Cap. 03 - 'Niterói em Três Tempos', por Heitor Gurgel

Niterói, ou melhor, a Povoação de São Domingos da Praia Grande, antes mesmo de ser vila e ter o cobiçado título de Real, foi sede da Corte e, portanto, do governo de Portugal, Brasil e Algarves. O Principe Regente D. João, aconselhado a curtir sua dor "em algum sítio de sossego onde não o molestasse a muita etiqueta da Corte, resolveu passar "os dias de nojo" naquela Praia Grande, que ele avistava nas vezes que ia à Igreja do Outeiro da Glória".

A notícia correu célere por toda a povoação, alvoroçando seus pacatos habitantes, que na visita principesca, viram que algo de bom poderia resultar para sua terra. E logo, um rico traficante de escravos, cujo nome a história não guardou, ofereceu a D. João uma moradia condigna (I). Mas, se não se registrou o nome do ofertante, fez-se pública a pitoresca alcunha pela qual ele era conhecido em todo o povoado e que lhe adviera do estranho vezo de cheirar todo o dinheiro que lhe caia nas mãos.

De fato, não havia residente em São Domingos da Praia Grande e até mesmo em alguns de seus distritos que não soubesse quem era o "Cheira", dono do palacete que ficava no Campo de São Domingos (atual Praça Leoni Ramos) e que era o melhor prédio então existente em toda a região. D. João aproveitou-se da ocasião para, além de revistar a tropa dos Voluntários Reais, dedicar-se à caça no Morro do João Homem então ainda o "habitat" de macacos, cotias, pacas, cabritos monteses e de vistosas papagaios. E tanto gostou Sua Alteza da vilegiatura na Praia Grande que a foi ‘compridando’ até muito depois do necessário. A propósito dessa tropa, Debret (II) depôs: "e para distrair o príncipe, o general inglês William Carr Beresford, comandante em chefe das tropas portuguesas no Brasil, mandou acampar nas proximidades da Praia Grande os regimentos trazidos de Lisboa, que praticavam exercícios diários com o que atraíam muita gente para vê-los". (III) Vivaldo Coaracy (in 'Memórias da Cidade do Rio de Janeiro') disse que: "... já era intenso o trânsito entre o Rio de Janeiro e a Praia Grande, mais se acentuou com a ida da Corte, quando muita gente, deslocada pelo pessoal do séquito real, se mudou para a "Outra Banda", seguindo o exemplo de D. João, que tinha um temperamento andejo".

Três anos depois dessa visita, D. João VI deu sobejas mostras do quanto lhe agradaram aqueles dias passados na Praia Grande, daqueles "ares vivos e puros", ao criar a Vila, no "sitio e povoação de São Domingos", fronteira à cidade e Corte, justificando o ato pelos "grandes embaraços que os seus moradores e os das quatro freguesias confrontantes experimentavam no largo trajeto do mar, a fim de promoverem na Corte os seus litígios e recursos, bem como o crescimento da população que já excedia de 13.000 almas em toda a sua extensão, e, ainda "pela circunstância de ter sido a dita povoação especialmente honrada com a Augusta Presença de Sua Majestade e da Família Real no faustoso dia 13 de maio de 1816, aniversário de Sua Majestade, ficando assim perpetuada a memória desse solene dia". A Vila Real da Praia Grande compreendia as freguesias de São João Batista de Icaraí, São Sebastião de Itaipu, São Lourenço dos Índios e São Gonçalo.

Coube ao Desembargador José Joaquim de Queirós dar execução ao alvará régio, para o que reuniu os moradores da vila e povoações circunvizinhas no dia 11 de agosto de 1819 e lhes fez ver que, no sítio designado, não se poderia estabelecer convenientemente a vila, "porque ali se encontrava o Palácio Real, em frente do qual só havia espaço para o pelourinho e não convinha molestar Sua Majestade".

Expostas ao rei tais circunstâncias, determinou Sua Majestade "fosse a vila estabelecida na povoação contigua, a Praia Grande, que oferecia mais espaço de terra e era plana e larga e aí se achava o porto pelo qual se comunicavam todos os distritos com a Corte". Mas, se o local satisfazia, tinha, porém, dono, fazendo parte da fazenda de D. Helena Francisca Casemira. Mas, já naquele tempo se confiava no célebre "Jeitinho brasileiro" e, apesar de se saber que a terra tinha dono, chantou-se ali o pelourinho da Vila Real da Praia Grande, no chamado Campo de D. Helena. Muitos anos depois, já falecida D. Helena, a Justiça deu ganho de causa aos herdeiros, os quais num gesto de generosidade, doaram incondicionalmente ao município de Niterói as terras, sem qualquer remuneração.

Pelos muitos serviços prestados a D. João e à Família Real pelo Capitão João Homem do Amaral, dos mais antigos moradores da Praia Grande, foi ele recompensado generosamente por D. João VI.

Um Grande administrador

José Clemente Pereira foi o primeiro Juiz de Fora da Vila Real da Praia Granda e a ele se deve os primeiros fundamentos da vila, a urbanização do Campo de D. Helena, o traçado de suas ruas e praças, o inicio da arborização das vias públicas, o primeiro serviço de água potável e a construção da capela de N. S. da Conceição, no "rossio" municipal, depois chamado de Largo de São João e finalmente Praça D. Pedro II, que ficava no alinhamento da Rua da Rainha, hoje Visconde do Uruguai.

No rossio ficava o prédio da Câmara e, por baixo dele, a cadeia pública; ao lado se colocara o açougue e uma casa para receber as farinhas, milhos, legumes destinados à venda pública. No lado oposto da Câmara e fronteiro a ela, se reservará terreno suficiente para um templo dedicado a São João Batista, que é o orago da freguesia da Vila e seu padroeiro. "Na Rua 16, continuava o Juiz de Fora, será colocado o chafaris que deve apresentar ao povo a água do Morro do Carimbé (Calimba, atual Rua Marquês do Paraná).

Para evitar futuras distorções de seu plano urbanístico, José Clemente determinava que "todas as ruas contarão uma largura de 60 palmos (13m50) e ao menos 50 palmos as que por um obstáculo atendível não possam ter 60". E o Juiz de Fora foi mais além, mandando que "nos cantos e esquinas das quatro ruas que enquadram o "rossio" e nos cantos das praças sobre o mar, a ninguém será permitido levantar senão casas de sobrado e ninguém poderá edificar fora do alinhamento das ruas", e nem tampouco "se permitirá terreno devoluto na parte central da vila, obrigando-se os proprietários desses terrenos, no tempo de três anos, a edificar, e não o querendo ou não o podendo serão constrangidos a vendê-los a quem possa edificar, pagando aos donos desses terrenos o justo valor".

O traçado em xadrez da parte central da vila, em ruas paralelas e perpendiculares à praia, pouco comum na época, chamou a atenção de vários viajantes estrangeiros, que visitaram Niterói, como Charles Ribeyrolles que acabou apaixonado pela terra de Arariboia.


(I) - No Arquivo Imperial (Petrópolis) existe um documento curioso, com o próprio título que D. Pedro I lhe deu: "Disposições que faço de minhas propriedades particulares". Entre as arroladas, figura:

12.000$000 - A Casa da Chácara da Praia Grande, sem as cocheiras
30.000$000 - As cocheira só
30.000$000 - Tudo junto

(II) - Como Capitão de Milícias dessas tropas, estava o Oficial Superior Antonio Diogo Parreiras, que foi o primeiro Parreiras que pisou Niterói. Dele descendem os Parreiras fluminenses, entre os quais, o laureado pintor Antônio Parreiras, que nasceu em São Domingos e o saudoso Comandante Ari Parreiras, ex-Interventor Federal no Estado, no início da revolução de 1930.

(III) - "Viagem Pitoresca e Histórica do Brasil"

Publicado originalmente em 31 de outubro de 1973 no jornal 'O Fluminense'. Na capa, o palacete presenteado a D. João VI.

Série Niterói em três tempos








Publicado em 06/03/2023

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