Capítulo 16 da Série "A Niterói que eu vi e a que viram meus avós", de Romeu de Seixas Mattos
Afastado das minhas atividades na Prefeitura Municipal de Niterói, durante os anos de 1921 a 1924, em vista da convocação para o serviço ativo do Exército, como Oficial da Reserva, fui servir na Segunda Circunscrição de Recrutamento, no início daquele período sob o comando de Coronel Joaquim José Firmino, brilhante e culto oficial do Exército, já falecido.
A 2ª CR funcionava no desaparecido
Quartel da Segunda Linha, na Rua Visconde de Sepetiba, esquina de Dr. Celestino, prédio demolido mais tarde, para cujo terreno foi prolongado o edifício do Palácio da Justiça.
Refletindo as excelsas características de comando, a 2ª CR possuía, naquela época, uma oficialidade culta e disciplinada, que, embora modificando-se constantemente pelas transferências e novas designações, conseguia manter as condições de elite que possuía.
Dentre os oficiais que comigo serviram, naquela ocasião, na 2ª CR, havia muitos que, além dos cursos regulamentares que possuíam, tinham também serviços de guerra, haviam estado em Canudos, na Revolta da Armada em 1893, no Contestado e em outras revoluções.
Sem diminuir o mérito dos demais, vou aqui apenas citar os nomes do Coronel Rafael Augusto Machado, do Major Jansen Pereira e do Capitão Antônio Moreira de Souza Júnior, porque, além de lhe honrarem com a sua preciosa amizade e sadia camaradagem, tomaram parte no episódio que desejo relatar.
Tendo em vista a localização da 2º CR (meu novo posto de trabalho), o trajeto dos meus itinerários cotidianos não sofrera grande alteração; por isso, pude observar, ainda naquela época, aquilo que já tinha visto antes, isto é, um tipo maltrapilho, com aspecto de "pau-d'água", que fazia ponto na esquina da Rua da Conceição com Visconde de Itaboraí, em frente à Prefeitura Municipal de Niterói.
Esse tipo comum de rua, pobremente vestido, com aparência de mendigo, não pedia esmolas, não tinha aquela aparência característica dos indivíduos que deixaram de lutar pela vida.
No seu aspecto exuberante de pobreza, parecia que ali estava no posto de observação, talvez algum detetive disfarçado, com a imponência de um canhão de grosso calibre enferrujado, retirado do costado de um navio naufragado, que outrora enfrentara os rugidos das procelas...
Como disse anteriormente, a 2ª CR era comandada pelo Coronel
Joaquim José Firmino, fervoroso teosofista que não perdia ocasião de pregar a colaboração e a fraternidade, estendendo por toda a circunscrição os reflexos e benefícios de sua personalidade marcante, conseguindo manter espontaneamente, pelo exemplo salutar harmonia, respeito e camaradagem entre os seus comandados.
Em frente ao desaparecido quartel, do lado par da rua Visconde de Sepetiba e junto ao desaparecido Largo da Conceição, isto é, no terreno onde foi construído o edifício das Secretarias do Estado, havia uma pensão, instalada num sobrado, onde moravam alguns oficiais que serviam na 2ª CR, inclusive o já referido Coronel
Rafael Augusto Machado, que em determinada oportunidade, tendo uma folga de dinheiro, resolveu oferecer um jantar especial para nós três, na aludida pensão, avisando-nos de que teríamos uma surpresa inesperada nesse jantar.
Para esse jantar comparecemos, apenas, eu e o Major
Jansen Pereira, faltando o Capitão Antônio Moreira de Sousa Júnior, não sei bem porquê, e assim, à hora marcada, nós dois tivemos uma surpresa inesperada realmente, vendo chegar um cavalheiro elegantemente trajado desde os sapatos até o chapéu e a bengala (em uso naquele tempo), um novo convidado para o jantar, no qual imediatamente reconhecemos aquele maltrapilho que estacionava numa esquina em frente à Prefeitura de Niterói.
Surpreendente era a transformação, porque o indivíduo ajustava-se perfeitamente naquela nova encadernação, não ocorrendo aquilo que costuma acontecer aos "pataqueiros" de circos de cavalinhos, que, quando vestem uma casaca para representar na pantomina, demonstram com evidência a sua "casca grossа"...
Naquela mutação repetia-se, em sentido contrário, a sensação que se verificara ao observar o tipo maltrapilho.
Oferecido um aperitivo ao novo conviva, ele o recusou com firmeza, alegando que tinha assumido um solene compromisso de não beber durante 24 horas, compromisso que ele religiosamente pretendia cumprir; a recusa se repetia, com aparência de instintiva, toda vez que, durante o jantar, se testou inutilmente servir as diferentes marcas de bebidas aos convidados do Cor. Rafael Augusto Machado.
Pelo Coronel Rafael Machado, o misterioso cavalheiro foi-nos apresentado como sendo o Dr.
Coelho Cavalcanti. Desembargador aposentado do Estado do Amazonas, pessoa que em tempos idos, lhe havia prestado um grande favor.
Servido o jantar, que correu na maior cordialidade, e após os efeitos benéficos produzidos pela satisfação das necessidades alimentares que predispõe o espírito para as confidências, o nosso interessante convidado, pouco a pouco, foi perdendo o acanhamento de falar de si mesmo e recitou um soneto de sua autoria, com o título de "Coqueiro de Pajuçara".
A seguir, falou de sua mocidade no Rio Grande do Sul, onde tomara parte na revolução contra Júlio de Castilhos de lá fugindo e sendo preso no Estado do Paraná, quando foi embarcado num trem de prisioneiros com o Barão de Serro Azul e outros, tendo escapado daquela legendária carnificina porque, aproveitando-se da diminuição da velocidade do trem na serra, conseguira dele saltar em movimento vertiginoso, fugindo para São Paulo e de lá até o Amazonas, onde fixou-se.
Continuando as narrativas interessantes, referiu-se ao discurso que fez no túmulo de Rafael Cabeda, dizendo que "ele ali estava na posição horizontal, aquele que em vida sempre ereto, na posição vertical, defendera seus ideais, mas que mesmo assim Rafael Cabeda não morrera, porque ele continuava a existir enquanto existisse o intrépido gaúcho, enquanto o pampeiro rugisse sobre os campos dos heróis farroupilhas, campos de quais heróicas batalhas..." etc., etc.
Falou, também, sobre o contato que teve pessoalmente com o escritor
Lima Barreto, seu companheiro de boêmia no Rio de Janeiro, e contou que Lima Barreto quase não se alimentava; que certa vez, dispondo de algum capital, combinaram um encontro no Passeio Público e para isso ele comprara um tostão de pão e novecentos réis de cachaça. Pois Lima Barreto, perguntando-lhe o que trazia para comerem, disse aborrecido: "pra que tanto pão"?
Lembrando-me de alguns boatos desastrosos que corriam em Niterói contra o Dr. Lepage, Diretor da Escola Normal e do Colégio Abílio, sobre a morte do Barão do Serro Azul, pediu-lhe alguns esclarecimentos a respeito.
Respondeu-me então o Dr. Coelho Cavalcanti - quanto à morte do Barão do Serro Azul e a carnificina havida, ele não tinha assistido porque fugira do malfadado trem antes da lamentável ocorrência: quanto à atuação do Dr. Lepage, naquela ocasião, era Alferes da Guarda Nacional a serviço do Governo legal.
Terminado o memorável jantar, a nossa vida entrou, no dia seguinte, na rotina habitual e não tendo a menor lembrança de haver voltado a encontrar o nosso herói nos pontos onde antes costumava estacionar, nem dele tive mais a menor notícia.
O Major Jansen faleceu quando eu ainda estava na 2ª CR; do Capitão Antônio Moreira de Souza Júnior, recebi, em 31 de Janeiro de 1924, um amável cartão de despedida ao afastar-se ele da 2º CR, até que, em março de 1924 voltei às minhas atividades na Prefeitura Municipal de Niterói, perdendo o contato com o pessoal da Segunda Circunscrição de Recrutamento.
Do Coronel Rafael Augusto Machado eu soube, muito tempo depois, que teu filho Floriano - que naquele tempo era tenente e servia numa unidade sediada em Nierói - havia atingido o generalato no Exército; posteriormente, lá no "Correio da Manhã" um artigo assinado por 'Al Right', fazendo referência a um assassinato praticado pelo mencionado coronel, em sua mocidade, no Amazonas; então, lembrando-me que Coronel Machado dissera ter recebido um grande favor do Dr. Coelho Cavalcanti, supus que houvesse correlação entre dois fatos.
Publicado originalmente em O Fluminense, em 11 de junho de 1974
Pesquisa e Edição: Alexandre Porto
Na imagem de capa, prédio do Quartel da Segunda Linha, na Rua Visconde de Sepetiba esquina de Dr. Celestino. Revista Fon Fon, janeiro de 1920.
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