Por José Inaldo Alonso
Num artigo malcomportado encharcado de ponta-a-ponta de desaforos, em que apelou o tempo todo para a agressão exclusivamente, o autor de "Mistificação em Torno de Verdades Amargas" debateu-se numa página quase inteira, confundindo e tapeando para provas que eu nada provei e somente mistifiquei em torno de suas verdades. Para as tantas, ameaçou-nos, a mim e a população de Niterói, com a desencadernação de quatrocentas páginas de um tratado inédito em que provará definitivamente que Arariboia nunca viveu por aqui. Prometeu até apresentar hipotéticos trunfos empoeirados que a TAP transportará dos acervos quatrocentões da Torre do Tombo. Em minha réplica, pressupunha um dilema: ou o blefe ou a carta na manga. O articulista confirmou a carta na manga. Pois não é uma coisa nem outra. É apenas um motivo secreto.
Confesso que foi difícil reler os dois artigos do Senhor Emmanuel de Bragança. Num estilo encipoado em que mistura desnecessários Homeros e Titos Lívios com voltairianas agressões aos pobres dos jesuítas e em que rima insipidamente Mandraques com almanaques, somente para fazer barulho e distrair pelo esgotamento e pela confusão a atenção do leitor: num emaranhando de afirmações fúteis enoveladas com distorções maliciosas, o Sr. De Bragança produziu duas páginas inteiras de vazios em que nada provou e apenas tumultuou.
Tive a ousadia de mostrar aos leitores que as pencas de citações de autores - alguns quinhentistas - não tinham significado nenhum. Ou estavam no texto como Pilatos no credo - é o caso do Diário de Pero Lopes - ou havia distorções no sentido, ou ainda falta de aprofundamento na pesquisa. Cabia ao articulista treplicar, pois a réplica foi minha. Apelou para blague insignificante e o desaforo. Argumento em História é prova documental. É prova apresentada com todas as indicações para ser conferida.
Apelou para agressão aos historiadores de valor incontestável reduzindo-os a Zés e Serafins. Tratou-os como se fossem escrevinhadores de erudições pseudo-históricos do tipo "Você sabia que?" (estas sim em estilo de almanaque), colhidas em páginas de jornal. Afirmou meu gosto exclusivo por documentos tipografados (como se isso diminuísse o valor de um documento autêntico, corretamente transcrito).
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Baía do Rio de Janeiro e a Cidade de São Sebastião da obra Roteiro de todos os sinais, conhecimentos, fundos, baixos, alturas e derrotas que ha na costa do Brasil desde o cabo de Santo Agostinho até ao estreito de Fernão de Magalhães, de Luís Teixeira, cerca de 1574. |
Terei agora de ler o código de Lipit-Ishtar ou o de Bilalama nos milenários tijolinhos sumerianos ou acadianos? Gastou a paciência do leitor com informações bizantinas em torno de quadros e estátuas de Arariboia, método velho da cortina de fumaça, para, afinal, explodir na descoberta triunfal de que não sei ler um mapa. É um momento errante, no artigo, em que o autor conduz o leitor para sua vitória de Itararé. Com estratégia burlesca, chegou a engajar no ataque, heterogêneos axiomas ou postulados onde não se aditavam.
Passeou com a bússola pelo mapa do Brasil, do Morro de São Bento ao Rio Grande do Sul (aqui, sim, é que o autor somou elementos estranhos!) em deslumbramentos de escoteiro ou de aprendiz de Arrais. Corrigiu minha imprecisão, quando eu disse que a linha de rumo chegaria a nordeste. Protestou mostrando que iria ter à Foz do Guaxindiba. Isto por não ver minha retificação logo adiante: ex-nordeste. Num êxtase de achamentos cartográficos, concluiu dogmático que o nordeste de Knivett era mesmo em Jubibiracica. Aí sentou-me a derradeira rasteira: mistificar tem desses perigos.
Empolgação de calouro em cartografias é que acaba nisso.
O Fonseca a que me referi, é Fonseca mesmo. A aldeia que se agrupava em volta da capela, claro que se derramaria com suas roças e casas de sapê pelos morros e várzeas, em direção ao interior. Não falei em praia, mas também ratifico. O litoral de 1573, na Enseada de São Lourenço, chegava perto da atual matriz (não é a capela do morro, não!). Além disso, falei Fonseca para poupar ao leitor o trabalho de consultar o atlas do MEC e para que o Sr. De Bragança me entendesse, pois demonstrou mais uma vez que não compreende nada de mapas.
No mapa de Luís Teixeira, a rosa-dos-ventos assenta num meridiano que passa pelo centro da Baía. Na carta atual do Ministério da Marinha é o de longitude 43º, 8' e alguns segundos oeste. O meridiano do morro de São Bento, onde se colocou Knivett é de 43º, 10' e alguns segundos oeste. Jabubiracica, a 43º e 13' oeste, continuava a ocidente da posição de Knivett. Logo, o nordeste de Knivett era mesmo em São Lourenço - Niterói.
Num deslumbramento de agarrar loxodromias vetustas com pátina de poalha da Torre do Tombo, o Sr. De Bragança acabou levando esse tombo ginasiano. Tropeçou nas linhas imaginárias de dois meridianos e afogou-se na Bica dos Marinheiros, a procura da maloca de Arariboia. Não sabendo achar o norte de uma carta geográfica, desnorteou-se todo e viu o mapa da baía de Guanabara de cabeça para baixo. Assim não dá!
Como vê, leitor, a vitória do Sr. De Bragança, foi como a Batalha de Itararé: Não houve.... Mistificar tem desses perigos.
Em sua apelação constante ao desaforo, o Sr. De Bragança reclama do meu vício de passar de um autor a outro autor, de um livro a outro. De só pesquisar em documentos tipografados. O que fiz seguir o rastro do articulista, conferindo e mostrando o que ele não soube ver. Além disso, temos o mesmo hábito, com uma diferença que é fundamental para quem trata de História. O Sr. De Bragança está apenas em estágios de recortes de jornais antigos, suas raridades de almanaque.
Eu pesquiso cansativamente sem preconceitos. [sentença ilegível]. Pesquiso, por exemplo, a filiação de Arariboia nas cartas de Anchieta e de Nóbrega, ou nos Monumenta Brasílias (8 volume) para não repetir sem base documental afirmações como aquelas do batismo do Morubixaba. Mas se o Sr. De Bragança quer que eu troque os mestres da pesquisa séria, porque o tempo do Magister Dixit já acabou, eu topo.
Peço licença ao leitor para citar um autor leviano que hoje escreve uma coisa e poucos dias depois assina outra totalmente oposta, em volta de muito amargas verdades históricas. E com esse agravante: quando pública as primeiras verdades, já tem volumoso tratado com documentos inéditos para provar arrasadoramente a segunda verdade que dias depois dirá. O texto que vou ditar se encontra no álbum comemorativo do IV Centenário - Imagens Fluminenses - edição oficial da Comissão Diretora. Não foi fácil achar o nome do autor. Encontrei-o boiando numa tarde de sol, nas águas mansas da Enseada de São Francisco, no rodapé da segunda contracapa: Emanuel de Bragança de Macedo Soares. Como diz São Paulo, "tempus urget". Não percamos mais tempo. Vamos ao confronto de Emanuel de Bragança com Emanuel de Bragança: (a) e (b).
(a) VERDADEDES MAL COMPORTADAS ...
Provado que se localizava no Rio de Janeiro, ainda em 1568, a Aldeia de São Lourenço, resta estabelecer até quando ela ali continuou, e, com ela, seu chefe principal, Martim Afonso de Souza, o Arariboia. Aqui, a escassez absoluta de documentos não nos permitirá a fixação de uma data. Mas uma coisa é certa: muito depois de 1573, muito depois da morte de Arariboia ainda continuou no Rio de Janeiro, em terras de jesuítas, a Aldeia de São Lourenço.
[...] Em 1586, Arariboia participou, como principal de sua aldeia, das grandes festas que se fizeram pela chegada do Padre Cristóvão de Gouveia. Visitador da Companhia de Jesus. Existindo ainda por esse tempo no Rio de Janeiro, a Aldeia de São Lourenço, não se pode supor que Arariboia chefiasse um agrupamento em Niterói, com nome igual ou mesmo diferente, porque, se assim fosse, forçosamente teria também participado daqueles festejos quem quer que chefiasse a aldeia carioca. Deduz-se, assim, que ainda em 1584 havia uma só Aldeia de São Lourenço, e esta se localizava na Guanabara.
[...] Disso se deduz que a Aldeia ainda estava no Rio de Janeiro em 1591 [...]. E muito provavelmente continuava ali em 1601 [...] De qualquer modo, ela continuava ali em 1598, quando escreveu o Padre Fernão Cardim. Como este mesmo Padre foi quem nos deixou uma descrição da morte de Arariboia, principal daquela Aldeia, não temos a menor dúvida em afirmar que o pretenso fundador de Niterói não povoou e nem explorou sua sesmaria niteroiense. Viveu sempre no Rio de Janeiro, onde se incluía entre os importantes moradores, e lá morreu, deixando em seu lugar de chefe a seus filhos, netos e bisnetos.
[...] A construção da primeira capela, em 1627, é o primeiro sintoma da permanência do aldeamento índio em Niterói. Não existe nenhum outro anterior a este. Pelo menos na vasta bibliografia que tivemos em mão, e muito humildemente nos dobraremos a quem nos prove em contrário.
(b) IMAGENS FLUMINENSES ...
Arariboia e a Fundação da Aldeia (p. 7)
Filho do legendário Maracajaguaçu (Gato Grande), chefe dos temiminós que habitavam a Ilha de Paranapuã (Governador), ali nasceu Arariboia (Cobra Feroz), por volta de 1533, recebendo no batismo o nome de Martim Afonso de Souza, donatário de São Vicente que lhe serviu de padrinho.
(...) Arariboia morreu pacificamente no morro de São Lourenço, entre 1585 e 1588 (sic), deixando entre outros descendentes o padre Amador de Sousa, um dos colonizadores de Macaé; Manoel de Souza; Salvador de Souza; José Cardoso de Souza, que o sucederam e se sucederam como capitães de São Lourenço. A aldeia, entretanto, foi sendo dominada pela penetração branca, em função das próprias exigências do seu desenvolvimento, vindo a extinguir-se por decreto em 1868, quando ali havia menos de 90 índios.
A primeira Capela página - (p. 8)
Documentos antigos dão oficialmente a denominação de São Lourenço ao acampamento que Arariboia instalou em litoral carioca, depois de transferir-se em definitivo do Espírito Santo, e é provável que já tivesse tal patronímia o núcleo inicial da aldeia, em terras capixabas, considerando-se que desde então convivia com os temiminós padre Braz Lourenço, responsável pela construção do primitivo templo em honra do mártir de quem era homônimo. Foi o mesmo Padre Braz Lourenço que edificou a Nova Capela, em Niterói, entre os anos de 1577 e 1578. (sic) Durou ela até 1627, quando foi demolida e substituída por uma nova, que, por sua vez, se reconstruiu em 1767 e chegou aos nossos dias, sendo hoje tombada pelo Patrimônio Histórico. Segundo consta, sob ela está sepultado Arariboia.
Eu provei. Provei com a vasta bibliografia que o Sr. De Bragança teve em mão. O leitor viu a humildade com que ele se dobrou à prova. Desta vez demonstrei ao Sr. Emmanuel de Bragança os seus erros, com o próprio Sr. Emanuel de Bragança. Depois disso tudo, só dizendo como o poeta Drummond: "E agora José? / e agora Joaquim? / e agora, você?"
Antes de passar ao terceiro tempo desta conversa enfadonha, um último reparo ao Sr. De Bragança. Não é provável que aldeia de Arariboia já tivesse no Espírito Santo tal patronímio, isto é, o nome de São Lourenço. Se o autor soubesse pesquisar as fontes que consultou, teria visto que a primeira referência feita a Arariboia em documentos coevos é de 1564 e sua aldeia aparece com o nome de São João.
Agora vamos 'sherloquear' um pouco, leitor, pelas entrelinhas do que escreveu o Sr. De Bragança e ver se atinamos com o motivo secreto de tudo isto.
Notei desde logo a impertinência emmanuelina em apoucar e desligar do contexto histórico de Niterói o Morubixaba e sua gente. Para atingir o objetivo, atirou-se agressivamente contra as evidências documentais, distorceu argumentos ponderáveis e se desdisse ostensiva e despudoradamente. E não contente com o negar direitos chegou no despejo, naquele chega-para-lá veemente com que fechou o seu artigo, dizendo ao cobra feroz que sua estátua estava em lugar errado, Ao mesmo tempo esforço, o esforço sutil para desviar a atenção dos leitores para personagem sem nenhum significado histórico marcante na Banda d'além, embora ligados ao processo histórico da colonização do Brasil.
Quando o chefe temiminó sentiu que sua missão terminara, avisou ao Governador que voltaria para sua Aldeia, no Espírito Santo. Foi o Governador quem lhe pediu para permanecer. E a escolha do sítio da Banda D'além obedeceu ao objetivo estratégico. Missão que Arariboia e sua tribo cumpriram.
E os tais sesmeiros? Ligaram-se ao chão de Niterói apenas como agraciados. Muitos deles nem jus fizeram ao prêmio. E a generosidade do fidalgo de Mariz não passou de uma negociata. Pelas 3.000 braças de costa e 6.000 de sertão que recebera um mês antes e onde nada fizera para valorizar ainda, o herói de José de Alencar começou a receber, uma semana depois mais de 150% em terras, do que recebera (isto é que é dar lucro): 4.500 braças a que se somaram, no mesmo dia, 3.000 de mar por 6.000 de sertão. Em junho de 1570, mais 6.000 braças e outras 500 em janeiro de 74. Fora o que andou recebendo no Rio de Janeiro e no Ipiranga (São Paulo). Donde se conclui que o grande feito quatrocentão do Senhor De Mariz, em Niterói, foi ajuntar um feudo inútil que ia até Maricá, para engordar o seu gado.
No seu artigo do dia 29 de julho, neste jornal, o Sr. De Bragança deu uma de "mau caratista" no Arariboia. Citando Parreiras, planta esta dúvida no leitor: o índio que ele pintava não era o índio cristão, aportuguesado, exterminador de brasileiros, que pelo seu adesismo, fora, justamente contemplado com favores reais. Era o índio puro, o Selvagem ainda não contaminado pela colonização, ainda não enegrecido pelo extermínio de seus irmãos de Pátria, os Tamoios. Isto é uma tolice. Que Pátria. Que irmão? Veja as descrições de Hans Staden e de Thevet. E principalmente a de Levy, quando narra o churrasco que os tupinambás (tamoios) fizeram de alguns remanescentes de maracajás que ainda viviam na Ilha do Governador.
E a fuga desesperada nas quatro embarcações de Vasco Coutinho para o Espírito Santo? Há um propósito íntimo de minar as verdadeiras vinculações históricas de Arariboia e sua gente com a Praia Grande, para abrir um vazio que só poderá ser preenchido por um sesmeiro quatrocentão ligado a tradicionais famílias fluminense. Este vazio quatrocentão não pode ser coberto por nenhum Dom João VI ou José Clemente Pereira. A sugestão do articulista é generosa demais!
Nas imagens Fluminense, página 7, notei a preocupação do autor, quando armou a tela de parentescos e feitos do Senhor Antônio de Mariz Coutinho. Sua preocupação nominal (não é de Marins) para reafirmar as origens fidalgas. Parente do primeiro Bispo que os Caetés mataram sem outorgar auréola dos martírios. Parente do donatário do Espírito Santo, descendente de um Lopo com brasões de nobreza. Sesmeiro do Ipiranga, onde ficamos independentes e do Campo de Santana, onde republicamos. No final do curriculum vitae, esta informação importantíssima: Dele descendem tradicionais famílias do estado do Rio, algumas com profundas radicações em Niterói. Cita três tarde, incluindo a sua e termina com isto: Cujos integrantes são, a rigor, niteroienses de mais de 400 anos!
Eis o motivo secreto: puseram o morubichabas de tanga no lugar onde devia estar fidalgamente trajado o dodecavô quatrocentão o autor das verdades amargas.
O articulista zombou de minha preocupação de quatrocentar. Não escondo a preocupação e alegria. É bom centenarariar, sesqui, bi, tri, quatrocentenar. São momentos de festa para um povo e de dar uma parada para conscientizar o seu andado caminho histórico. É oportunidade até para se vender textos de história em que não se acredita e para se satisfazer a vaidade de fincar nos chãos de Niterói, genealógicas raízes fidalgas, mais-que-quatrocentonas.
Eu e você, leitor, não temos tempo para estas fidalguices. Vamos à verdadeira história de Niterói que é a melhor coisa que se pode fazer com tantos centenários.
Retificação: Peço desculpas, leitor, por uns erros que escaparam em meu artigo "Niterói quatrocentão mesmo". Não tive tempo de fazer a revisão. Deixo por sua conta quase todas as emendas da palavra ou letra. Duas correções, porém, julgo importantes: Onde está ex-nordeste emendo co-nordeste; e onde se encontra - piaçaba velha de São João (sic), leia-se de Xóvão (sic). Referia-me à fazenda de São Cristóvão. Antes de lança-lo à cesta, faça a retificação, e lhe agradeço.
O Fluminense, 19 de agosto de 1973
José Inácio Alves Alonso foi historiador e presidente do Instituto Geográfico e Histórico de Niterói.
(1) Introdução
(2) Emmanuel de Bragança: Verdades (Mal Comportadas) Sobre a Fundação de Niterói
(3) José Inaldo: Niterói quatrocentão mesmo - reparos e achegas a um artigo
(4) Emmanuel de Bragança: Mistificação em torno de verdades amargas
(5) José Inaldo: Da Batalha de Itararé ao Motivo secreto
(6) Emmanuel de Bragança: Quando até Jó se cansa do choro de Jeremias