Cap. 16 - 'Niterói em Três Tempos', por Heitor Gurgel
Com menos de 60 mil habitantes, Niterói tinha então uns ares de cidadezinha provinciana, mas era justamente nesse provincialismo que residia o seu maior encanto. A vida na Praia Grande decorria calma, sem tropeços e, como o clima fosse sempre ameno, era uma gostosura morar-se em Icaraí, Santa Rosa ou no Fonseca, considerados os mais saudáveis bairros niteroienses. Os ingleses foram, depois dos franceses de Villegaignon, os primeiros estrangeiros a descobrirem as delícias de Icaraí e para lá se dirigiram aos magotes e, por serem muitos, resolveram fundar um clube Rio Cricket só por eles frequentado.
Com o tempo, e sobretudo por uma política mais aberta de seus dirigentes, filhos de ingleses, mas nascidos em Niterói, o clube foi aos poucos se abrasileirando. Foram os filhos da Loura Albion que trouxeram para a Praia Grande a moda da calça de flanela de cor creme e casaco de xadrez, o uso do cachimbo sempre na boca, mesmo apagado, o gosto pela pesca em mar alto, o futebol e o halterofilismo. Viviam eles, no começo, quase sem terem relações com os brasileiros, metidos com sua vida, prazeres e esportes. Não que fossem racistas ou não quisessem relacionar-se com os da terra, ou ainda porque fossem esnobes: apenas as dificuldades do idioma, tanto deles quanto do nosso, criaram as separações iniciais, E, depois, inglês que se preza só fala com alguém que lhe tenha sido aposentado. Mas, como apresentar um brasileiro a um inglês se eles, em geral, só 'ablam' a própria língua?
A esse tempo podia-se contar pelos dedos das mãos os brasileiros que falavam inglês...
Mas, deixemos de lado os patrícios de Churchill e vejamos como passava o dia a dona-de-casa niteroiense, depois que o marido saía para o trabalho, no Rio de Janeiro ou mesmo em Niterói. Figura essencial numa casa de família era a criada, preta ou mulata, que ganhava entre 10$000 a 20$000 por mês e que trabalhava das 6 horas da manhã até as 10 e 11 horas da noite. Além de cozinhar, pôr e tirar a mesa, arrumar os quartos, lavar a roupa, passá-la a ferro ("ferro de engomar", de ferro mesmo, que se esquentava com carvão de lenha que nele introduzido era depois aceso), varrer a casa, lavá-la com sabão todas as semanas, levar as crianças à escola e apanhá-las de volta. A criada ainda atendia à patroa em suas exigências e os resmungos do patrão, porque a calça não ficara bem vincada ou a camisola de dormir não tinha botão. E era só depois disso tudo, lá pelas 11 horas da noite, que a empregada dava um jeitinho e ia, às escondidas, namorar no portão da casa ou na esquina o empregadinho do açougue ou do armazém, quase sempre um português desejoso de povoar a Praia Grande com mais mulatinhas escuras ou clarinhas.
A dona-de-casa passava o dia nos pequenos arranjos do lar, cosendo, bordando ou cerzindo as melas dos filhos e do marido, e ainda arquitetando doces e quitutes com os quais esperava agradar o marido, que "isso de homem se prende mais pelo estômago do que pelo sexo" - como sentenciava sua mãe. Das filhas, havia pelo menos uma que estudava piano, que era o forte da educação das moças e por isso rara era a casa onde não houvesse um "Plaeyel", fabricado na França e dos mais reputados pianos do mundo. E, além de tocar piano, a mocinha cantava as modinhas brasileiras da época, esganiçando-se em "Quisera amar-te, mas não posso, Elvira". E tome exercícios pianísticos e escalas musicais, além de solfejos, durante grande parte das manhãs ou das tardes.
No tempo, era comum no comércio a varejo o sistema de cadernos, onde se anotavam os "fiados". Logo que uma família se mudava para determinada rua, as primeiras visitas eram dos empregados do açougue, padaria e do armazém das redondezas que vinham disputar a nova freguesa. Para melhor conquistá-la, eles deixavam com o cartão comercial onde trabalhavam, o caderno de fiados, onde era escritos as compras feitas, dia-a-dia, até o fim do mês, quando então eram somadas e apresentado o débito ao freguês. Não raro, as somas eram erradas propositadamente, mas se algum freguês reclamava a soma era imediatamente corrigida. Mas, como brigar com seu Manoel, se ele era tão bonzinho, vendendo fiado e até às vezes, emprestando dinheiro sem juros?
E, em Niterói, por esse tempo, as donas-de-casa tinham ainda à porta o verdureiro que vendia também galinhas, frangos, ovos e frutas da estação. Vinha ele com um ou dois burros carregando jacás com a mercadoria. Hoje, ainda se pode ver tais mercadores nas ruas niteroienses, parando quase de casa em casa, onde os esperam as donas-de-casa mais comodistas ou as que residem longe das quitandas e supermercados. Há, contudo, quem deles se afeiçoe deixando para neles comprar tudo o que precisam, das bananas aos legumes.
Mas, naqueles idos do princípio do século, o jeito era mesmo comprar nos tropeiros. Nas estações próprias eles vendiam carambolas, abios, cocos de catarro, jaboticabas, goiabas, cajás-manga, pitangas e cajus, para não falar nas bananas e laranjas. Nas poucas quitandas então existentes nos bairros, além dessas frutas, galináceos, verduras, ovos e legumes, eram vendidas também as varas de marmelo com as quais os país costumavam castigar os filhos rebeldes ou malandros, açoitando-lhes o corpo com varadas que doíam, mas doíam de verdade mesmo...
Além dessas varas, era vendido uma espécie de bambu, próprio para se armar os "cafifas", as bonitas pipas de papel de seda que a meninada empinava nos dias de vento. E de papel de seda que essas quitandas vendiam, se faziam também os balões de São João e de São Pedro, que subiam aos céus nas noites frias dos santos festeiros.
Bons tempos esses, dirá algum saudosista... Nas ruas niteroienses, na primeira década do século, além dos tropeiros, havia os vendedores de vassouras e os leiteiros, estes acompanhados de uma vaca da qual tiravam na hora, e à vista do freguês, o leite fresquinho e aparentemente sem água. E os doceiros e sorveteiros? "Sorvete, ialá, é de coco da Bahia!", cantavam eles pela rua afora, nas noites de verão.
E os outros pregões citadinos? Os do baleiro, verdadeiro acrobata que fazia malabarismo nos estribos dos bondes de onde saltavam desafiando a lei da gravidade... os dos vendedores de angu, dos roletes de cana, dos compradores de garrafas vazias, enchiam o ar do ambiente sossegado dos bairros niteroienses. E no meio desse vozerio todo, os berros dos apanhadores dos nauseabundos barris, indo de casa em casa.
Publicado originalmente no jornal O Fluminense em 22 novembro de 1973
Na imagem de capa, a Ilha da Boa Viagem na virada no fim do século XIX. Foto de Marc Ferrez (Acervo IMS)
Série Niterói em três tempos