Capítulo 14 da Série "A Niterói que eu vi e a que viram meus avós", de Romeu de Seixas Mattos

Outro prodígio realizado pela incipiente indústria de Niterói, que eu desejo divulgar, ocorreu em data de que me não recordo com precisão, talvez pelos idos de 1915, e foi a fabricação de cento e quarenta e quatro "bússolas inglesas para navegação perfeitamente imitadas, por uma modesta oficina particular situada nos fundos de uma residência da Rua XV de Novembro, em frente ao Theatro Municipal João Caetano, onde morava o falecido funcionário municipal João Demichelli.

Esse funcionário era um italiano, naturalizado brasileiro, que foi o primeiro chefe dos serviços de elevatórias dos esgotos sanitários de Niterói.

Sendo pequenos os vencimentos do chefe daquele serviço, o Sr. João Demichelli completava os recursos necessários à sua manutenção familiar com os trabalhos particulares que fazia, na sua modesta oficina acima referida.

Em determinada ocasião, cujos detalhes ignoro completamente, o Sr. João Demichelli recebeu uma encomenda para o fornecimento de 144 (doze dúzias) bússolas 'Inglesas', para navegação, com especificações muito severas, dentro de prazo muito curto, mas por um preço muito compensador.

Para um artista pobre, mas notável, como era o Sr. Demichelli, aquele 'maná do céu' era uma tarefa fácil, que talvez já estivesse acostumado a fazer nas ingratas vicissitudes da luta pela vida, quando restaurava elementos de obras artísticas danificadas, peças quebradas de máquinas antigas, relógios velhos, etc.

Sua oficina era enciclopédica, tratava de vários assuntos em pequena escala, consertava fechaduras, fazia chaves, peças de bicas, de bombas que se desgastavam, trabalhos de galvanoplastia, enrolamento de motores elétricos, solda autógena e elétrica etc.

Sendo assim, tratou logo o Sr. Demichelli de desincumbir-se, com a possível rapidez, da sua formidável tarefa, dentro do curto prazo estipulado, porém, para confecção do disco mostrador das aludidas bússolas, a rosa dos ventos, teve ele necessidade da minha modesta colaboração, para calcular pela tabela de cordas os ângulos para marcar os pontos de quartas e meias quartas e outras subdivisões dos quadrantes de que as mesmas se compunham.

A parte mais técnica do citado mostrador foi marcada e desenhada, mediante os cálculos por mim feitos, pelo falecido desenhista municipal Inocêncio Nazário de Gouveia Júnior, filho de um falecido mestre-de-obras, aposentado do Arsenal de Marinha que, também como eu, iniciou sua vida funcional trabalhando nas oficinas da nossa gloriosa Marinha de Guerra.

O desenhista Inocêncio Nazário de Gouveia Júnior deixou, na sua passagem pelo serviço da Prefeitura Municipal de Niterói, notáveis trabalhos de sua profissão, entre eles, o projeto do edifício do Fórum de Niterói, construído pela administração do Prefeito Feliciano Sodré e que ainda hoje existe.

A parte artística do mencionado mostrador, isto é, uma flor-de-lis estilizada, suspensa por duas belíssimas sereias indicando a ponta "Norte" e dois golfinhos e outras alegorias de lendas do mar, indicando a ponta "Sul"; os outros pontos cardeais, foram desenhados pelo também desenhista municipal Manuel Henrique do Carmo, aquarelista, pintor, músico, natural do Estado da Bahia, que na sua terra, Feira de Santana, iniciara a luta pela vida como funileiro, barbeiro, Mestre da Banda da localidade.

O livro de Pedro Rodrigues Pinto e J. Demoraes, editado em 1935, em comemoração da criação da Vila Real da Praia Grande, traz 1 retrato e alguns detalhes da vida de Manuel Henrique do Carmo, tendo em vista haver ele desenhado a capa e contracapa daquele livro.

A despeito da diferença de idades entre nós, eu e o Sr. Manuel Henrique do Carmo éramos muito amigos e trocávamos ensinamentos, porque ele me ensinou música e a tocar flauta, instrumento de sua predileção - eu aperfeiçoei-lhe os conhecimentos de matemática, desenho técnico, topografia, etc.

No centro do referido mostrador da bússola, numa coroa circular, circundando o dispositivo de suspensão da agulha magnética, foi escrito: John Demichelli London.

Sobre isso, eu reclamei do João Demichelll, perguntando-lhe porque não declarava a verdadeira origem daquelas bússolas. Ele, então, respondeu-me: "Nessa eu não caio: gosto muito do Brasil, pretendo morrer em Niterói, mas preciso de recursos para viver, se descobrissem a verdadeira origem dessas bússolas, só quereriam pagá-las na volta das viagens que elas fizessem e eu ficaria sem recursos para viver".

Poucos dias depois de João Demichelli ter entregue as mercadorias na casa que as havia encomendado, entrou na baía de Guanabara uma grande esquadra norte-americana sob o comando do Almirante Caperton, que adquiriu todas aquelas bússolas inglesas fabricadas pelo João Demichelli, na oficina aos fundos da sua residência da Rua XV de Novembro, em frente ao Theatro Municipal de Niterói.

A grave situação criada no período da primeira Grande Guerra Mundial foi, naturalmente, a causa da transferência daquela grande esquadra norte-americana do Oceano Atlântico para o Pacifico, através do Estreito de Magalhães, na impossibilidade ocasional da utilização do Canal do Panamá, tendo em vista que esse canal, embora estivessem terminadas suas obras em 1914, somente foi inaugurado oficialmente em 12 de julho de 1920.

Muito tempo depois dessа осоrrênсіа relativa às bussolas do João Demichelli, eu soube de um caso que me fez relacionar um fato ao outro.

No Rio do Ouro (em Niterói, caminho de Marică), o dono de um sítio estava vendendo por bom preço a um americano certo material radioativo que existia em determinado lugar do referido sítio.

Por esperteza e desonestidade, o dono de sítio passou a misturar o material que vendia ao americano com outro que tinha em outro local do sítio e que era parecido com o primeiro.

Acontece, porém, que depois dessa mistura as compras de americano aumentaram assustadoramente; o matuto, dono do sítio, estava satisfeitíssimo de assim "enganar" o americano, sem saber que essa nova mistura tinha maior teor de radioatividade do que a primeira.

Sendo asim, eu pensei que talvez os americanos verificaram que as bússolas fabricadas pelo João Demichelli eram talvez melhores que as bússolas inglesas verdadeiras e as houvessem encomendado.



Publicado originalmente em O Fluminense, em 22 de maio de 1974
Pesquisa e Edição: Alexandre Porto


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Publicado em 11/10/2024

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