Cap. 02 - 'Niterói em Três Tempos', por Heitor Gurgel
Excelente para a Banda de Lá, foi a decisão de Mem de Sá, mudando a recém-criada cidade de junto do Morro Cara de Cão, na Praia Vermelha, para o Morro do Descanso, que depois se chamou Morro do Castelo. E veio o assalto a Uruçu-Mirim, a 20 de janeiro de 1565, que terminou com a derrota dos franceses e tamoios, derrota que os portugueses ficaram, em grande parte, devendo ao precioso auxílio de Arariboia.
Feliz com a vitória, Mem de Sá resolveu premiar aqueles que o tinham ajudado e ao sobrinho na expulsão dos franceses.
E foi assim que Arariboia recebeu uma sesmaria nas "barrancas vermelhas", em 1568, mas de que o morubixaba só tomou posse efetiva cinco anos depois, a 22 de novembro de 1573. Mas, desde 1567, já existia gente morando e trabalhando suas terras na "Banda de Lá" e tanto que, quando Arariboia mudou-se para a Aldeia de São Lourenço, lindeiros às suas terras, encontrou os sesmeiros: Manoel Machado, Diogo da Rocha, Gaspar de Figueiredo e o próprio Antônio Mariz, que cedeu a sua sesmaria a Arariboia. Apesar disso, a História dá a Arariboia a honra e a glória da fundação de Niterói (I).
Villegaignon e a Praia Grande
Há uma pergunta histórica que, ao que nos consta, ainda não foi devidamente respondida. Teriam sido os franceses os primeiros brancos a pisarem a terra da Praia Grande? Para tanto é mister atentar para os fatos ocorridos na Baía de Guanabara, entre 1531 a 1555, e depois, em 1565.
O primeiro navegador luso que explorou os arredores da Baía de Guanabara foi Martim Afonso de Souza, em 1531, que "mandou quatro de seus homens empreenderem uma arrojada investida pelo sertão, no que gastaram dois meses e que os teria levado até territórios que hoje são de Minas Gerais ou de São Paulo (II) Logo, acrescentamos nós, os expedicionários de Martim Afonso seguiram o rumo oeste. Além dessa excursão, a História não registra, por todo o resto do século XVI, nenhuma outra; mas se alguns portugueses penetraram depois às terras que circundam a baía, fizeram-no sem o propósito de artilhar qualquer um de seus lados.
Vinte e quatro anos depois do navegador Martim Afonso, em 1555, o francês Villegaignon chegou à Baía da Guanabara disposto a fundar em suas margens a sua sonhada França Antártica. Já instalado na Ilha de Sergipe, Villegaignon teve o cuidado de fortificar-se, não só na ilha como em pontos estratégicos por ele escolhidos, entre os quais a ponta de Santa Cruz, na parte oriental da baía (III). Assentados e comprovados tais fatos históricos, tira-se a conclusão de que a fortificação de Santa Cruz foi construída pelos franceses de Villegaignon, que, para isso, tiveram que palmilhar a terra niteroiense. Assim, nessa ordem de ideias, foram os franceses os primeiros homens brancos a pisar o solo da Praia Grande.
Mais dúvidas Históricas
Onde foi travado o combate havido em 1568 entre os temiminós auxiliados pelos portugueses e os tamoios e mais os franceses?
Para José de Matoso Maia Forte, esse combate teve lugar na Praia Grande e não no Rio de Janeiro, e para tal afirmar apoiou-se em Varnhagem a Fernandes Pinheiro. Para Matoso, Arariboia morava antes de 1568 em sua sesmaria e que a data de 22 de novembro de 1573 significa apenas a posse solene do chefe temiminó como sesmeiro. Para Joaquim Norberto (IV), o combate se deu no local onde hoje se encontra o centro comercial de Niterói. Vieira Fazenda, Antônio Figueira de Almeida e outros acham que o local do referido prélio foi a enseada da Bica dos Marinheiros, em terras pertencentes à grande sesmaria dos jesuítas, e que ia do Rio Aguaçu (rio em Catumbi) às taperas de Inhaúma, no Rio de Janeiro. Arariboia, disse o grande historiador carioca, só conseguiu mudar-se para São Lourenço em 1573, durante o governo Cristóvão de Barros, cinco anos depois do combate. Quem terá razão? Matoso Maia ou Vieira Fazenda?
Outro ponto controverso diz respeito ao próprio Arariboia. Vários autores acreditam, entre eles Matoso Maia, que o chefe temiminó morreu afogado, já velho, depois de 1637. Contudo, outros historiadores, como o padre Pedro Roiz (V) dizem que Arariboia, que viveu muitos anos (perto de cem anos), assistiu à festa de São Sebastião, em 20 de janeiro de 1654, e teve "uma morte sem dores e tão quieta como vedes e desta maneira deu sua alma a Deus, com muita consolação e edificação dos parentes".
Na oportunidade, vale a pena realçar um documento original que o historiador cearense, Barão de Studart, presenteou a Vieira Fazenda, no qual se lê:
"Sua Majestade que Deus guarde tendo respeito nos serviços de Martim Afonso, índio, natural da Capitania do Rio de Janeiro, no Estado do Brasil, respondendo consulta de 15 do presente, houve por bem lhe fazer mercê do cargo de Capitão-Mor de todos os índios da repartição do sul e a seu filho, Manoel de Souza, fosse seu Sargento-Mor, e manda que se lhe dê a cada um deles um vestido e dez mil réis em dinheiro de socorro para embarcarem no primeiro navio que for para aquela capitania. Do que dou aviso a V. S. para que, tendo entendido, faça dar execução a ordem de Sua Majestade. A Divina Providência guarde V. S. como deseja." Do Paço, 28 de ...... de 1642. (assinado) Antônio Pereyra. Para D. Miguel de Almeida.
No alto do papel, escrito em letras menos claras, estão lançados um despacho dirigido ao Marquês de Montalvão e a data de 28 de ...... de 1642.
Mestre Vieira Fazenda, de posse do documento, perguntou: "Tratar-se-á do próprio Arariboia, que, em idade avançada, teria ido a Lisboa ou de algum filho com o mesmo nome? Assim, esse Manoel de Souza seria neto do verdadeiro Arariboia."
NOTAS
(I) Há registros dessas sesmarias nos códices do Arquivo Nacional e na obra "Memória Histórica e Documentada das Aldeias dos índios da Província do Rio de
Janeiro", de Joaquim Norberto de Sousa Silva.
(II) in "Aparência do Rio de Janeiro", de Gastão Cruls
(III) in "Memórias Históricas do Rio de Janeiro", de Monsenhor Pizzaro;
(IV) in "Memória Histórica e Documentada das Aldeias dos índios da Província do Rio de Janeiro".
(V) Anais da Biblioteca Nacional, 1907, vol, pag. 218, in Biografia do Padre José de Anchieta.
Páginas em Branco
Preocupados com a Cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, os governadores se descuidaram de seus distritos, maxime do localizado na "banda d'além", embora pouco distante da sede da Capitania. "A história não registra qualquer ação dos governadores favoráveis ao lado oriental da Baia de Guanabara, que permaneceu anos e anos seguidos completamente abandonada. Os governadores só se lembravam dela "para dar sesmarias ou para nomear apaniguados como autoridades policiais e fiscais ou tomar conhecimento de uma ou outra providência mais urgente recomendada por esses prepostos. "A nomeação de alguns militares e tabeliães para servirem no lado oriental da baía, de tempos em tempos, era a única coisa que lembrava aos filhos da terra de Arariboia que existia ainda um governo".
Há, contudo, uma explicação plausível para esse aparente desprezo, e quem nos dá, é o mestre Alberto Ribeiro Lamego ('O Homem e a Guanabara'). Para ele, o longo período, de tempo, uns duzentos anos, durante os quais são raríssimas as notícias que se têm da Praia Grande, decorre de um paradoxo histórico-social, pois foi no século XVII que o desbravador tomou conta efetiva da terra, nos arredores da baía, arando-a e plantando com tal afinco que, ainda nesse século, já se encontravam, com fartura, no Rio de Janeiro, as produtos agrícolas por eles colhidos em suas fazendas e engenhos, principalmente nos localizados no fundo da baía e que eram escoados através dos numerosos pequenos portos na foz dos rios que ali desaguam. Na época, continua o mestre, o Rio de Janeiro era o único centro intermediário e consumidor facilmente acessível aos colonos, e por isso, talvez, nenhum desses portos cresceu bastante para se tornar um povoado".
Por esse tempo, Niterói não contava além da aldeia indígena, senão com um arremedo de povoado, em São Domingos, o qual justificava uma meia centena, se tanto, de choupanas espalhadas pela Praia do Cabaceiro. Na própria Praia Grande podia-se contar as casas existentes, quase todas pertencentes a alguns dos descendentes dos índios temiminós, companheiros de Arariboia, que, cansados da enseada de São Lourenço, foram trocando parte de suas terras por outras mais perto do mar, enquanto outros, talvez nostálgicos da floresta, barganhavam as suas por outras mais para o sertão".
O fato, lembra Alberto Ribeiro Lamego, "de os pequenos, mas operosos portos fluviais não serem transformados em povoados, mas apenas escoadouros de produtos agrícolas das fazendas próximas, corre por conta ainda das curtas distâncias entre a cidade (Rio de Janeiro) e os centros produtores e dos fáceis transportes fluviais e marítimos". Por outro lado, os colonos, empenhados aos comerciantes da cidade que lhes adiantavam o capital em troca da produção agrícola, "quase impossibilitavam a presença de intermediários naqueles portos". Concebe-se, pois, mostra ainda Lamego, "o desinteresse dos colonizadores, absorvidos em seus clãs rurais, para a fundação de povoados, que, ademais, lhes viriam cercear o absoluto mandonismo. Igualmente, não convinha aos governadores do Rio de Janeiro a criação de outros núcleos populacionais, zelosos que estavam no aumento da Cidade do Rio de Janeiro.
E as coisas foram assim correndo, à vontade dos colonizadores e dos representantes de El Rei, até que a Igreja, "ciosa do domínio espiritual de seu crescente rebanho católico, lançou com a fundação das freguesias, as verdadeiras raízes das futuras vilas e cidades, o que ocorreu dos fins do século XVII para o XVIII, quando surgiram as chamadas "Vilas de comércio", em Iguaçu, Pilar, Jacutinga, Estrela, Inhomirim e Porto das Caixas, está bem mais perto de Niterói do que aquelas, situadas no fundo da baía. Enquanto isso, a Praia Grande progredia tão pouco que, no seiscentos nem mesmo pudesse sofrer paralelo com Campos, já então mais do que uma simples miragem dos Sete Capitães, possuidores de sesmarias entre o Rio Macaé e o Cabo de São Tomé. Fronteira à Praia Grande erguia-se a capital da capitania, subordinando à sua administração e ao seu comércio, toda a atividade agrícola daquele povoado. Daí, concluiu Alberto Lamego, "a tardia aparição da capital fluminense, por desnecessária. Os fatores geográficos da Baia de Guanabara interferiram assim diretamente em sua evolução económico-social".
Por isso tudo se explica, em parte, a falta de notícias da Praia Grande durante quase duzentos anos. Sem um comércio forte, com pequena agricultura e ainda com minguada população, o Povoado de São Domingos da Praia Grande só se tornou notícia de interesse geral a partir de sua elevação à Vila Real, quando começou a independer política e administrativamente de sua coirmã, a cidade que Estácio de Sá fundou com a ajuda de Arariboia e da qual era um distrito.
Aliás, não é somente de Niterói que há falta de notícias no seiscentos e em grande parte do setecentos, pois do próprio Estado do Rio a história pouco registra além das sesmarias dos Sete Capitães e da volta de Cabo Frio à Coroa e suas consequências. Mas tal pauperismo é também da então jovem cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, tanto que o saudoso historiador Vivaldo Coaracy, na introdução de sua portentosa obra "O Rio de Janeiro no Século XVII", escreveu: "Na história da Cidade do Rio de Janeiro, o século XVII permanece obscuro, em penumbra, sobre ele discorrem rapidamente, com pressa de chegar ao período seguinte, de maior brilho e o relevo, os autores de compêndio".
O próprio Monsenhor Pizzarro, considerado, por suas ingentes pesquisas, o grande nome da historiografia do Rio de Janeiro, em sua obra pula da mudança da cidade para o Morro do Castelo, ocorrida em 1568, e para 1710-1711, tratando das invasões francesas.
Vale a pena focalizar que, na época dos vice-reis, as coisas para a Praia Grande começaram a melhorar, com a abertura de estradas e caminhos para o interior, permitindo os transportes, com o que deram escoamento à produção agrícola, ao açúcar e à aguardente, e que, ainda em final do século XVII e princípios da centuria seguinte, o que é hoje o centro de Niterói, achava-se dividido entre proprietários rurais que ali cultivavam a cana e a mandioca. A propriedade de um deles, informa Matoso Maia, ia desde o mar até o Morro da Conceição e seguia por altas vertentes até o morro de São João e daí novamente até ao mar". O curto período dos vice-reis foi extraordinariamente benéfico para Niterói.
Apesar disso tudo, de 1573 a 1763, esses quase duzentos anos foram para a historiografia de Niterói um espaço de tempo tão pobre de notícias que valeu a Antônio Figueira de Almeida a sofrida expressão: "Páginas em branco no grande livro da história de Niterói."
Publicado originalmente em 30 de outubro de 1973 no jornal 'O Fluminense'. Na capa, foto de Mark Ferrez, cerca de 1890.
Série Niterói em três tempos