Capítulo 13 da Série "A Niterói que eu vi e a que viram meus avós", de Romeu de Seixas Mattos

De 1983 a 1910 ganhei minha vida trabalhando como eletricista.

Para isso utilizei-me dos meus conhecimentos de física, adquiridos porque prestava muito atenção às aulas que meu pai dava, em nossa casa, aos seus alunos particulares do curso de humanidades, interessando-me especialmente pelas cadeiras de ciências e de matemática.

Graças a isso, aos 12 anos de idade, dispondo de bom desenvolvimento físico e algum adiantamento intelectual, pude fazer uma prova de suficiência, para ser admitido como operário de 5ª classe da Oficina de Torpedos e Eletricidade da Diretoria do Armamento da Marinha.

Esse cargo de operário de 5ª classe era uma oportunidade que davam aos aprendizes, com a idade mínima de 12 anos, para ingresso no Quadro de Operários das diferentes oficinas do Laboratório da Marinha, localizado na Ponta da Armação, em Niterói. Tendo eu feito o curso primário em Petrópolis, no Colégio Franco-Brasileiro, podia, com alguma dificuldade, entender-me na língua de Racine e, por isso, fui destacado para trabalhar na Ilha das Cobras, com os dois alemães que vieram instalar o telégrafo sem fio nos nossos navios de guerra, onde o horário de trabalho era mais folgado.

Esse pequeno mas precioso tempo disponível era por mim aproveitado, em companhia do meu falecido amigo de infância - Waldemar Nerval Kastrup - em pequenos biscates, fazendo instalações elétricas, enrolamento de motores etc, e até chegamos a possuir em sociedade, uma pequena casa comercial de material elétrico, talvez a pioneira neste gênero, em Niterói.

No início do ano de 1911, perdi meu emprego na Marinha e os trabalhos em eletricidade escassearam, em virtude de maior concorrência no ramo e pelo fato de já haver instalações elétricas na maioria dos prédios de Niterói, visto que há bastante tempo a iluminação da cidade passara do gás para a eletricidade.

Sendo assim, eu e o meu amigo Kastrup tivemos de dar novo rumo às nossas vidas. Instruído pelo seu tio, o Engenheiro Everardo Backeuser, Kastrup aperfeiçoou seus conhecimentos de topografia, iniciados no curso do Colégio Militar e arranjou um lugar de topógrafo na Prefeitura Municipal de Niterói, na administração do ilustre prefeito Dr. Feliciano Pires de Abreu Sodré Júnior, brilhante estadista que trouxe para nossa cidade sensível progresso. Seguindo o exemplo do meu amigo Кastrup e por ele devidamente orientado na nova profissão, arranjei também um lugar de Topógrafo na P.M.N., começando aí a trabalhar no dia 16 de março de 1911.

O Diretor de Obras, nessa época memorável, era o bondoso Engenheiro Dr. Godofredo de Freitas Travassos, integração máxima do cavalheirismo e distinção, amigo sincero do meu avô materno - José Martins de Seixas - que por seu intermédio consegui o meu ingresso na Prefeitura de Niterói.

Arranjado o emprego, apresentei-me para trabalhar ao Dr. Godofredo Travassos e ele, então, apresentando-me o Sr. Jayme da Silva Jardim, que iria ser o meu auxiliar-porta-mira, deu-me ordem para que providenciasse o necessário e procedesse ao levantamento do perfil da Rua Adicional, em toda a sua extensão.

O Sr. Jayme, da Silva Jardim era irmão do ardente propagandista das idéias republicanas, Antonio da Silva Jardim, brasileiro ilustre, notável homem de letras e tribuno inflamado que, tragado por uma fenda que se abriu no solo embaixo dos seus pés, faleceu em 1891, durante uma ascensão do Vesúvio, que estava em erupção.

Munido de tudo aquilo que me era necessário, tive ainda de pedir ao Dr. Godofredo Travassos que me informasse onde ficava a Rua Adicional: ele então esclareceu-me que se tratava de um nome antigo, isto é, que o nome atual (naquela ocasião) era Rua do Reconhecimento, rua esta que agora tem o nome de Avenida 7 de Setembro.

Assim, iniciei minha longa jornada de trabalho na Prefeitura Municipal de Niterói, no dia 16 de março de 1911, numa quinta-feira, tendo começado o nivelamento da Rua do Reconhecimento na esquina da Rua de Santa Rosa.

Ao findar a minha tarefa do primeiro dia de trabalho nessa nova profissão, quando eu, segurando o nível pelas munhoneiras, desmontava e dasatarrachava do tripé a base do instrumento, onde ficam os parafusos calantes, desprendeu-se da parte superior do nível, caindo ao solo e quebrando um parafuso de chamada.

O aparelho que me haviam dado para trabalhar era um nível de Gurley, de tipo antiquíssimo, de grande precisão, com uma luneta muito longa (0,60 m mais ou menos de comprimento), cuja base se prendia à parte superior, através do eixo, por um parafuso de pressão com cabeça igual à do parafuso de chamada, ambos próximos um do outro.

Sendo assim, a inconveniência que havia nesse aparelho era a existência e a proximidade de dois parafusos iguais, com finalidades diferentes, de modo que o operador, inadvertidamente, ao procurar servir-se do parafuso de chamada, desapertava o parafuso de pressão, deixando a base completamente solta, sujeita a cair quando fosse retirado o aparelho do tripé, o que aliás aconteceu comigo naquele dia.

Esse incidente do qual eu não tinha a menor culpa, pois ele resultava de uma inconveniência existente no aparelho, que para evitar acidentes como aquele devia ter um aviso na respectiva caixa, causou-me profundo aborrecimento e obrigou-me a providenciar com urgência a sua reрагаção.

Devido ao funcionamento do comércio, naquela época, ser muito mais longo do que o da atualidade (iniciava-se às seis horas da manhã e terminava às 22 horas), naquele mesmo dia, após o término do meu expediente, às 16 horas, levei o parafuso quebrado à melhor casa de instrumentos de engenharia do Rio de Janeiro, na Rua do Hospício H. Раxos, е lá encontrei as maiores dificuldades, quanto ao preço - 200$000 e quanto ao prazo de entrega - dois meses, porque seria preciso recorrer a São Paulo e talvez aos Estados Unidos, para a obtenção da peça que eu procurava.

Ganhando apenas 150$000 por mês, nesse novo emprego, uma despesa de 200$000 estava inteiramente além das minhas possibilidades e o prazo de dois meses também era muito longo para a solução que eu pretendia; por isso, resolvi pensar melhor sobre o caso.

Voltando para Niterói, completamente desarvorado, no passar pela Rua Coronel Gomes Machado, encontrei ainda com meia porta aberta uma oficina de consertos de gramofones, que aí existiu no nº 2, onde, inesperadamente, obtive a solução de que necessitava pelo preço de 4$000 e para entrega na tarde do dia seguinte.

Fingindo que achava caro aquele preço, pedi redução do mesmo, que me foi negada mediante a explicação de que aquele trabalho, apesar de caro para o preço de um simples paгafuso, não era muito compensador para a oficina, que dele se encarregara mais com o intuito de propaganda do seu serviço do que com fins de lucro, que iriam tentar aproveitar a cabeça do parafuso quebrado, ricamente ornamentada com flores-de-lis estilizadas, e se isso não conseguissem o lucro da oficina ficaria muito reduzida.

Felizmente, tudo correu bem e no dia seguinte, quando me entregaram o parafuso novo, que se ajustou perfeitamente no seu estojo, quiseram saber qual a marca do meu gramofone, que eles não haviam conseguido descobrir: expliquei-lhes então que não se tratava de um gramofone, mas de um instrumento de engenharia.

Nestas condições, aquela modesta oficina de conserto de gramofones, que já não existe, fora das suas ocupações habituais, realizou um verdadeiro prodígio, que me custou tão pouco, porque apenas reduziu a diária do meu primeiro dia de trabalho na PMN de 5$000 para 1$000, enquanto eles ignoravam o valor e a serventia daquele parafuso tão útil, obtido graças à sua habilidade e maestria.



Publicado originalmente em O Fluminense, em 22 de maio de 1974
Pesquisa e Edição: Alexandre Porto


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Publicado em 10/10/2024

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