Cap. 17 - 'Niterói em Três Tempos', por Heitor Gurgel

A municipalidade de Niterói tinha o orçamento de Rs: 1.560.000$000 e o imposto predial comandava a receita, apesar de forte sonegação. Durante os trinta e um dias do mês a imprensa da terra protestou contra o mau serviço de barcas e de bondes, a sujeira das ruas, o desleixo na apanha do lixo domiciliar e a eterna falta d'água.

O Estado, de 8 de agosto, publicou uma reportagem, com fotografias ilustrativas da Praça Martim Afonso, sala de visitas da cidade, mostrando o péssimo estado de conservação do calçamento da Rua Visconde do Rio Branco e a falta de lampiões de luz pública, cujas lâmpadas pouco ou nada alumiavam. O Fluminense, de 29 do mesmo mês, dizia que "50 anos antes, Niterói possuía, praticamente, uma bica d'água em cada esquina, bicas que estavam reduzidas a 5, as 2 do Jardim Pinto Lima, 1 na Praça Floriano Peixoto, 1 no Rink e 1 no Cemitério dos Prazeres. As demais, concluía o jornal, haviam desaparecido, como desapareceram os mictórios públicos, já que apenas o do Largo de São João, os laterais da Câmara Municipal e o da Ponte das Barcas, em São Domingos, atendiam ainda o povo.

Apesar disso tudo, o niteroiense vivia feliz e, embora ganhasse pouco, podia pagar por uma casa no Fonseca, de 2 salas, 3 quartos, dependências, jardim e quintal, Rs: 35$000; se essa casa ficasse em Icaraí, na praia ou perto dela, poderia valer, Rs: 45$000 a 50$000 e, se sita no Barreto, de Rs: 25$000 a Rs: 30$000. Em 1919, Icaraí ainda atraía os ingleses, como Mister William Pick, que botou o seguinte anúncio em O Fluminense de 8 de Janeiro: "Cidadão inglês deseja alugar pelo prazo mínimo de 3 anos uma casa na Praia de Icaraí, com 4 quartos, 2 ou 3 salas e dependências completas, inclusive para empregados, e que tenha bom quintal e Jardim. Aluguel: Rr: 80$000 a 100$000. "Uma família de 5 pessoas podia viver com certa folga com Rs: 300$000 mensais, mas a diária de um bom pedreiro não ia além de Rs: 2$500; o ordenado de um empregado no comércio, em casa de primeira ordem, não era muito superior a Rs: 200$000, enquanto os vencimentos de um 3º Oficial da Secretaria do Governo (do Estado) eram equivalentes a Rs: 250$000.

Uma cozinheira de forno e fogão, do trivial fino e também doceira (O Fluminense de 9 de agosto de 1919) alugava-se por Rs: 35$000 a Rs: 50$000 sem dormir no aluguel. Uma outra empregada, para todo o serviço, queria de ordenado Rs. 40$000. A "Pensão de D. Maria Ângela", à Rua Visconde do Uruguai, 174, fornecia pensão completa, a domicílio, por Rs: 75$000 com direito a 4 pratos, no almoço e a 5 no jantar. Em 1910, já era considerado antigo, de mais de 50 anos de existência, o "Restaurante Amarantina", então na Rua Visconde do Uruguai, 526. Aí a refeição com vinho importado, 2 a 3 pratos, doce e frutas de estação, pão e manteiga e café, não excedia a Rs: 3$000, incluída a gorjeta.

Nas sextas-feiras, o Amarantina enchia-se de gente desejosa de saborear o "Bacalhau a Gomes de Sá", regado generosamente com o fino azeite português, como dizia o anúncio publicado pelo 'O Fluminense', de 18 de setembro desse mesmo ano de 1919. Entre os seus fregueses, estavam os deputados estaduais residentes nos municípios distantes que ali faziam suas refeições e o seu ponto de encontro com seus munícipes. O "Restaurante Miramar", ao lado da antiga Estação das Barcas, com mesinhas ao ar livre, bem afreguesado, era aos domingos o único restaurante que ficava aberto além das 10 horas da noite. Ali também, os políticos do interior marcavam encontros com seus eleitores, de passagem ou a passeio por Niterói. Outros de seus frequentadores, os literatos e boêmios, tinham ali seu quartel general, depois que foi abaixo o Café Londres, para a abertura da Avenida Ernâni do Amaral Peixoto. Dos boêmios, o mais assíduo era o poeta Luiz Leitão.

Na década 1910/1920, o jovem praiagrandense, como o brasileiro em geral, começou a ter um novo amor à vida simples, aos esportes, aos sadios divertimentos ao ar livre, enterrando de vez a figura do moço esclerótico, de olheiras profundas, magro e quase tísico, romantizado no máximo, contemporâneo da Dama das Camélias, para dar lugar a uma juventude forte, animosa, que praticava os esportes do remo, da natação e que jogava futebol, além de dançar os foxes-trotss, charlestons, os ones-steps e outras danças americanas que o cinema difundia, de muitos trejeitos e de passos rápidos e complicados, tão diferentes das nostálgicas valsas vianenses, mais consentâneas com o raquitismo e o romantismo da mocidade dos fins do século XIX.

Dançou-se muito nesses 10 anos, máxime nos anos posteriores ao término da primeira grande guerra mundial, nos clubes e casas de famílias e até mesmo durante o carnaval, quando, então, os bailes começaram a substituir a festa de rua. Os bailarinos momescos realizados em 1919 nos clubes Central, Canto do Rio, Icaraí Praia Hotel, Byron, Fluminense, Fonseca e até no Regatas Icaraí fizeram enorme sucesso. E quando alguém, nesse ano do centenário da Vila Real, ficava doente pelos excessos praticados no reinado de Momo, podia contar com o Dr. Luís Palmier que, na Farmácia Barcelos, dava consultas a Rs: 2$000, e com os doutores Jeronimo dias, Oscar Fontenele, Costa Soares, Antônio Pedro, Hernani Melo o Alcides Figueiredo, para só falar nos que habitualmente anunciavam nos dois diários da terra.

E se alguém tivesse que ajustar contas com a Polícia, nada de mais que uma briguinha na rua, procuraria a habilidade e o prestigio do jovem advogado Homero Pinho, que estreara há pouco no Foro defendendo, com sucesso, um coronel reformado da Polícia Militar que matara a esposa por ciúmes. Como advogado no Cível, começava a se impor o Dr. Ramon Alonso, que "podia ser encontrado diariamente no Foro ou pelas manhãs, no Cartório Peixoto", como rezava o anúncio publicado pelo 'O Estado', de 26 de setembro de 1919. Mas, se o niteroiense precisava de um pistolão forte para arranjar um emprego público, ia certamente procurar o benjamin dos deputados estaduais, o inspirado poeta Nélson Kemp ou o não menos moço vereador Acúrcio Torres.

E, por falar em moços, a imprensa noticiava que fora nomeado Prefeito de Nova Iguaçu, o médico recém-formado Dr. Mário Pinotti, e que o jovem médico Professor Vital Brazil aceitara dirigir o Instituto de Higiene e Soroterapia que o governo estadual vinha de criar em Niterói. E, por falar em soro, vale recordar aqui um anúncio que ficou célebre: em 1919, os jornais do Rio de Janeiro e alguns da terra fluminense publicaram o anúncio de "uma milagrosa Pasta Russa que endurece, endireita e aformoseia os seios por mais caídos que sejam". O semanário "A Cruz", editado no Rio, em seu número de 6 de dezembro, protestou contra "a imoralidade dos dizeres desse anúncio, para ele chamando a atenção da Polícia." (continua).


Publicado originalmente no jornal O Fluminense em 23 novembro de 1973

Na imagem de capa, o Restarante Miramar, anexo à Ponte das Barcas (Revista Fon-Fon, 1921)

Série Niterói em três tempos








Publicado em 23/03/2023

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