Capítulo 11 da Série "A Niterói que eu vi e a que viram meus avós", de Romeu de Seixas Mattos
Nasci cerca de quatro anos depois de extinta a escravidão no Brasil (13/5/1889) e descendo de família que, por condições personalíssimas, não possuía escravos. Sendo assim, não tive ocasião de fazer observações diretas dessa triste condição social.
Contudo, pela proximidade de épocas e através de conversas de família, eu pude tomar conhecimento de fatos anteriores, de observar pessoalmente e de sentir os resquícios de pretéritos acontecimentos que ainda pairavam no espaço, amedrontando os menos corajosos.
Assim é que, na minha infância, embora a palmatória não fosse mais admitida nos colégios, havia alguns que mantinham nas salas de aula uma grande palmatória pendurada na parede, para meter medo nos alunos, e mestres que, irregularmente, faziam uso da palmatória.
Também em nossa Marinha de Guerra havia ainda o emprego de castigos corporais: o uso da palmatória, da chibata, da vara de marmelo, correntes pesadas amarradas nos pés e uma espécie de tronco, formado por uma tábua perfurada de modo que prendesse pelo pescoço e obrigar o prisioneiro a permanecer na ponta dos pés porque baixando os calcanhares ficaria suspenso pelo pescoço, situação que perdurou até o advento da revolta liderada pelo marinheiro João Cândido, em 1910.
Trabalhando na Marinha, como operário da Oficina de Torpedos e Eletricidade, destacado para trabalhar com os alemães que vieram instalar o telégrafo sem fio, na Ilha das Cobras e nos nossos navios de guerra, tive ocasião de assistir, fortuitamente, a alguns castigos.
Na ilha das Cobras, a estação radiotelegráfica ficava próximo a uma enfermaria, de modo que tive oportunidade de ver a aplicação de alguns curativos em presos que tinham costas lanhadas por surras de varas de marmelo, mãos e nádegas inchadas em virtude da palmatória. Os castigos eram executados num pátio central que havia nas prisões subterrâneas.
Esse pátio podia ser visto por quem passasse pelo caminho ao longo do fosso de ventilação das referidas prisões subterrâneas, caminho de passagem obrigatória para certos pontos da ilha.
O pátio era quadrado, tendo um dos lados tangente ao fosso de ventilação e os outros três em muros de arrimo, ao longo de cujas paredes estavam suspensas as três tábuas-tronco, com cerca de dez furos cada uma, onde poderiam ser presos, pelo pescoço, os pacientes. Durante a execução dos castigos, sentinelas eram colocadas para impedir a passagem pelo referido caminho.
Por esse caminho passava eu todos os dias, e via, às vezes, homens presos nas tábuas-tronco cumprindo castigo, e outras vezes tinha de esperar que terminasse a aplicação dos castigos e a retirada das sentinelas, para poder atravessar esse ponto. A bordo dos navios de guerra a execução dos castigos era feita com uma lona circundando o local, para impedir que a cena fosse vista.
Os submetidos à prisão pelo pescoço na tábua-tronco, porque era mais demorado esse castigo, não ficavam na coberta dos navios: as tábuas eram suspensas nos corredores dos porões do navio, próximo às celas de prisioneiros.
A prisão na tábua-tronco, em terra, era mais suave que a bordo, porque o jogo do navio dificultava a estabilidade dos presos, que eram obrigados a permanecer na ponta dos pés. Um dia, não sei porque, as sentinelas não estavam a postos e então, no passar pelo caminho, pude ver no pátio central das prisões, já referido, o seguinte:
a) uma pequena força embalada e com baioneta calada, formada no fundo do pátio:
b) as três tábuas-tronco completamente lotadas com presos;
c) uma bateria de caixas tambor e bumbos para fazer barulho durante a execução do castigo;
d) um sargento enfermeiro, munido com uma caixa de socorros urgentes, e outro sargento, armado com um feixe de varas de marmelo, encarregado de aplicar os açoites;
e) um preso com aspecto de nortista sendo açoitado e os outros aguardando a vez, todos completamente nus.
O preso que estava sendo açoitado não gritava nem gemia, porém quando recebia a varada dava a impressão de estar recebendo uma descarga elétrica, porque seu corpo estremecia fortemente, dos pés à cabeça.
Num dado momento, os açoites foram interrompidos, o preso foi examinado pelo sargento enfermeiro, que tomou seu pulso e auscultou seu coração com o estetoscópio e mandou que se completassem até o fim, o número de varadas a que fora sentenciado.
O sargento executor dos açoites dava a impressão de que se sentia como se estivesse executando um serviço eminentemente militar, pois aplicava as varadas acompanhando o ritmo dos tambores e alçava o braço cada vez mais, substituindo as varas que se quebravam por outras que ali estavam, à espera etc. etc. sem perder a atitude marcial, nem o compasso.
Este e outros episódios feriram minha sensibilidade de adolescente e fizeram-me recordar os versos de Castro Alves, as narrativas feitas por minha mãe e especialmente, os fatos contados por Rosalina, uma preta que se integrou na minha família e morreu, já velha, em minha casa.
Rosalina Correa Gonçalves (Gonçalves, o nome do marido), filha de homem livre e mulher escrava, nasсеu арós о advento da Lei do Ventre Livre (28/09/1871, Lei nº 2.040).
Sua avó paterna e seu pai, embora negros, diziam que nunca haviam sido escravos (a avó por ter nascido de ex-escravos já alforriados quando de seu nascimento, ou por ter chegado ao Brasil depois da lei de 1850, de Eusébio de Queirós, que proibia o tráfico e declarava livres os africanos que após ela, aportassem so Brasil, ou, ainda por descender de africanos beneficiados pela mesma lei: quanto ao pai - se a mãe era livre quando ele nasceu, livre seria ele, então).
Até os sete anos ela viveu na casa desta avó, na fazenda de proprietário de sua mãe, a escrava Deolinda. Assistiu a muitos castigos, inclusive aplicados na própria mãe que, desobedecendo à proibição do senhor e quando vinha às festas religiosas em Niterói, visitava a casa do meu avô José Martins de Seixas, de quem fora empregada, como ama-de-leite de suas filhas, e a quem estimava muito e chamava "meu senhor, com isso irritando o verdadeiro dono.
Mas o senhor recusava-se a alforria-la ou vendê-la: "A negra Deolinda não tem preço", dissera quando meu avô quis comprá-la, porque sabia que ele queria libertá-la e ela sonhava com a liberdade acima de tudo.
Meu avô era anti-escravagista, nunca tivera escravos, pagava pelos serviços que lhe prestavam os escravos de outros, que os alugavam, e quando eram bons e dedicados auxiliava-os para a sua alforria, como fez com um escravo de nome Marcolino, que ficou sendo cozinheiro de sua casa, até morrer.
A 'lei do Ventre Livre' determinava que os filhos das escravas ficassem em companhia destas e mantidos pelo senhor delas até atingirem os sete anos. Por isso Rosalina foi retirada da fazenda quando sua avó morreu e ela já estava com 7 anos, sendo levada por sua mãe (Deolinda) para a casa dos Seixas e entregue à minha avó, juntamente com a irmã Chica (já mocinha), "dadas" as duas, como se dizia, para que acabasse de criar.
A Irmã Chica morreu logo e a Rosalina ficou na casa do meu avô até casar-se. Aprendeu a ler e a fazer todos os trabalhos domésticos, tornando-se educada e fina de maneiras, prestando serviços a toda a família, ajudando a criar os filhos menores e aos netos que vieram depois. Foi sempre amiga e solidária com todos e morreu velha, em minha casa.
Quanto à sua mãe (a Deolinda) liberta graças ao 13 de maio, abandonou a fazenda de mau senhor e foi empregar-se para montar casa com um português, de quem teve outra filha, visitando a Rosalina em nossa casa, até morrer.
Quando foi assinada a "Lei Áurea", meu avô ficou tão contente que enfeitou a casa e deu festas porque, abolicionista convicto, sempre dizia: "após a abolição da escravatura haverá bons empregados domésticos, porque eles poderão escolher seus patrões, receber justa paga pelos trabalhos prestados".
Publicado originalmente em O Fluminense, em 10 de maio de 1974
Pesquisa e Edição: Alexandre Porto
Imagem de capa: 'Oleiros de Niterói', Hilda Campofiorito (1943)
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