por Vieira Fazenda, em 27 de janeiro de 1903

Como estamos, ainda, dentro da oitava de São Sebastião, vem a pelo lembrar o nome e os feitos memoráveis do valente índio a quem tanto deveram os primeiros fundadores desta cidade (de São Sebastião do Rio de Janeiro).

O fiel aliado de Estácio de Sá nada tem de comum com o celebre Teberyçá falecido a 25 de dezembro de 1562. Ambos receberam, na ocasião do batismo, os apelidos de Martim Affonso de Souza, em honra do primeiro donatário da Capitania de São Vicente.

Frei Vicente do Salvador cometeu o anacronismo de fazer o Arygboia afilhado desse donatário!

Segundo pensa o erudito Theodoro Sampaio, Arygbola composto de ar-yg-boia significa cobra que nasce n'água; é uma serpente aquática, esverdeada e de cabeça escura. Pertencia ele à tribo Temiminós, que segundo alguns, desde tempos remotos, ocupavam terras do atual Estado do Espirito Santo, e segundo outros, batidos e perseguidos pelos Tomoios abandonaram os antigos domínios dentro da baía do Rio de Janeiro, citos na ilha do Maracojá, do Mar Grande, Rasa, Sete Engenhos e atualmente do Governador.

Bem recebidos, em 1555, pelo donatário Vasco Fernandes Coutinho e protegidos pelo jesuíta Braz Lourenço, o principal Maracojaguassú fundou diversas tabas, aumentadas com o auxílio de Piraoby e dos Tupiniquins de Porto Seguro, perseguidos pelos Aymorés.

Derrotados em 1560 por Mem de Sá, voltaram os franceses a ocupar aqui as antigas posições. O governo da metrópole entendeu mandar Estácio de Sá com a missão de expulsar os intrusos e fundar uma cidade, que deveria ter o nome de São Sebastião.

Recebidos auxílios de seu tio, Mem de Sá, dirigiu-se a caminho do sul e fez parada no Espírito Santo com intuito de reunir mais gente e fazer provisão de mantimentos. Convidado por Estácio e pelo ouvidor Braz Fragoso, resolveu o Arygboia, então chefe dos Temiminós, acompanhar os futuros povoadores do Rio de Janeiro.

Como é sabido, Estácio de Sá, ao chegar aqui, vendo as dificuldades que se lhe antolhavam, resolveu ir à capitania de São Vicente em busca de maiores socorros, os quais não foram fartamente concedidos.

Pensamos, salvo erro, que o Arygboia acompanhou até lá seu aliado e foi, então, que o chefe dos Temiminós recebeu, no batismo, por influência dos jesuítas, seus novos nomes.

Estabelecendo o assento da cidade junto ao morro hoje de São João, teve Estácio de Sá por auxiliar infatigável o bravo Martim Affonso, cuja biografia pode ser resumida em poucas palavras - lealdade, bravura, desinteresse, independência de caráter, que mereceram do rei Dom Sebastião recompensas pouco vulgares naqueles tempos. Socorrendo os portugueses, tomou parte o Arygboia em todos os combates e escaramuças, nulificando as ciladas armadas por toda parte, por franceses e tamoios.

No memorável 20 de janeiro de 1567, dia da definitiva vitória, secundando galhardamente os portugueses, o Arygboia à frente de seus companheiros vingava-se nobremente dos antigos opressores de sua tribo.

Ferido Estacio de Sá, em combate, e falecendo em fevereiro, Mem de Sá que viera da Bahia com o fim de coadjuvá-lo, mudou a sede da cidade para o morro do Castelo, demorando-se no Rio de Janeiro até quase meados de 1568.

Julgando-se desobrigado para com seus aliados, o chefe dos Temiminós manifestou desejos de voltar para os antigos penates com o fim de abraçar sua esposa, depois de quatro anos de árduos trabalhos. Folgasse, redarguiu Mem de Sá, de ficar na terra com a sua gente para favorecer e ajudar a povoá-la, por ser do rei, à quem nisso faria serviço e que pedisse para si e para os seus as terras de que houvesse mister e onde as houvesse devolutas.

De fato, Antônio de Marins e sua mulher Isabel Velho, por escritura de 16 de março de 1568 cederam-lhe as terras da Sesmaria da Banda d'além uma légua de costa ao longo da baía e duas pelo sertão, começando das primeiras Barreiras Vermelhas. Desses terrenos tomaram posse Arygboia e os seus em novembro de 1573, já na governação de Christóvão de Barros.

Ali estabeleceu-se definitivamente a Aldeia do São Lourenço, a qual teve seu primeiro assento, como veremos, em outro local. A demora entre a concessão e a posse da Sesmaria explica-se naturalmente pela confirmacão régia e, por que, cremos, depois de 1568 Arygboia foi à capitania pertencente a Fernandes Coutinho, por lá se demorou deixando aqui seus companheiros sob a proteção dos Jesuítas.

No ano supra mencionado, teve lugar o brilhante feito de armas do qual ainda saiu com glória o nosso herói. Sobre tal assunto dão minuciosa notícia todos os historiadores, afastando-se da verdade quanto ao verdadeiro ponto em que foi ferido o combate. Nesse descuido incidiram até Varnhagen e Joaquim Norberto. Somente, há pouco tempo e por indicação nossa, o Dr. Felisbello Freire, em nota de sua - Historia da Cidade do Rio de Janeiro - pôs em dúvida a asserção de todos os historiógrafos.

Por falta de espaço resumiremos o assalto dado à Aldeia do Arygboia, servindo-nos da narração feita pelo ilustrado Dr. Augusto de Carvalho em sua monografia "A Captania de S. Thomé":

    "Os franceses, aliados com os tamoios tinham estabelecido aí (Cabo Frio) uma feitoria, onde faziam grande contrabando, especialmente de pau-brasil, e além disso haviam elegido esse ponto como base de operações, para os seus planos de conquista da baía do Rio de Janeiro. O índio Guaxará, principal cacique dessa região, seduzido com as promessas falaciosas dos seus novos amigos, jurava a completa destruição dos portugueses, e nesse sentido concitava todos os da sua tribo, a qual dominava da baía Formosa para o sul. Na segunda tentativa de conquista da formosa Guanabara os franceses, completamente desbaratados, compreenderam que lhes seria muito mais fácil prosseguir no contrabando do que na luta com os portugueses e seus aliados - os terríveis Temiminós - que tinham tomado boa parte em todos os ataques dirigidos pelo seu invencível chefe. Os tamoios, entretanto, ardiam em desejo de vingança deste a quem atribuíam todas as derrotas que tinham sofrido; assim caindo-lhes muito a ponto a chegada de 4 Naus francesas, que vinham carregar pau-brasil, combinaram, uma sortida a Nictheroy, (sic) para, da um só golpe, tirarem larga desforra de Arygboia e dos seus; e se fossem felizes, voltarem então em ato decisivo às suas armas contra os portugueses."


Realizado o intento, é violentamente assaltada a Aldeia de Martim Affonso que mais uma vez repeliu com todo o denoto os invasores, sendo auxiliado por um reforço de 35 homens sob o comando do capitão Duarte Martins Mourão, enviado pelo então governador Salvador Corrêa de Sá.

Calando as peripécias havidas, tentaremos provar: por esse tempo a aldeia dos Temiminós estava situada do lado da cidade, uma légua de distância e no local, mais tarde, conhecido pelo nome de Bica dos Marinheiros e suas imediações.

Ali existiu uma enseada que conservou por muito tempo o nome de porto de Martim Affonso, segundo nos refere a obra de Gabriel Soares ou de Francisco Cunha, como quer o Dr. Zeferino Cândido. Perto corria o rio Yabubiracica (ou Jabubiracica), em cujas margens assentaram suas tabas os companheiros do Arygboia.

Mudado o assento da cidade, entrou Mem de Sá e seu sucessor a dar sesmarias a particulares não só no sítio da Villa Velha como nas cercanias do Castelo. Tanto isso é verdade que o governo geral mudou em 1567 a direção da sesmaria concedida pelo sobrinho Estácio de Sá ao concelho da cidade. Os sítios, hoje, do Catete, Laranjeiras, Lapa, Passeio Público, Santa Luzia, Ajuda, Santo Antônio, etc., tiveram desde então posseiros sem foro nem pensão alguma. Na várzea cortada de pântanos e lagoas era impossível a morada dos índios de Martim Affonso.

Por seu lado, os portugueses não podiam prescindir do auxílio dos Temiminós, no caso de um súbito ataque à nascente cidade e tinham necessidade de tê-los à mão. Demoveram a dificuldade, parece-nos, os jesuítas, oferecendo estabelecimento provisório em terras de sua grande sesmaria que ia de todo o percurso do rio Iguassu (Catumbi) a taperas de Inhaúma e fora concedida antes da do concelho, a requerimento do Padre Gonçalo de Oliveira (1º de julho de 1565). Foi, pois, ali que se feriu o combate do qual saiu vitorioso Martim Affonso. Na nossa humilde opinião, o reforço mandado por Salvador Corrêa caminhou por terra e não à força de remos como disse Joaquim Norberto em sua importantíssima "Memoria", impressa no tomo 17 da Revista do Instituto Histórico. E como poderia Mourão atravessar a baía quando além das 4 Naus francesas e 8 lanchas estava o mar coalhado de número sem fim de canoas? (Varnhagen). Teria sido necessariamente surpreendido pelos contrários e não lograria o intento de socorrer Arygboia e seus companheiros.

Essas razões atuaram sobre o espírito do ilustrado Couto de Magalhães; quando esse emérito brasileiro, por ocasião de apresentar projeto sobre as festas do quarto centenário do descobrimento do Brasil, procurava estudar a vida do valente Arygboia.

Pretendia o general levantar à sua custa, monumento, em São Lourenço, comemorativo do assalto de 1568.

Pouco tempo antes de falecer dizia-me o general: "você tem toda a razão, a coisa há de ser feita ali, por perto do hospital dos Lázaros e não na Praia Grande." Depois veio a morte e tudo ficou em projeto.

Lendo, com atenção, a "Historia de la fundacion del Collegio del Rio de Henero y sus residencias", impressa no volume 19 dos Anais da Biblioteca Nacional, encontramos às páginas 135 provas suficientes para sustentar que em 1573 ainda a aldeia de São Lourenço estava do lado da cidade do Rio de Janeiro e não na Armação.

Se isso não bastasse, temos ainda um precioso documento extraído de uns velhos autos sobre litígio de terrenos na praia de Santa Luzia. É a cópia passada pelo tabelião José Antônio dos Santos Ameno em que certifica o seguinte:

"Revendo um livro antigo que serviu neste cartório de tombo das costas de Sesmarias no anno de 1573, sendo escrivão Pedro da Costa, nele, a fls. 135 verso se acha lançada a carta de sesmaria passada a Nuno Tavares, mercador, em data de 11 de setembro de 1573, constante de uma petição e despacho do governador Christovão de Barros. Tavares pedia cem braças de terra de largo e duzentas de comprido no Cabo da Virgem onde se chama o penedo do descanso as quaes cem braças se mediram da lagoa que está na terra de Francisco de Sousa indo pelo caminho que vem da Aldeia de Martim Affonso cortando ao curral de Antonio de Marins até a praia do oleiro e as duzentas pelo monte arriba ao longo do caminho que vai pelo monte arriba á rossa de Salvador Correa de Sá."

Se em setembro de 1573 havia um caminho que vem da aldeia de Martim Alfonso, claro está que esta existia nas vizinhanças da cidade e não, repetimos, em Nictheroy.

Logo, é de todo crédito o documento de posse (22 de novembro de 1573) impresso por Joaquim Norberto, na "Memória" atrás apontado. Foi então, e só então que o Arygboia e os seus tornaram-se senhores e possuidores da sesmaria cedida por Antonio de Maris Coutinho.

Do Arygboia pouco mais encontram, nos cronistas do tempo. É bem conhecido um fato citado por frei Vicente do Salvador. Em 1575 chegou, por governador, o Dr. Antonio de Salema, que foi cumprimentado pelas pessoas importantes da colônia, incluindo Martim Affonso, ao qual como o governador dessa cadeira, e ele em se assentando cavalgasse uma perna sobre a outra, segundo o seu costume, mandou-lhe dizer o governador pelo interprete que ali tinha, que não era aquela boa cortesia quando falava com um governador que representava a pessoa de El-Rei.

Respondeu o índio de repente, não sem cólera e arrogância, dizendo-lhe: "Se tu souberas quão cansadas eu tenho as pernas, das guerras em que servi a El-Rei, não estranhavas dar-lhes agora este pequeno descanso, mas já que me achas pouco cortesão eu me vou para minha aldeia, onde nós não curamos desses pontos e não tornarei mais à tua corte".

Acompanharia Martim Affonso a Antonio de Salema na expedição a Cabo Frio? É quase certo, segundo se infere das palavras do próprio frei Vicente. Em 1584, foi o Arygboia visto por Fernão Cardim, e, segundo Varnhagen vivia, ainda, em 1587. Faleceu afogado, conforme uns, perto da ilha de Mocanguê mirim, e outros junto à ilha do Fundão.

A biografia do aguerrido aliado dos portugueses foi escrita pelo cônego Januário da Cunha Barbosa, por modo muito resumido e cheia de citações de Brito Freire e Duarte Nunes. Do Arygboia só resta a memória de seus feitos. Na aldeia de São Lourenço não se encontra, hoje, talvez, um descendente direto dos bravos Temiminós.

Por que? Perguntae-o ao ódio, às perseguições, às trapaças, ao esbulho cometidos pelos ingratos sucessores daqueles a quem tanto serviram Martim Affonso e seus leais companheiros. Mas, perguntarão os leitores - o que temos com essas velharias?

Simples pretexto, responderemos, para encher algumas tiras de papel.

Originalmente publicado em "A Notícia" em 27 de janeiro de 1903
Pesquisa e edição de Alexandre Porto

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Publicado em 26/01/2023

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