Capítulo 23 da Série "A Niterói que eu vi e a que viram meus avós", de Romeu de Seixas Mattos
Em 1911, o prefeito de Niterói, Dr. Feliciano Pires de Abreu Sodré Júnior, após grande remodelação no Theatro Municipal da cidade, contratou uma temporada artística com a atriz
Ismênia dos Santos (a velha), que encenou várias peças clássicas, podendo citar de memória: "A Morgadinha de Val Flor", "João José", "Teresa Raquim", "O Poder do Ouro", "José dos Telhados" outros dramas de igual envergadura.
Da companhia teatral de Ismênia faziam parte os atores:
Armando Duval, seu filho;
Júlia Santos, sua nora;
Atila de Morais, seu filho de criação;
Conchita Bernard, esposa de Atila; e outros mais, cujos nomes não me ocorrem agora.
Era de alto nível o desempenho de todos os artistas, todos 'vivendo' os personagens que representavam, empolgando e deliciando a plateia que ficava 'suspensa' e magnetizada, presa às falas dos intérpretes, seguindo as cenas desenroladas no palco, sofrendo as angústias e problemas dos personagens, atenta, mas silenciosa, emocionada, mas contida, até baixar o pano, quando manifestava sua aprovação em aplausos demorados.
Num dos espetáculos, porém, estando a casa cheia, na cena tremendamente dramática de "Teresa Raquim", do suicídio dos personagens criados por Atila de Morais e Júlia Santos, quando inadvertidamente o ator bebeu todo o conteúdo do vidro de 'veneno', entregando-o a Júlia Santos para que se matasse com o resto do veneno; um expесtador, na plateia, gritou com voz de matuto: "Tá vazio seu!" - e a cena tornou-se cômica provocando hilariedade geral.
O piso do Theatro Municipal naquele tempo, antes da remodelação, era de madeira, isto é, assoalho com tábuas muito largas e grossas, sem serem do tipo macho e fêmea, deixando muitas fendas na sua junção. Era o teatro iluminado a gás e seu mobiliário constava de cadeiras austríacas, interligadas umas com as outras em grupos de dez, por duas ripas pregadas por baixo do assento.
Constaram as obras realizadas pelo prefeito, além de pinturas e calações novas, a colocação de um novo piso de ladrilhos, reforço dos vigamentos, substituição do mobiliário, iluminação elétrica e outros melhoramentos.
Era zelador do teatro, vindo de administrações anteriores, o Sr.
Francisco Brandão, que residia na casa existente ao lado para esse fim, em companhia de sua mãe e do irmão de nome Eurico.
Embora exercêssemos na Prefeitura Municipal a função de topógrafo, eu e o meu falecido amigo
Valdemar Kastrup fomos enviados ao Theatro Municipal, para fazer a instalação de sua iluminação elétrica, porque havíamos sido eletricistas antes de nosso ingresso na PMN. Também o Sr. Francisco Brandão, que fora eletricista antes de ser nomeado zelador do teatro, foi encarregado conosco da tarefa de instalar luz elétrica no Theatro Municipal.
Através de conversas com o "Chico" (tratamento que dávamos ao Sr. Francisco Brandão) viemos a saber que se verificaram estranhas ocorrências no início de sua atuação como zelador do teatro, felizmente cessadas mais tarde.
Assim é que o pano-de-boca, que para funcionar exigia o esforço de dois homens, inexplicavelmente movimentava-se sozinho, suspendendo e arriando sem que houvesse intervenção de ninguém.
Também as cadeiras austríacas, ligadas por ripas em grupos de dez, compondo as filas, eram afetadas pelo que quer que fosse; as filas caiam e levantavam sozinhas, assombrando os serventes que trabalhavam na limpeza do teatro e criando dificuldades ao zelador para encontrar pessoas corajosas para enfrentar essas manifestações.
Um dia, quando eu e o Kastrup fomos fazer a instalação elétricas nos camarins da parte térrea, encontramos fechado à chave um deles.
Aberto pelo Chico, vimos que aí existia uma mesa redonda de três pés, circundada por três cadeiras, havendo sobre a mesa um castiçal com vela de cera, três vasos - um com água, outro com terra e outro com folhas de vegetais - e muitas tiras de papel já escritas.
Soubemos então que ali se reuniam: o
Eurico Brandão (irmão do Chico), o
Isaltino Barbosa e o
José Liberato dos Santos; graças a isso haviam cessado as ocorrências estranhas a que nos referimos anteriormente.
Passaram-se os tempos e, apesar de sentir algumas dúvidas sobre tais acontecimentos, porque não os tinha visto pessoalmente, nunca me lembrei de perguntar ao Liberato (que era meu amigo) a respeito desses estranhos fatos, embora eu com ele me encontrasse de vez em quando, fazendo perícias judiciais.
Em 1953, casualmente, um dia, tocamos no assunto, e o Liberato me contou o seguinte:
Que em 1910 ele, Liberato, encontrou-se com Eurico Brandão, que naquela época era formado em farmácia e escrevia em jornais sobre assuntos políticos.
Conversando no Café Cascata, na Rua do Ouvidor, no Rio de Janeiro, falou-lhe o Eurico sobre estranhas ocorrências que se estavam repetindo no Theatro Municipal de Niterói e Liberato informou que aqueles fatos poderiam ser esclarecidos pelo Sr. Isaltino Barbosa, mas infelizmente não o via há muito tempo.
Saíram do Café Cascata e continuaram conversando do lado de fora quando, momentos depois, apareceu o Isaltino que, apresentado ao Eurico e posto ao corrente dos acontecimentos, afirmou poder esclarecer o caso, uma vez que tivesse um lugar para se reunirem.
Tendo um escritório no Beco dos Carmelitas, nas imediações do Café Cascata, ofereceu-o Liberato para nele serem realizadas as reuniões necessárias.
Na reunião, feita no escritório do Liberato, manifestou-se o espírito de um tio materno do Eurico Brandão, um Desembargador aposentado e recentemente falecido, que disse estar muito aborrecido porque sua filha, depois de sua morte, havia reatado um noivado que a faria muito infeliz se resultasse em casamento, motivo por que provocara aquelas manifestações no teatro, como meio de poder comunicar-se com a família.
Em vista disso, comprometeu-se o Eurico a tentar, através de sua mãe, convencer a prima a desfazer o noivado inconveniente, o que foi obtido com facilidade, terminando assim as manifestações estranhas no teatro.
Esclarecido o que pretendiam saber, manifestou-se em seguida outro espírito, aconselhando os três homens a formarem um grupo espírita - Trindade - que funcionou regularmente no teatro, cerca de três anos, produzindo trabalhos aproveitáveis.
Um dia, numa das sessões regulares do grupo, o tal espírito anunciou que um dos membros teria de ser substituído e que, quando tal acontecesse, deveriam convidar o Comandante
Augusto de Souza Lobo para substituir o membro que teria de afastar-se.
Ficaram todos muito apreensivos, pensando na morte de um deles.
Sucede, porém, que o Eurico, tendo feito concurso para farmacêutico do Exército, foi bem classificado e nomeado, por isso afastando-se de Niterói e dando seu lugar como membro do grupo Trindade ao Comandante Augusto de Sousa Lobo, como fora recomendado.
Entre os trabalhos produzidos pelo grupo Trindade existe um denominado "Pluralidade dos Mundos", que foi editado pelo Professor
Leopoldo Machado - Diretor do "Lar de Jesus" - com o título alterado para "Um Espírito Através do Cosmos".
Um exemplar dessa obra mediúnica do grupo Trindade, psicografada pelo Isaltino Barbosa, foi-me oferecida, nessa ocasião, pelo meu falecido amigo José Liberato dos Santos.
Pela leitura desse livro, verifiquei que as tiras de papel psicografadas pelo grupo Trindade estiveram por algum tempo esquecidas em um arquivo abandonado, provavelmente quando Liberato foi Prefeito de Rio Bonito, na administração do Interventor Ary Parreiras. Então, foram encontradas pelo Sr. Columbano dos Santos, Tabelião em Capivari, que as remeteu a seu irmão Oscar Coelho dos Santos que, por sua vez, as entregou ao Professor
Leopoldo Machado; este as editou com o título de "Um Espírito Através do Cosmos".
Tudo isso deve ter sido feito de acordo com o Liberato, conforme se pode ver pela autorização escrita, assinada em Niterói, em 2 de fevereiro de 1953, por José Liberato dos Santos, na qualidade de único sobrevivente do grupo.
Nessa autorização diz Liberato, que o Comandante Sousa Lobo foi substituído pelo Major Eurico Brandão, e isso está em desacordo com o que ele me contou e o que eu verifiquei quando eles trabalhavam no teatro, em 1911; por isso penso que essa substituição mencionada na autorização seja outra, posterior, e não a que houve no grupo Trindade quando o Sr. Eurico foi nomeado Farmacêutico do Exército e afastou-se de Niterói, deixando em seu lugar, o Comandante Sousa Lobo.
O capitão de Mar-e-Guerra Augusto de Sousa Lobo foi Diretor de Contadoria do Ministério da Marinha, fundador da Federação Espírita de Niterói e de outras organizações filantrópicas.
Depois de 1911, por várias vezes, foi o Theatro Municipal remodelado. As grades das frisas e camarotes, que eram de madeira torneadas, foram substituídas por estuques de gesso ornamentado; a instalação elétrica primitiva, cujo quadro geral era de madeira e os condutores em
cleats, foi substituída por um quadro de mármore e condutores embutidos em conduíte e eletrodutos; modernizando o mobiliário; eliminados os camarins da parte térrea, num dos quais se reunia o grupo Trindade e onde me lembro de ter lido um trecho referente à Cruz e Sousa numas das tiras de papel psicografadas, no dia em que fiz a instalação elétrica de luz nesse camarim, e ter visto outras coisas interessantes, rapidamente examinadas, porque o Chico não nos deixou fazer uma observação demorada do local.
Publicado originalmente em O Fluminense, em 03 de julho de 1974
Pesquisa e Edição: Alexandre Porto
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