Capítulo 18 da Série "A Niterói que eu vi e a que viram meus avós", de Romeu de Seixas Mattos
Quando em 16 de março de 1911 entrei, como topógrafo, para o serviço da Prefeitura Municipal de Niterói, o edifício da municipalidade era novo, pois sua construção terminara em 4 de agosto de 1910 e as repartições do executivo para ele foram transferidas sem solenidade, conforme já disse em outro trabalho.
Naquela ocasião, o abastecimento de água da cidade estava ainda a cargo da Companhia Cantareira e Viação Fluminense (C.C.V.F.), embora o governo do Estado estivesse cogitando de sua encampação, o que se verificou em 1913.
A primitiva instalação de abastecimento d'água do edifício da P.M.N. foi feita tendo em vista que, naquele tempo, existia um sistema de fornecimento de água contínuo, isto é, o que os técnicos chamam: Regime de fornecimento denominado Torneira Franca.
No regime de fornecimento d'água de torneira franca, não há necessidade do reservatório domiciliar para água, por isso as instalações levam apenas um pequeno reservatório com o volume de 1/3 do consumo diário, somente para compensar 24 variações de descarga nas horas de maior consumo.
Sendo ainda novo o prédio e tendo sido projetado para nele funcionarem a Câmara e a Prefeitura e tendo vindo instalar-se nele apenas as repartições da Prefeitura, visto que as da Câmara continuaram no antigo prédio do Jardim de São João, substituído depois pelo atual, o edifício apresentou, durante muito tempo, a necessária comodidade para os serviços municipais.
Em 1924, o Dr. Rodolfo
Villanova Machado voltou à Prefeitura Municipal de Niterói, desta vez eleito pelo sufrágio direto do eleitorado niteroiense, para o período de 1924 a 1927.
A condição de prefeito eleito deu-lhe autonomia e possibilidade de aumentar impostos e de remodelar os serviços e a sede da municipalidade, conforme as necessidades do momento e de acordo com o seu critério.
Para rever os vencimentos do funcionalismo, o Dr. Villanova mandou fazer um estudo para saber quais eram, em todo o Brasil, os vencimentos dos funcionários federais, estaduais e municipais e verificou que, na ocasião, o funcionalismo do Estado de São Paulo era o mais bem remunerado, então, equiparou os vencimentos dos servidores da P.M.N aos do Estado de São Paulo.
Em virtude disso, eu, que já atingira o quadro de engenheiros da Prefeitura, passei a ganhar 800$000 por mês.
Entretanto, se por um lado havia uma alta remuneração havia também maior exigência na assiduidade e produtividade do funcionalismo, em contrapartida.
Durante a administração do Prefeito Villanova Machado o "ponto era rigorosamente fiscalizado e havia o regime do - PODE - de que todos se lembram por que nos dias de audiência pública o expediente se prorrogava além da hora regulamentar, o que poderia acontecer também nos dias comuns, permanecendo funcionários sempre em seus postos, até que fossem chamados pelo Prefeito para execução de alguma tarefa ou explicação de alguma providência, ou até vir do Gabinete a ordem para encerrar o expediente ou seja: o "PODE" ir embora.
Na remodelação do edifício realizada em 1927 (já descrita em outro trabalho) foram também revistas e remodeladas as Instalações sanitárias e a do abastecimento de água, de forma a adaptá-la às novas exigências resultantes das transformações sofridas pelo abastecimento geral da cidade.
Em 1927 o abastecimento de água de Niterói não estava mais no regime de Torneira-Franca, havendo necessidade de manobras especiais para atender aos pontos altos da cidade.
Considerando a tendência de haver piores situações no abastecimento d'água local enquanto não houvesse um reforço substancial, o dirigente da firma empreiteira - General Júlio de Noronha - quando fez as obras no edifício da P.Μ.Ν. em 1927, modificou a instalação de abastecimento d'água do prédio, de forma que recebesse água através de um reservatório ao nível do solo, e colocou uma bomba com recalque para um reservatório superior.
Dotado de um reservatório superior de muito maior capacidade que o anterior e de outros melhoramentos, o prédio da P.M.N. ficou em condições de atender às suas necessidades por longo tempo.
Sendo assim, o Dr. Villanova Machado - com aquela proverbial energia que o caracterizava, com aquela louvável mentalidade militar que não tinha cerimônias para "pôr fora de forma" aquele que estivesse marchando com passo trocado, não poderia admitir, de modo algum, que, após a custosa remodelação por ele feita no edifício e, especialmente, na instalação de abastecimento d'água, viesse o mesmo, em tão curto prazo, a experimentar qualquer deficiência, qualquer que fosse ponto-de-vista em que se colocasse, sem que para tal houvesse um responsável.
Todavia, a despeito da magnífica orientação técnica e da vultosa despesa feita, o edifício remodelado passou a sofrer deficiências progressivas, até chegar à completa e absoluta falta de água, sem que para isso houvesse qualquer explicação.
Nesse tempo eu chefiava a Seção de Obras Públicas da Prefeitura e houvera recebido do Dr. Villanova Machado uma prova de confiança porque, na reforma administrativa por ele feita, reunira na minha seção os serviços de abastecimento de água, os serviços de esgotos sanitários, os serviços de calçamentos, jardins e arborização da cidade.
Sendo Diretor de Obras o meu grande e saudoso amigo Dr. Manuel Ribeiro de Almeida, tivemos de suportar com serenidade, eu e ele, as justas e enérgicas reclamações do Prefeito Dr. Villanova Machado.
O inexplicável fenômeno tivera uma apresentação e evolução perfeita e autêntica das características dos fenômenos desta natureza, embora não existissem causas para a sua origem.
Nestas condições, traçamos um penoso plano de vigilância com grandes dificuldades e com alguns insucessos resultantes das circunstâncias melindrosas que envolveram o fato.
Instalamos logo um hidrômetro na ligação de abastecimento da água da Prefeitura, para controlar, através de leituras diárias, o fornecimento de água realmente feito.
Verificamos, também, se havia algum vazamento nas torneiras e aparelhos sanitários e, felizmente, não havia.
Designamos um funcionário para verificar diariamente, depois que fosse encerrado o expediente e na hora de fechar a Prefeitura, se não ficara esquecida alguma torneira aberta.
Seguido o método de raciocínio indutivo denominado "Método dos Resíduos", afastadas todas as hipóteses possíveis e imagináveis, restava apenas a possibilidade de uma sabotagem, que nos repugnava admitir, tendo em vista os princípios de filosofia primeira, que aconselha imaginar as hipóteses mais simples, mais simpáticas e de acordo com os fatos anteriormente observados.
Premidos pela evidência das circunstâncias, tivemos de admitir a hipótese de sabotagem: uma vez admitida, precisamos esclarecê-la: para isso chegamos à conclusão de que a pesquisa deveria ser efetuada por pessoa com isenção de ânimo e desconhecida dos envolvidos no caso.
Para tal, aproveitamos, com sucesso, as habilidades natas de um "sherlock" improvisado, isto é, uma pessoa que ia ser admitida no serviço da PMN e que, por isso, era absolutamente desconhecida dos envolvidos no caso e dos possíveis suspeitos.
Essa pessoa, já falecida, revelou-se um esplêndido detetive amador, pois, em menos de duas horas, obteve com imenso êxito todas as informações necessárias que possibilitaram apanhar o infrator com a "boca na botija".
No compartimento dos sanitários e mictórios, hoje desaparecido, havia um registro para graduação das descargas de água para lavagem automática dos mictórios, cuja manobra era difícil, pois estava situada em ponto elevado e oculto atrás de um azulejo removível.
Esse registro precisava ser regulado para evitar desperdício d'água, por isso eu, pessoalmente, fiz a sua graduação, e várias vezes o encontrei desregulado, e por mais esforços que fizesse, não consegui descobrir quem manobrava ocultamente, apesar de nele ter posto um vigia permanente durante as horas em que os serviços da Prefeitura funcionavam.
A vigilância ostensiva desse registro não deu resultado para acabar com a misteriosa falta d'água porque havia outros pontos usados pelo nosso matreiro adversário, e então tivemos de alterar nosso modo de agir.
Para esse registro, o meu amigo Sherlock recebeu a recomendação especial de observá-lo disfarçadamente, depois que eu determinara publicamente a retirada do vigia, para fingir que desistia da vigilância naquele setor, etc, etc.
Nesse dia, nossos horóscopos nos estariam inteiramente favoráveis e naturalmente o nosso sabotador estava "com sinal fechado", porque o improvisado detetive particular surpreendeu uma pessoa, altamente graduada, manobrando o tal registro, após ter-se servido dos mictórios.
Em seguida, essa pessoa, ao invés de utilizar-se do lavatório de mãos existente no compartimento dos mictórios, encaminhou-se para a sala da Comissão de Compras, e serviu-se da pia de mãos aí localizada, a qual deixou com a torneira completamente aberta, com grande jorro.
Achando-me ausente da Prefeitura para o almoço, meu amigo Sherlock, de posse de tão preciosa pista, comunicou o fato imediatamente ao Dr Ribeiro de Almeida. Não perdendo tempo, o Dr Ribeiro procurou logo o Sr. Prefeito e não o encontrando, deu conhecimento do que se passava ao Professor Cardoso, Oficial de Gabinete do Dr. Villanova Machado.
Após comprovarem a veracidade da denúncia, seguiram ambos (o Dr. Ribeiro e o Professor Cardoso) para o gabinete de trabalho da pessoa acusada: lá chegando, os dois tiveram uma enorme e desagradável surpresa: a pia de lavar mãos desse gabinete estava com a torneira completamente aberta, desperdiçando grande quantidade de água!
A pessoa pega em flagrante "com a boca na botija" ocupava um cargo muito elevado na P.M. N., tinha ascendência sobre todas as repartições municipais e a sua autoridade nessa época situava-se imediatamente abaixo do Prefeito e do Secretário; assim agia com intuito de provocar um atrito entre Prefeito Villanova e Dr. Ribeiro de Almeida.
Depois disso, a água não mais faltou na prefeitura ...
Publicado originalmente em O Fluminense, em 19 de junho de 1974
Pesquisa e Edição: Alexandre Porto
Na imagem de capa, prédio da Prefeitura de Niterói (Hoje Palácio Arariboia) em 1913.
Tags: