Cap. 46 - 'Niterói em Três Tempos', por Heitor Gurgel
Praça Joaquim Murtinho
Chamou-se em priscas eras
Largo do Valonguinho porque, numa casa com pátio à frente, situada junto à íngreme subida para o Morro de São João ou do Hospital, existiu um pequeno, mas ativo mercado de compra e venda de escravos, recém-chegados da Corte. Como Valongo (I) se chamava, no Rio de Janeiro, o grande depósito de escravos que ficava onde hoje é o bairro da Saúde, por Valonguinho (II) ficou sendo denominado o pequeno depósito de escravos de São Domingos e, consequentemente, o Largo, que durante muitos anos assim se denominou. Os mais antigos moradores de Niterói chamam até hoje a Praça Joaquim Murtinho, que foi um médico homeopata
doublé financista da Primeira República, de Valonguinho.
No dia 30 de abril de 1847, aproveitando a presença do Imperador Pedro II em Niterói, o Governo Provincial pediu à Sua Majestade que presidisse à inauguração de um artístico chafariz, no Valonguinho. Esse chafariz tem história. Aconteceu que alguns cavalheiros amantes da deusa Terpsícore se cotizaram para oferecer um baile ao Presidente da Província, que também gostava de dançar o seu minueto. Mas o Conselheiro
Aureliano de Oliveira Coutinho, aconselhado certamente por seu bom senso mandou dizer aos promotores da festa que preferia que eles aplicassem o dinheiro apurado na construção de um chafariz para a pequena praça que então existia no começo da Rua da Conceição, esquina da Rua da Praia e que se chamou
Canto do Loureiro (III) e antes "Beco do Molhe". E assim se fez: não houve baile, mas a cidade ganhou mais um chafariz, construído pelo Engenheiro Provincial Reis Alpoim.
Os maus fados, contudo, tramavam contra o chafariz e tanto que, em 1874, o transferiram para dentro da Praça do Mercado, fronteira ao Canto do Loureiro, onde, no entanto, não durou muito, pois logo derrubaram o velho pardieiro do mercado para a construção da Ponte Central das barcas. O Visconde de Morais, dono da Cantareira, adquirindo o antigo prédio do mercado, comprou também o chafariz, que depois ofereceu à Municipalidade.
A Praça Joaquim Murtinho, no ano da Graça de 1973, encolheu bastante e há muito não mais ostenta o famoso chafariz. Por outro lado, a mudança da fisionomia do Valonguinho começou em 1951, quando a Faculdade Fluminense de Medicina principiou a construir a sua
Policlínica e, para fazê-lo, tirou um pedaço da praça junto ao Morro de São João.
Um ano e tanto depois, foi o Governo estadual que tirava uma fatia da praça e do morro para construir um edifício que abrigaria a sede da Comissão Estadual de Energia Atômica, subordinada à Comissão Federal, então patrioticamente dirigida pelo Almirante Alvaro Alberto, há muitos anos ligado à terra fluminense. Aliás, coube ao cientista César Lattes, que havia sido convidado para dirigir a Comissão Estadual de Energia Nuclear, o esboço do edifício, por ele feito a atendendo às peculiaridades e ao destino do prédio. Tendo o Comandante Amaral Peixoto deixado o Governo antes da conclusão do prédio, foi-lhe dado pelo governador Miguel Couto Filho, um destino diferente, não se sabe bem por que. Hoje, o edifício abriga o Centro de Altos Estudos da Matemática.
Todavia, nenhum desses governos, que mexeram na praça, modificou muito o seu primitivo traçado. O Valonguinho só sofreu transformação substancial quando se concluiu a ligação da Rua de São Sebastião com Visconde do Rio Branco, no Governo Badger Silveira. Essa ligação, de inegável valia para a fluidez do tráfego vindo de Icaraí com destino ao centro da cidade, cortou a praça pelo meio, ficando a porção maior fronteira ao Centro de Estudos do MEC.
Mais recentemente, nova modificação se fez, com a construção de um jardim na porção menor da praça e ao qual se deu nome de
Comendador Ilídio Soares, homenageando a um grande e operoso comerciante que ali teve o seu negócio, durante quase sessenta anos, desde os tempos que se dedicava aos transporte de cargas, entre Niterói e o Rio de Janeiro, por meio de faluas e barcaças. Nesse pequeno jardim, entre três ou quatro canteiros, pobres de grama e de flores, há uma lápide com a efigie do homenageado.
Mas o Valonguinho, entre outras, tem uma estória a contar e que diz respeito à inauguração da primeira
feira-livre em terras de Arariboia. Era uma inovação que dera certo no Rio e Niterói quis experimentar. Foi na manhã do dia 1º de julho de 1921, que se concretizou a iniciativa de alguns posseiros e pequenos agricultores de Pendotiba e São Gonçalo. 'O Fluminense', do dia seguinte, comentando que a feira fora um sucesso, realçou que os preços dos artigos vendidos tinham sido mais baratos de 20 a 30% do que nas mercearias e quitandas. A féria, segundo o fiscal dos feirantes, totalizou mais de 9.500$000 réis, considerada excelente.
O Valonguinho foi pouso certo dos Circos de Cavalinhos que visitaram Niterói, nos começos do século, como era também um merecido descanso para os que iam subir o Morro do Hospital. Entre a descida do bonde e o início da caminhada morro acima, os doentes e seus acompanhantes faziam antes uma ligeira parada, debaixo das sombras protetoras das folhudas árvores da praça, para tomar alento para à íngreme subida.
(I) Valongo, segundo Gastão Gruls (in 'Aparência do Rio de Janeiro') é uma abreviatura de origem portuguesa de vale longo, acrescentando o historiador que existe no Porto uma localidade com esse nome. No Rio de Janeiro existia uma rua do Valongo e nela ficava o grande mercado de negros, verdadeiro entreposto onde eram guardados os escravos à venda. Pela lei do menor esforço, Valongo passou a ser também o mercado de negros. Quando alguém dizia: "Vou ao Valongo!", queria dizer que ia ao mercado de escravos.
(II) Valonguinho é também a denominação antiga de um trecho do atual bairro da Gamboa, no Rio de Janeiro. Se Valongo era um vale longo, comprido, passou-se a chamar o pequeno vale da Gamboa de Valonguinho. Quem sabe se por esse fato chamou-se aquele pedaço de São Domingos de Valonguinho? Ou terá sido mesmo a existência da pequena loja para a venda de escravos que deu a alcunha à pracinha?
(III) Manoel Benício, em crônica sobre a Rua da Conceição, disse que ouvira de um antigo morador dessa rua, que à pequena praça se dera o nome de Loureiro, em homenagem a um antigo vendedor de bilhetes de loteria, que tinha seu negócio numa das portas do Café Paris.
Publicado originalmente no jornal O Fluminense em 17 de janeiro de 1974
Na imagem de capa,
Série Niterói em três tempos