Por Emmanuel de Bragança*
Em pouco mais de meio século Niterói passou dos 100 anos para os 400 anos, sem uma satisfação aos que estudam e conhecem sua história. Antes, em 1919, não se justificava o passado: todos queriam o centenário, e o que ficou mesmo valendo como data de fundação da cidade foi o 11 de agosto de 1819, em que se instalou a vila. Agora inverte-se o quadro: já não se aceita a criação da vila: volta-se para as origens mais remotas e endeusam-se homens e fatos sem significado algum para a sobrevivência, evolução e desenvolvimento da cidade. Até onde são válidos os critérios de escolha dessas datas centenárias, e até onde se distorce a verdade histórica, a pretexto de mais uma comemoração?
Em outro artigo, alinhamos aqui alguma coisa sobre as confusas origens de Niterói. Não tínhamos, exatamente, a intenção da polêmica. Queríamos, apenas, dar nossa parcela à tarefa de corrigir nossa doentia historiografia. Tão doentia, aliás, que até leva mentes que poderiam ser lúcidas ao desfastio de procurar heróis (do melhor estilo homérico) em pleno século das viagens espaciais.
Esperávamos alguma reação: são os ossos do ofício. É célebre a estória do "ovo de Colombo", que agora se repete. Todo mundo comemora Arariboia, Quarto Centenário etc. E ninguém contesta. Quando surge um primeiro vem logo um segundo ainda se espreguiçando de muitas canseiras, e boceja ociosamente: "isso é o óbvio ululante".
Foi assim que surgiu o Sr. José Inaldo, com meia dúzia de laudas desconcertadas, contestando aqui, aceitando acolá, sofismando adiante e mistificando quando lhe aprouve, para finalmente concluir por uma ansiedade, um nervosismo febril e esclerótico, uma preocupação aflita em quatrocentar.
Em última análise, seu artigo não alterou o quadro que aqui. Em tese, tudo foi aceito. E o articulista, que tem bons livros em casa, contestou mais o autor do que a obra. Assim sendo, não pretendíamos a tréplica, a que ele imediatamente também resignou. Mas, considerando que muitas de suas afirmações saíram de uma cartolinha mandrakiana que os historiadores não usam, somos forçados, por uma questão de respeito ao leitor (que não gosta de ser enrolado), a rebater nesta tecla.
O que afirmamos em nosso artigo? Que nenhum historiador considerou o 22 de novembro como data de fundação da cidade: eles não estavam preocupados em quatrocentar; que a cidade é uma entidade jurídica, bem diferente de uma simples sesmaria; que a data do ato edílico que instituiu uma cidade pode ser considerada como de sua fundação; que não há quarto centenário a comemorar-se em 1973; que os famosos combates de 1568 foram travados no Rio de Janeiro; que pelo menos 12 pessoas foram galardoadas com sesmarias, antes de Arariboia; que a primitiva capela de São Lourenço (1570) ficava no Rio de Janeiro; que o padre Gonçalo de Oliveira não podia dar assistência à Aldeia de São Lourenço depois de 1574; que os verdadeiros núcleos de civilização, em Niterói, foram engenhos e fazendas florescentes no século XVIII; que o brilho e a grandeza de São Lourenço são fantasiosos; que a estátua de Arariboia está no lugar errado.
Até aqui não nos contestou o Sr. Inaldo. O que mexeu com ele foram três outras afirmativas: a posse de Arariboia foi decorrente de uma concessão qualquer; a Aldeia de São Lourenco ficou no Rio de Janeiro depois de sua morte; não existe vestígio de capela de São Lourenço (em Niterói) anterior a 1627.
Para nos contestar essas três "verdades mal comportadas", fez ele um belo arrazoado, bordejado de considerações pouco científicas e de insinuações pouco históricas, nada concluiu, senão que é preciso quatrocentar. E abriu-o com a seguinte profissão de fé:
"... contestamos a afirmação solene, desafiadora, em tom de tese demonstrada, adjetivada de atitudes iconoclastas contra historiadores que pesquisaram, com seriedade e desprendimento, os primeiros embasamentos documentais da história da Banda D'além".
E o que aceitaria o Sr. Inaldo? Uma afirmação leviana, fracolejante e insegura, em tom de blague, respeitosamente dirigida a autores ultrapassados e nem sempre corretos? Isso o articulista não teria de nós. O Sr. Inaldo pode ter uma boa biblioteca e citar abundantemente Pizarro, Serafim, Zé Honório e tantos mais, que também cometeram seus errinhos, como ele verá. Nós preferimos o documento frio e o testemunho contemporâneo a qualquer desses cronistas, por mais informados que sejam.
Em nosso artigo, continua ele, não usamos a técnica exigida. Isto é, deixamos de citar a obra, o volume, a página em que colhemos cada informação. Ora, escrevemos apenas um artigo de opinião histórica, e não uma peça polêmica. Ainda assim, resumimos nele umas boas 400 páginas que estão contidas em livro inédito, que ao ser publicado, levará todas essas informações detalhadas de que o Sr. Inaldo precisa para seus estudos. Em outras palavras: tivemos muito trabalho em recolher todo o material que analisamos, e ainda estamos tendo. Não vamos dá-lo de mão beijada, num resumido artigo, quando pretendemos publicá-lo proximamente, em obra mais alentada.
Dessa nossa sonegação de minudências deduziu o articulista uma inexperiência no trato da verdade histórica ou uma malícia de nossa parte para dificultar possíveis contendores. Fica a acusação em conta de um direito que lhe assiste. Mas a verdadeira inexperiência e a verdadeira malícia estão em trocar a História pelas suposições. E o artigo do Sr. Inaldo está cheio de "podemos supor", "teria sido", etc. De mais a mais, escrevemos no pressuposto de atingir pessoas que sabem o que é jornal e o que é livro; o que é história e o que e fantasia. Não fizemos um trabalho para constar de compêndios elementares ou figurar, no fim do ano, entre as páginas do almanaque do Neurobiol ou do Biotônico Fontoura.
Indaga ele se o autor guarda na manga algum documento inédito. Em parte sim, em parte não. Alguns desses documentos, tais como cartas-patentes de descendentes de Arariboia, está em nosso poder, assim como o último auto de medição e demarcação das terras da sesmaria temiminó, mas não serão usados como "armadilha", "trunfo", "blefe" ou outra finalidade semelhante. Não é esse nosso método de trabalho.
Finalmente, em três frases alternadas, demonstra o articulista sua preocupação maior: que herói colocar na Praça Arariboia? Ora. Essa obstinação em achar heróis é um tanto demodê e antidiluviana. Faz parte de um vício que Homero inventou, Tito Livio seguiu e os inacianos andaram espalhando pelo novo e pelo velho mundo, de tal forma que ainda hoje grassa pelos colégios em que continuam estudando os historiógrafos de amanhã. Os brasileiros, de um modo geral, gostam multo desse estilo. Não há quem não saiba pelo menos uma frase bonita pronunciada por tal ou qual personalidade célebre em determinados momentos. Na boca de Tiradentes (que os autos da Inconfidência afirmam ter sido impedido de falar) já colocaram uma frase dessas. Não se sabe como, mas Badaró, em coma, também deixou passar uma declaração muito bacaninha. E por aí vai: são os tempos homéricos que ainda sobrevivem na didática da História, enquanto os documentos apodrecem nos arquivos.
De repente, corre um brado de ressonâncias nacionais: é preciso quatrocentar e todos quatrocentam. Uma simples lenda flui maravilhosamente pelo papel-ofício dos despachos, leva adiante um jamegão do Prefeito, espreme-se nos prelos do Diário Oficial e eis que está feita a História: todos estão felizes, todos tem um centenário, um quarto centenário, todos se quatrocentam com muito entusiasmo.
O Sr. José Inaldo não sabe quem colocar na Praça das Barcas. Pois que se coloque D. João VI, o verdadeiro responsável pelo progresso da Praia Grande; ou José Clemente, seu primeiro prefeito, arquiteto incontestável de seu desenvolvimento; ou uma alegoria do colonizador, como há em tantas cidades, homenageando aqueles que primeiro desbravaram nossas terras: Martim Paris, Pedro Martins Namorado, Lourenço Carrasco e tantos mais. Arariboia só foi inventado em Niterói de fins do século passado para inícios do atual. E vamos dizer como.
Aproximava-se o quarto centenário do Descobrimento. Supostos descendentes do chefe índio fundam a Devoção de São Lourenço, na igrejinha do morro, em 1897, e a transformam, uns oito anos depois, em Comissão Glorificadora a Martim Afonso Arariboia. O general Couto de Magalhães, brilhante indigenista, levanta a ideia de um monumento ao chefe temiminó, em Niterói. Vieira Fazenda pondera-lhe o erro. Não aceitou Couto de Magalhães, de pronto, as observações do mestre das Antiqualhas. Mas, estudando a vida e os feitos de Arariboia, logo depois convenceu-se da verdade. E decidiu erguer na Bica dos Marinheiros o tal monumento. Morreu sem o fazer. Passa o tempo, e a Comissão Glorificadora engrossa suas fileiras. Por volta de 1906, ganha a adesão de alguns poetas, rescaldo da já decadente escola romântica, que tanto engradeceu o papel do índio na formação brasileira.
Um deles, Olavo Guerra, sendo vereador, propõe na Câmara homenagens oficiais a Arariboia. Institui-se, adiante, o feriado municipal de 22 de novembro. Força-se o Prefeito Ferraz a contratar com Parreiras a confecção de um quadro histórico. Parreiras desenha um Arariboia nu, e abre uma polêmica rumorosa: a Comissão Glorificadora o queria vestido de Rei de Portugal. Prolongam-se as discussões. Em duas cartas, dirigidas ao então diretor de O Fluminense, o pintor acaba vergastando a memória do índio: era adesista. Quase pela mesma época, a Prefeitura do Distrito Federal contrata o mesmo Parreiras para um quadro alusivo à morte de Estácio de Sá. Parreiras o esboça, e não coloca nele o índio Arariboia. Já indignado com ele, a Comissão Glorificadora parte para a agressão. Passa a exigir, de ambas as Prefeituras, a rejeição dos quadros. Que Parreiras devolvesse o dinheiro recebido.
Muito justamente, alinham-se ao lado do pintor os historiadores mais notáveis da época. Vieira Fazenda, em A Notícia, e Manuel Benício, em O Fluminense, denunciam o pretenso parentesco entre o falecido Arariboia e alguns membros da Comissão Glorificadora. Esta, em represália, corre subscrição para confeccionar o busto de seu patrono. Passeia com ele, em procissão, pelas terras índias e finalmente o coloca na Praça Arariboia. Corre novamente o tempo e um bom amigo de Niterói, o então Governador Paulo Torres, encontra ali aquela coisa horrível, nascida de um momento de pouca inspiração do grande Modestino Kanto. E a substitui, carinhosa e reverentemente, por um belo trabalho dos irmãos Crocce, levando o velho busto para diante de igrejinha de São Lourenço dos Índios. E esta a história da estátua de Arariboia. O Sr. José Inaldo poderá conferi-la, tintim por tintim, nas páginas de O Fluminense, entre 1895 e 1912. Estamos prontos a facilitar seu trabalho.
Apesar disso tudo, as afirmações de caráter científico do Sr. José Inaldo, embora poucas, são válidas e dignas de meditação, mas insuficientes para nos convencer. Afirma ele, por exemplo, que Niterói, como cidade, não foi fundada. Ninguém tendo dito o contrário, sua frase e os acessórios dela ficaram no ar como um trechinho daquela canção que os soldados de La Palisse cantavam, logo assim que ele morreu: "um minuto antes da morte ele ainda estava vivo".
Sustenta, depois, que a concessão de terras a Arariboia não foi semelhante às demais. E por quê? Porque a posse foi solene, teve a presença do próprio Governador. Cristóvão de Barros. Vê-se que ele confunde concessão e posse, ato e comemoração. Posse é posse, ato jurídico, e festa é festa. Um ato de posse, sem Governador ou com ele, é um ato de posse. Todos têm a mesma consistência jurídica. Depois, estamos perdendo tempo e gastando latim, porque não afirmamos que a posse de Arariboia foi semelhante às demais. O que classificamos de igual às outras foi a concessão de que essa posse decorreu. Quanto à presença do Governador em outros atos de posse, não afirmaríamos com tanta certeza que ela não houve. Sabe bem o Sr. Inaldo que esses atos eram lavrados no tabelionato de Pero da Costa, cujos livros estão desaparecidos. No sentido de localizá-los, temo-nos correspondido com o Arquivo da Torre do Tombo, em Portugal, e, por enquanto, ainda não obtivemos resposta. Antes de ver todos os autos de posse, não diremos que Cristóvão de Barros só presenciou a este.
Continuando sua argumentação, conclui ele: "Podemos supor que antecedeu à posse uma ocupação paulatina e preparatória do terreno..."
Não, caro professor, não podemos. Aquilo que podemos supor é apenas o que podemos supor. Não é história. Mas, se pudéssemos supor, o que concluiríamos? Que o quarto centenário de Niterói já passou. Isto é: ela já quatrocentou.
Mais abaixo, referindo-se à visita de Cristóvão de Gouveia, acusa-nos de "citar imprecisamente" um documento que ele "não localizou". Vamos lhe fazer uma ligeira concessão. O relato da visita foi feito pelo Padre Fernão Cardim (secretário de Cristóvão), em carta de 16 de outubro de 1585. Essa carta consta dos "Tratados da Terra e Gente do Brasil". O articulista pode lê-la em Fernão Cardim, Tratados da Terra e Gente do Brasil, 2. edição, Editora Nacional, São Paulo, 1939, notas de Capistrano de Abreu e Rodolfo Garcia, páginas 305 e 306.
O mapa de Luís Teixeira, que estampamos em nosso artigo é, para o Sr. José Inaldo, imperfeito. De fato é. Despreza ele, igualmente, a informação de Gabriel Soares de Souza. É um direito que lhe assiste. Mas não apresenta cartógrafo melhor. Porque não houve. Apesar das imperfeições, normais à natureza daquele trabalho, e de pouca importância, o mapa de Luís Teixeira é documento hábil. Não seria tão imperfeito a ponto de trocar de lado acidente de tanto prestígio, como era a Aldeia de São Lourenço. Cita, como corretivo, um mapa de 1789, em que a mesma Aldeia aparece em Niterói. Sofismou razoavelmente e os espíritos distraídos devem tê-lo aplaudido pela nova palissade. Mas quem terá dito que a aldeia não estava em Niterói em 1789? Nós não fomos.
A distância de uma légua, diz ele, tanto serve para Rio-Jubibiracica como para Rio-Niterói. Era tirada a olho. Isto é verdade, e não dissemos que não servisse. Ocorre que Niterói (e o articulista bem o viu, correndo relações de sesmaria) sempre foi muito bem caracterizada em documentos. Desde 1565, quando se distribuíram aqui as primeiras terras, definem-na como "bandas D'além", "bandas do Cabo Frio". "barreiras vermelhas", "eubirapitanga", "suassunhão", "maragohi" e até "praia grande". Seria admitir multa coincidência e muita distração de três autores distintos (Frei Vicente, Knivett e Pero Rodrigues), que não mencionam um só desses designativos a suposição de que localizando a aldeia a uma légua da cidade, se referissem ao outeiro de São Lourenço, do lado oposto de São Sebastião.
Mais à frente, o Sr. José Inaldo sai do sério. E mistifica novamente, agora com muito mau gosto, misturando uma informação de Knivett com o mapa de Luís Teixeira, na tentativa de mostrar que a Praia Nordeste do Rio de Janeiro era o atual bairro do Fonseca, que nem praia tem. Ora, é principio elementar da matemática que elementos estranhos não se aditam. A rosa-dos-ventos de Luís Teixeira vale para a baía de Guanabara e o "nordeste" indicado por Knivett (que, provavelmente, nunca viu aquele mapa), vale para a cidade do Rio de Janeiro, tendo como ponto de referência o outeiro de São Bento, como ele muito bem especifica em seu livro. Vamos fazer outra concessão: o livro de Knivett chama-se "Vária Fortuna e Estranhos Fados de Anthony Knivett". Foi publicado em primeira edição pela Brasiliense, em São Paulo, em 1947, com notas de Francisco de Assis Carvalho Franco. A informação citada está nas páginas 176 e 177.
Mas, ainda sobre a observação do Sr. José Inaldo, de que a Praia Nordeste do Rio de Janeiro, segundo o mapa de Luís Teixeira, era o Fonseca (!!!), há duas observações a fazer. Veja-se o mapa, novamente. A valer sua declaração, onde fica o Rio Grande do Sul? A Oeste. E o Rio Grande do Norte a Leste. E Mato Grosso ao Norte, etc. Pelo amor de Deus! E para onde indica o Nordeste de Luís Teixeira? Para o Fonseca? Ou para a foz, mais ou menos, do rio Guaxindiba? Mistificar tem desses perigos.
Argumento fortíssimo para o Sr. Inaldo afirmar a existência da Aldeia em Niterói é um velho documento de pedido de terras a Salvador de Sá, assinado por alguns principais da aldeia, que, impossibilitados de permanecer nela, foram debandar para as margens do Macacu, dando início a aldeia de São Barnabé. Já lemos muitas vezes esse documento, na memória de Joaquim Norberto. De cabeça para cima e de cabeça para baixo. Dele só concluímos em reforço à nossa tese, de que Arariboia não se interessou pelas terras recebidas. No máximo encarregou aparentados seus de a ocuparem, e estes não obtiveram êxito. O Sr. José Inaldo não quis citar o documento até muito longe. Parou sua transcrição justamente no ponto em que os índios iam explicar a impossibilidade de permanência em Niterói pela presença do elemento branco.
Ora, a simples leitura e análise do documento em pauta não dizem muito. Uma tentativa (além do mais frustrada) de povoamento, também não pode ser confundida com as origens da cidade. E há a presença do elemento branco, que, naturalmente, não estava ali tecendo rede e aprendendo catecismo, mas produzindo, e produzindo à larga. Será que Arariboia, tão intransigente a ponto de destratar um Governador, de ameaçar os próprios jesuítas, de rejeitar até mesmo o aprendizado da língua europeia, fecharia os olhos passivamente a essa explicação branca, em prejuízo de seus irmãos de raça? Parece-nos que não. E o tipo do comportamento que não coaduna com as suas tão decantadas e heroicas virtudes.
Prosseguindo na análise do documento anima-se o Sr. José Inaldo com duas encorajadoras afirmações de Serafim Leite: 1 - Arariboia não se incluiu entre os índios requerentes porque não teria intenção de se deslocar para outras terras; 2 - A solicitação de nova sesmaria se prendia à falta de campo suficiente para o sustento de todos. A primeira deixa mal e depõe contra a honestidade, a bravura e a fidelidade do valente cacique em relação a seus compatrícios, que ele deixaria seguir caminho para outros sertões, porque suas terras estavam em mão dos brancos. Além disso, baseia-se num "não teria a intenção", que, sendo hipotético, não tem valor histórico.
A segunda é puramente absurda. Não é possível que as terras de Arariboia em Niterói fossem pouco extensas para acolher sua gente. Por mais que descessem índios de outras regiões, Niterói bem daria para todos. Na verdade, os limites da sesmaria de Arariboia, tal como nos foram ensinados na escola primária, enganam um pouco. Uma légua entre Maruí e Gragoatá, com duas para o sertão. Tem-se impressão de que fosse bem pequena. Mas quem tiver em mãos os autos de medição e demarcação desta sesmaria (lavrados em 1659, 1820 e 1868) terá a surpresa de constatar que essa légua de frente por duas de fundos abrangiam Niterói inteira: São Lourenço, Centro, São Domingos, Ingá, Icaraí, Santa Rosa, São Francisco, Pendotiba, Piratininga, Baldeador, Fonseca, Engenhoca, Maria Paula, Barreto, parte de Neves etc. Será que em toda essa terra, onde hoje coabitam 350 mil almas, não podiam coabitar 3 mil há 400 anos?
"Como fazer história é ir às fontes", diz o Sr. Inaldo, larga ele Serafim Leite e longa-se à Memória de Norberto. Isto é, passa de um autor para outro autor, de um livro para outro livro. Gosta de ler documentos tipografados. É outro direito que lhe assiste. Entretanto, fontes históricas é justamente o que Norberto não dá. Transcreve, simplesmente, um punhado de documentos, na maioria das vezes sem dizer onde estão, apesar de se propor a uma "memória documentada". Disso resulta que, diante de um erro tipográfico (e há muitos ali) fica-se sem saber qual versão original. Vamos dar um exemplo: o Auto de Posse de Arariboia, tem, na abertura, a data de 22 de novembro. E, no fechamento, a de 22 de outubro. Qual delas o Sr. José Inaldo escolheu para quatrocentar?
Mais adiante, outro argumento poderoso do articulista. Uma carta de 1585, em que Anchieta, textualmente, diz o seguinte: "a primeira (aldeia) se diz São Lourenço, que está uma légua da cidade defronte do colégio". Indaga o Sr. Inaldo se Jubibiracica estava defronte do colégio. E conclui o texto de Anchieta: "vai-se a ela por mar". Ora, o que Anchieta disse que estava defronte do colégio era a cidade do Rio de Janeiro, não e aldeia de Jubibiracica. E a essa aldeia se ia mesmo por mar, contornando-se o outeiro de São Bento, correndo-se a prainha de Manuel de Brito, etc. O caminho por terra era longo e penoso. Todo mundo sabe que, ainda recentemente, tudo era mangue e terreno alagadiço do Campo de Santana de hoje até a Praça da Bandeira, o Cais do Porto, a moderna Rodoviária Grande Rio. Quem fosse para Jubibiracica por terra tinha de contornar o Morro do Descanso (Castelo, onde hoje é a Lapa), seguir pelas atuais Ruas Riachuelo e Frei Caneca, rompendo outros outeiros e outros pântanos (como as lagoas da Sentinela e do Boqueirão) contornar propriedades particulares (como os currais de Antônio de Mariz - e não Marins, Sr. José Inaldo). Era caminho que só se usava nas emergências. Por isso Arariboia também veio por mar, no dia de seu casamento, em 1570, de Jubibiracica para a catedral de São Sebastião, então humilde matriz. Nos tempos de D. João e D. Pedro (o primeiro e o segundo) ainda se preferia o caminho por mar da cidade para a praia de São Diogo ou a praia do Caju, que a travessia do "aterrado". O Sr. Jose Inaldo devia saber disso. E, se sabia, tentou, outra vez, mistificar.
Afinal, o grande trunfo do Sr. Inaldo: os Jesuítas aforam as terras de Jubibiracica, em 1602. Logo, não poderia estar ali a aldeia. É provável que não estivesse. Mas esse aforamento não vem provar nada. Já tínhamos topado com ele. Foi um "arrendamento enfitêutico" de "certas águas" feito pelos jesuítas, na condição de o arrendatário fornecer parte do açúcar e da cana que produzisse. O que tem isso a ver com a aldeia? As terras deixaram de pertencer aos jesuítas? Não. Foram deles até partirem, expulsos, em 1760.
Assim, vamos chegando ao fim das observações do Sr. José Inaldo. Resumiremos. O que nos acrescenta ele? Que o Padre Serafim Leite é o maior historiador da língua portuguesa, segundo José Honório Rodrigues. Isso prova que Arariboia veio para Niterói? Não. A única coisa que essa declaração prova é que o Sr. José Honório Rodrigues considerou Serafim Leite o maior historiador da língua portuguesa. Em História não existe aval. Existem documentos. Por melhores historiadores que sejam, tanto Serafim quanto José Honório não valem por um documento.
E será que o padre Serafim era assim tão infalível? Temos cá nossas dúvidas. Ele escreveu tanto à luz de documentos fidedignos como de testemunhos fantasiosos. Ora esteve nos arquivos da companhia, ora nas baboseiras de Simeão de Vasconcellos. Seus dez grossos volumes de história inaciana são excelentes à exaltação do jesuíta, mas nem sempre dizem tudo. O padre Serafim, por exemplo, não diz que os jesuítas tiveram fazenda em terras de temiminó, em Niterói; não diz que fizeram uns tantos Negócios-da-China com terras que não eram deles. Não diz muitas coisas mais. E não é infalível. O próprio José Inaldo cita uma derrapagem dele, quando afirma que em 1586 era novamente superior da aldeia de São Lourenço o padre Gonçalo de Oliveira.
Serafim publicou sua história entre 1930 e 1950. Fernão Cardim conheceu pessoalmente o padre Gonçalo. Esteve com ele, várias vezes, na Bahia. E diz, Fernão Cardim, resumidamente, o seguinte; o padre Gonçalo abandonou o serviço no Rio de Janeiro em 1574, e a esta cidade jamais regressou. Deixou várias vezes a Companhia, mas voltou a ela. Sem sair da Bahia, ou, pelo menos, do Nordeste. Como poderia, da sua fazenda de Ipitanga, governar a aldeia de São Lourenço? Não podemos aceitar um erro, mesmo que seja praticado por Serafim Leite, pelo "maior historiador da língua portuguesa de todos os tempos", ou por quem quer que seja. O tempo do Magister Dixit já acabou.
E esse "maior historiador da língua portuguesa" gosta muito de pequenas fórmulas mágicas, aliás apreciadas pelo ensino jesuítico: "supomos", "teria sido", "pode-se afirmar", "há todos os indícios", etc. O Sr. José Inaldo adota essas fórmulas. Nós não.
Não vamos discutir aqui o que afirma o Prof. Inaldo a respeito do teatro na aldeia de São Lourenço. É tema para outra página inteira. Nem sobre a Igreja, porque, afinal, ele não provou que ela existisse em Niterói, antes de 1627. Ficou-nos "há todos os indícios" do padre Serafim. E, finalmente, também consideramos outra afirmação sua prejudicada: a de que "a população de São Lourenço nunca foi muito populosa (sic) desde a sua origem, por não dispor de terras anexas capazes de ocupar e sustentar muita gente". Já demos ideia da extensão dessas terras.
Consideraremos, apenas, a posição em que o Sr. José Inaldo se coloca, defendendo para Niterói o direito de ter seu quarto centenário, porque Salvador, Rio e São Paulo, o tiveram e "os da banda D'além estão cansados de dizer que vão à cidade, referindo-se ao Rio, como acentuou jocosamente Nélson Omegna no Curso de Interpretação da História de Niterói". Não ouvimos a conferência de Omegna, mas já lêramos sua frase, num livro que ele publicou há 12 anos. O que concluímos é que o Sr. José Inaldo está preocupado com a existência de datas centenárias para comemorar. Está a procura de um herói para a Praça das barcas, e de um fato para quatrocentar.
Trata-se, entretanto, de uma preocupação injustificável. Niterói é, talvez, no mundo todo, a única cidade que já comemorou o primeiro e o quarto centenário num espaço de apenas 54 anos. Muita gente ainda se lembra das festas do Centenário de Niterói, realizadas em 1919.
Concluindo disso tudo, diremos, sinceramente, que não somos contra o IV Centenário, mas contra seus fundamentos. Achamos, mesmo, que Niterói devia ter um quarto centenário todos os anos. Pelo menos haveria uma sacudidela cultural em regra, com cursos, concursos, espetáculos, exposições, competições, publicações, etc. E então, dentro de poucos anos não se precisava mais quatrocentar.
O Fluminense, 22 de julho de 1973
* Emmanuel de Bragança é como assinava o historiador Emmanuel de Macedo Soares
(1) Introdução
(2) Emmanuel de Bragança: Verdades (Mal Comportadas) Sobre a Fundação de Niterói
(3) José Inaldo: Niterói quatrocentão mesmo - reparos e achegas a um artigo
(4) Emmanuel de Bragança: Mistificação em torno de verdades amargas
(5) José Inaldo: Da Batalha de Itararé ao Motivo secreto
(6) Emmanuel de Bragança: Quando até Jó se cansa do choro de Jeremias