu a Praça do Mercado que a planta primitiva da cidade previa "em parte sobre o aterro que se faria à Rua da Conceição e indo até o mirante do Brum". Esse mirante ficava no Valonguinho, na aba do Morro do Brum, depois Morro de São João. Esse Brum, Alfredo de Souza Brum, era neto ou bisneto de um inglês que possuía umas faluas e sumacas para o transporte de cargas entre as duas cidades que a baía de Guanabara une. Transformada em praça, o Porto das Faluas desapareceu completamente, quando se construiu o prédio do mercado, que foi inaugurado em 1846.
Três anos depois, a praça, com grande movimento que o mercado propiciava, se tornou pequena e por isso a Assembleia Provincial autorizou um empréstimo à Câmara Municipal, a fim de que esta desapropriasse pela quantia de 130 contos de réis, uma chácara dos herdeiros de Brum e uns casebres existentes no local, de modo a ampliar o perímetro do logradouro, o que só ocorreu em 1854, quando governava a Província o Barão do Rio Bonito. No início das obras houve solenidade da fundamental, à qual compareceu Imperador Pedro II. E a praça, que viria a chamar-se Praça Martim Afonso, tornou-se ampla, maior do que o Rossio do Pelourinho, como queriam os elaboradores da primitiva planta da cidade, sob a esclarecida vigilância do Juiz de Fora, José Clemente.
Em 1902, derrubando o prédio do mercado, no terreno foi encontrada uma caixa de zinco com algumas moedas e jornais de 1854, além de uma lápide de mármore onde se lia uma inscrição em latim, cuja tradução foi divulgada pelo admirável e saudoso cronista Manoel Benício, e que dizia:
"A Deus ótimo e Máximo, D. Pedro II, piedoso e clemente Imperador do Brasil, pôs a primeira pedra da praça pública do mercado, na cidade de Niterói, sendo benzida conforme os ritos e debaixo da invocação do padroeiro da cidade, São João Batista, pelas mãos do padre Tomás de Aquino. Sua Majestade, o Imperador, atento em proteger as empresas de utilidade pública, designou-se em pessoa, na presença da Imperatriz, D. Tereza Cristina, sua augusta esposa, consagrar e fundar o monumento, sendo vice-presidente da Província, o Barão do Rio Bonito, conforme desejos da Câmara Municipal de Niterói, no dia 26 de junho de 1854".
Vinte e cinco anos depois, em 1879, os jornais protestavam contra o abandono em que jazia a Praça do Mercado e o próprio edifício já então cedido a particulares, que o transformaram em "uma espécie de habitação coletiva e sedes de sociedades folgazãs, o que era uma calamidade e um desaforo", gritavam o povo e os jornais. E tal promiscuidade lavrada no prédio do mercado que só umas poucas lojas eram ainda alugadas a peixeiros e quitandeiros; a maioria seria mesmo simples morada de gentes de poucos recursos.
'O Fluminense', em reportagem de maio daquele ano, mostrou que certas lojas abrigavam até "vendedoras de amor barato". Em 1881, ocorreu no edifício um crime que a cidade inteira comentou. Um sapateiro italiano enciumado, depois de assassinar a esposa, rasgando-lhe o ventre, degolou o próprio filho e a seguir suicidou-se seccionando a carótida. O sangue das vítimas escorrendo para a praça foi que denunciou o pavoroso crime aos primeiros madrugadores que foram chegando ao mercado. Foi tamanha a repercussão desse crime, que a loja, palco da tragédia, nunca mais foi alugada, por falta de interessados. Ninguém queria nada com a loja do sapateiro... e o velho prédio do mercado, assim mesmo caindo aos pedaços, com várias lojas desalugadas, com lixo espalhado, por todo o canto, serviu de quartel para o 38º Batalhão de Infantaria do Exército, quando dos acontecimentos de 1893.
O mais interessante, no que se refere ao mercado e sua praça, foi o que aconteceu depois de 1905. Nesse ano, o prédio foi adquirido pelo Visconde de Morais, para ser demolido. Em seu lugar seria construída a nova estação das barcas da Cantareira. Ao comprar o imóvel, o Visconde comprou também o chafariz que ficava no pátio do mercado e que pertencia à cidade, como contarei ao tratar da Praça Joaquim Murtinho, o velho Valonguinho.
Publicado originalmente no jornal O Fluminense em 03 de janeiro de 1974
Na imagem de capa, o Capo de São Bento - Década de 1920
Série Niterói em três tempos