Capítulo 19 da Série "A Niterói que eu vi e a que viram meus avós", de Romeu de Seixas Mattos
José Bonifácio, na poesia 'Árvore Seca', disse e disse bem: "que a árvore seca é a imagem do tempo que passou, que cada galho dos seus sabe uma história, também a sabe o tronco escodeado, os ossos de um morto, as cruzes das campas, as ruínas de um templo derrocado, etc".
Parodiando José Bonifácio diremos também que cada esquina de rua conta a sua história, vivida talvez por algum herói anônimo, e envolve um passado talvez grandioso.
Em Niterói, como em toda a parte, cada elemento de sua composição envolve um passado grandioso ou singelo, prazenteiro ou desagradável, mas sempre interessante à rememoração porque é ou pode ser associado a um fato, pessoa ou local que nos diz respeito...
Nas esquinas de Niterói cruzam-se não apenas as ruas mas também os destinos dos seus habitantes e, às vezes, o destino da cidade ou até do país, influindo ou modificando o curso da história. São testemunhas do tempo, encerram mensagem que merece ser recolhida e transmitida à posteridade.
Sendo assim, iniciaremos por uma esquina que teve grande influência no rumo da história niteroiense, pois a cidade que, então arraial, atravessara um grande período de vida vegetativa, teve com a vinda para o Brasil da Família Real de Portugal e, especialmente, com a visita de
D. João VI a Niterói, um progresso notável.
Por isso a interseção dos lados ímpares das ruas dos Cabaceiros e do Ingá, ruas que atualmente têm os nomes de Guilherme Briggs e José Bonifácio, será o ponto escolhido para o nosso desiderato de hoje.
Nessa esquina existiu o
Palácio de São Domingos, também conhecido como Palácio de D. João VI, até o ano de 1904 quando foi demolido, sendo no terreno, muito tempo depois, construídos OS atuais prédios nºs 1, 3, 5, 7, 9, 11 e 13 da Rua José Bonifácio.
Desse palácio existe uma fotogravura no Livro do Centenário da Criação da Vila Real da Praia Grande, publicado em 1919 por J. Demorais e Pedro Rodrigues Pinto, e outra de maiores dimensões incluída no Álbum publicado pelo Dr. Júlio Pompeu de Castro e Silva em 1925.
Uma fotocópia da fotogravura publicada no álbum do Dr. Júlio Pompeu foi por mim aproveitada para desenvolver a épura da perspectiva de forma a obter a projeção da planta baixa do palácio e conseguir as respectivas dimensões do edifício, que seriam as seguintes:
Frente do Palácio - que fazia para o antigo Largo de São Domingos (atual Praça Leoni Ramos) e para o prolongamento da Rua dos Cabaceiros (atual Rua Guilherme Briggs) - 30.07m (trinta metros e sete centímetros).
Lado do Palácio - que fazia com a antiga Rua do Ingá (atual Rua José Bonifácio) 40,36 m (quarenta metros e trinta e seis centímetros).
O terreno onde foi construído esse palácio ficava fora da sesmaria concedida ao índio Arariboia, fora portanto do litoral existente em 1568, porque foi obtido através de um acrescido de marinhas, isto é, com o aterro da desaparecida Praia dos Cabaceiros e desmonte do Morro da Pampulha, o qual, a meu ver, foi uma ilha, posteriormente ligada ao continente.
Desse acrescido de marinha também faziam parte outros terrenos, tais como: o do Largo de São Domingos, o da Igreja do Gragoatá, o das oficinas da C.C.V.F. e outros.
Em 1903 eu ainda pude ver o Palácio de D. João VI, embora em ruínas, e um pedaço do Morro da Pampulha que ainda não era demolido; por isso penso que a área total desse acrescido precisou de receber também aterro vindo de fora.
Para reforço da minha afirmativa transcrevo umas notas esparsas recebidas da Professora Thalita de Oliveira Casadei, Presidente do Instituto Histórico de Niterói:
Livro da Receita da - 1819
Sargento-Mor Francisco de Faria Homem:
Pagou
A Joaquim Gomes Barbosa por 67 barcaças de aterro que deitou no Largo de São Domingos e caminho que vem para esta Vila.
A Ricardo Tompson por 77 barcaças de aterro que conduziu e deitou no Largo de São Domingos e Rua Nova da Praia.
A Manoel José Rodrigues de Carvalho por 50 barcaças de pedra e 42 de barro que deitou em diferentes partes para conserto do caminho de São Domingos.
Na abertura das novas ruas e conserto dos caminhos de São Domingos para esta Vila e de São Lourenço.
Essas notas são muito sucintas, não conseguiu a Professora Thalita apurar naquela fonte quanto foi pago, etc., mas, a despeito disso, dão-nos uma informação que confirma a nossa suposição de que o aludido acrescido de marinha recebeu aterro complementar vindo de outros pontos, além do obtido pela demolição do Morro da Pampulha.
O Palácio de D. João VI pertenceu antes a
João Homem do Amaral que foi interinamente Capitão-Mor durante cerca de vinte anos e, no entanto, na efetivação do posto, foi preterido pelo Sr. Gabriel Alves Carneiro, conforme Manuel Benício, em trabalho publicado no livro de J. Demorais e Pedro Rodrigues Pinto, em 1919.
Neste trabalho transcreve
Manuel Benicio uma petição de João Homem do Amaral pedindo a efetivação do posto de Capitão-Mor e alegando a doação feita à esposa de D. João VI.
Também Mattoso Maia Forte in "Notas para história de Niterói" - 1935 - diz que o Morro da Pampulha pertenceu a João Homem do Amaral, e isso confirma a citação supra.
A Professora
Thalita de Oliveira Casadei forneceu-me, tiradas do Volume da Correspondência do Presidente da Província com o Ministro do Império, umas notas com data de 20-10-1834, nas quais se refere Rodrigues Torres (Visconde de Itaboraí) ao Palácio de São Domingos, cedido pela Casa Imperial para residência do Presidente da Província, pelas quais se pode ver que o palacete de São Domingos esteve até aquela data alugado a dois "alugadores", que foi cedido ao Governo da Província para residência dos respectivos Presidentes, conforme a entrega das chaves, etc.
Outras notas esparsas que a mesma senhora recolheu, relativas ao Palacete de São Domingos, que falam sobre as cocheiras, sobre a conveniência da retirada de um gradil, etc., eu deixo de incluir aqui porque me faltam outros elos da cadeia história para que pudesse coordená-las e interpretá-las.
Milliet de
Saint Adolphe, em seu "Dicionário Histórico, Geográfico e Descritivo do Império do Brasil", dá ideia de como era a cidade naquele tempo:
"Os montes, cobertos de verdura a certa distância da cidade e por detrás dela, seus cais arqueados defronte da baía acompanhados de renques de casas elegantes e aparatosas, que se descortinam por entre as alamedas plantadas para temperar o ardor do sol, oferecem aos olhos do observador um dos mais risonhos painéis que dar-se pode, sobretudo, se vem para a cidade por água.
Neste cais há uma casa de recreio do governo imperial, qualificada de palácio, cuja frontaria se não vê por se achar escondida detrás de dois quadrados d'obra d'alvenaria de que consta o portal, que se acha a pequena distância em frente do edifício".
Como se depreende das afirmativas de Milliet de Saint Adolphe, o palacete de Dr. João VI não era visível do mar, isso porque o Morro da Pampulha àquela época não estava suficientemente demolido, tanto assim que havia dois muros de arrimo para protegê-lo quanto à possibilidade de um deslizamento.
Aliás, como já disse anteriormente, alcancei em 1903 os remanescentes existentes do Morro da Pampulha, no terreno de uma fábrica de vidro, que também não mais existe.
Nota: - No meu artigo "Surpresa Inesperada", publicado em "O Fluminense" de 6 de junho do ano corrente, cometi um pequeno engano ao referir-me ao nome do Major Jansen. Chamava-se o saudoso amigo João Fernandes Jansen Tavares. O seu primo, que também passou pela 2ª C.R., exercendo embora cargo menos elevado, é que era o Major Jansen Pereira. Uma filha do Major João Fernandes telefonou-me para alertar-me quanto ao lapso e esclareceu-me quanto à data da morte do meu amigo, que até então eu não podia precisar. Ele faleceu na 2. C.R., em 30 de maio de 1923.
Publicado originalmente em O Fluminense, em 21 de junho de 1974
Pesquisa e Edição: Alexandre Porto
Tags: