Cap. 57 - 'Niterói em Três Tempos', por Heitor Gurgel
Não, leitor amigo, não vou tratar dos dois irmãos, santos de tanta devoção entre fluminenses e cariocas, mas de duas populações gêmeas os habitantes do Rio de Janeiro e de Niterói.
Tratando da gente fluminense, o grande sociólogo Oliveira Viana (in "Populações Meridionais") asseverou que ela era "mais fina, mais socialmente culta pela proximidade, convívio e hegemonia da Corte, cuja ação como que a absorve e despersonaliza". Acabou-se a Corte, o Rio de Janeiro não é mais a capital do País, mas a influência dele sobre a Velha e Gloriosa Província e, em particular, sobre sua acolhedora capital, continua e cresce cada vez mais.
Para se estudar em profundidade a influição a que aludo, é preciso não esquecer que os Estados da Guanabara e do Rio formavam, política e administrativamente, um todo em 1834, quando o Ato Adicional criou o Município da Corte, depois Distrito Federal, capital do País e, que, recusando ainda mais no tempo, até o ano de 1819, pertenciam à Cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, fora de seus muros, entre outras, as freguesias de São João Batista do Icaraí, São Lourenço, São Sebastião do Itaipu e São Gonçalo, pois, como se sabe, a criação da cidade do Rio de Janeiro precedeu à da Província.
Aliás, essa influência se vem alicerçando há muitos e muitos anos, com o convívio diário, íntimo de dezenas e dezenas de milhares de niteroienses, operários, empregados do comércio, funcionários públicos e estudantes que atravessam a baía todos os dias para ir trabalhar ou estudar no Rio de Janeiro e de talvez dez mil cariocas que vêm a Niterói com o mesmo objetivo.
Além desse intercâmbio físico e diário, a influência do Rio de Janeiro sobre a cidade de Niterói (I) se faz sentir também nos niteroienses que têm aqui o emprego, devido aos jornais cariocas, que a maioria deles lê habitualmente e aos programas de rádio e televisão que difundem na Praia Grande os hábitos, costumes e gíria cariocas. Quanto ao argot, aclimatou-se ele tão bem na "banda de cá" que a língua falada por cariocas e niteroienses não difere em absoluto, quer na sintaxe, quer na prosódia. E para estreitar ainda mais esses laços e a comunhão entre as duas populações, aí está, o futebol que possui, em si mesmo, forte poder aglutinador.
Nos dias de grandes jogos no "Maracanã", reúnem-se indivíduos de todas as cores, raças e crenças, que só se apartam em razão de suas preferências clubísticas. E é de ver, nos domingos de clássicos do campeonato carioca de futebol, como saem as barcas de Niterói, apinhadas de "flamenguistas", "fluminenses", "botafoguenses" e "vascaínos" que vão se juntar, no "Mário Filho", aos seus companheiros de clube. Nesses dias, no maior estádio do mundo, não há cariocas e niteroienses, mas homens e mulheres, adolescentes e crianças que torcem fanaticamente por seus clubes, irmanados pela paixão que o futebol desperta.
A propósito da separação física entre as duas bandas da Baia da Guanabara, os tamoios, antigos senhores da região, consideravam-nas uma só terra, unidas pelas águas. Geograficamente ligados, economicamente dependentes um do outro, com as mesmas características socioeconômicas, cariocas e fluminenses e, mais especialmente, cariocas e niteroienses formam um só povo, uma só homogênea população, com os mesmos modismos linguísticos, os mesmos hábitos e costumes, as mesmas aspirações, as mesmas predisposições para o contra, isto é, para a oposição, que se divertem da mesma maneira, amando a praia, o futebol e carnaval. E uma das melhores e maiores provas dessa semelhança é que, em se vendo um niteroiense falando ou agindo, não se dirá que não se trate de um carioca da gema, por sua comum alegria, comunicabilidade, queda para ouvir e contar piadas, o mesmo senso de humor e igual dom inventivo para os
mots d'esprit e
double sens. A diferença que existe entre eles é, pois, nenhuma. Eles são em verdade dois em um, são 'Cosme e Damião'.
Com a Ponte Presidente Costa e Silva ligando Niterói ao Rio de Janeiro, a comunicação entre cariocas e niteroienses se intensificará. Esse novo elo entre elas concorrerá para a futura fusão entre os dois Estados, a largo prazo, que deverá ser feita cuidadosa e paulatinamente, para que a simbiose seja tão perfeita, quanto a de duas bolinhas de mercúrio quando se juntam.
Notas
(I) É óbvio que os fluminenses que residem nos municípios limítrofes do Rio de Janeiro, Nova Iguaçu, São João de Meriti, Duque de Caxias, Nilópolis e até Magé, sofrem, como todo o Estado do Rio, a influência carioca. Contudo, sempre existe uma pequenina diferença em seu linguajar, com modismos próprios do interior e do Norte e Nordeste do País, modismos esses que lhes são transmitidos pelos milhares de filhos daquelas regiões brasileiras que moram nos citados municípios, o que não acontece, com a mesma frequência e intensidade, em Niterói.
(II) Com este artigo encerra-se a série que escrevi para 'O Fluminense', sobre Niterói, contribuição modesta para a historiografia da Capital Fluminense.
Além do diretor deste matutino, a quem já agradeci publicamente, resta-me fazê-lo às seguintes pessoas que me ajudaram no preparo e publicação dos originais de "Niterói em Três Tempos":
Monsenhor Antônio Macedo, Vigário da Matriz de São João Batista; Dr. Salomão Cruz, médico e poeta; Edelweiss Campos do Amaral e Francisco Klors Werneck, historiadores; J.A. de Souza Melo, funcionário do Estado, aposentado; Dr. José Carreteiro, advogado e empresário; Nilo Ribeiro, negociante; José Tertuliano Ferreira, diretor do Patrimônio da Prefeitura de Niterói; Sra. Lia Balard, Chefe de Seção da Diretoria de Obras da Municipalidade; e os jornalistas Olegário W. Júnior, Emmanuel Bragança de Macedo Soares, René Amaral, e demais companheiros da redação, revisão e oficinas de 'O Fluminense'.
Publicado originalmente no jornal O Fluminense em 07 de fevereiro de 1974
Na imagem de capa,
Série Niterói em três tempos