Capítulo 22 da Série "A Niterói que eu vi e a que viram meus avós", de Romeu de Seixas Mattos
A cabeça d'água é um fenômeno traiçoeiro a que estão sujeitos os rios na Baixada Fluminense, principalmente nas proximidades da raiz da Serra de Teresópolis.
Digo fenômeno traiçoeiro porque a ocorrência dele pode verificar-se inesperadamente, com tempo bom, bastando que caia uma enxurrada numa serra distante, num determinado vale, invisível até do ponto em que está localizado o observador, de modo que, de repente, as águas de um tranquilo e modesto rio crescem rapidamente, tanto em volume e altura como em velocidade, saindo fora do leito habitual e espraiando-se pela planície de forma arrasadora, sendo a pessoa surpreendida, na maioria das vezes, banhando-se ou até mesmo atravessando o rio, como aconteceu comigo.
No dia 14 de janeiro de 1973 várias pessoas que se banhavam no rio Guapi, em Guapi-Mirim, 3º Distrito de Magé, em pleno dia de sol, foram arrastadas por uma cabeça d' água, morrendo cerca de quatro delas, o que me fez recordar coisa semelhante comigo acontecida, na luta pela vida quotidiana.
Em 1927 o prefeito de Niterói era o Dr.
Rodolfo Villanova Machado, sendo seu secretário o Engenheiro-Militar Dr.
Artur Rodrigues Tito, ambos falecidos. Exercia o cargo de Diretor de Obras da PMN o já falecido Dr. Manuel Ribeiro de Almeida, e eu era o Chefe da Seção de Obras Públicas da referida Diretoria.
Estávamos procedendo aos estudos para o traçado de uma linha adutora entre o manancial do rio Serra Queimada e Porto das Caixas, para reforço do abastecimento de Água à cidade de Niterói.
Para isso tínhamos uma turma de trabalhadores no rio Serra Queimada - sob a chefia do Topógrafo Getúlio Borges da Silveira e outra turma acampada na Fazenda Macacu chefiada pelo Engenheiro-Militar Dr. Heitor Alberto Carlos, seguindo o trabalho de cada turma uma em direção à outra.
Precisando afastar-se do serviço, para vir ao Rio de Janeiro, o Dr. Heitor Alberto Carlos marcou uma tarefa para o pessoal efetuar: um estivamento que possibilitasse a passagem através dos brejos em locais mais profundos mas, esperando voltar rapidamente, não nos avisou de sua breve ausência.
Por isso, vendo-o no Clube Militar, onde jogava uma partida de xadrez, o Dr. Tito levou o fato ao conhecimento de prefeito Villanova, que resolveu suspender o Serviço da Serra Queimada e não mais apor o 'pague-se' em folha de pagamento para aquele fim, a partir do mês seguinte, que começaria três dias após.
Diante de ordens tão peremptórias não havia tempo a perder, era preciso agir: Para a Turma de Porto das Caixas a ordem de dispersão pôde ser dada pelo telefone do Serviço de Águas, visto que a Fazenda Macacu distava apenas seis quilômetros da Casa de Turma do Serviço de Águas, existente na estação de Porto das Caixas.
Para a Turma em serviço na Serra Queimada, as providências se tornavam mais difíceis, em vista das dificuldades que existiam naquela época para acesso ao manancial da Serra Queimada.
Sendo assim, dirigi-me a Santana de Japuíba de trem, única condução para aquele local, descendo na estação às nove horas, como de costume.
Em Santana tentei alugar um burro para conduzir-me ao Subaio (3º Distrito), distante quatro léguas (24 quilômetros), ponto intermediário da minha viagem para a Serra Queimada, mas não consegui nenhum, em virtude do estado do tempo, que era ameaçador.
Havendo absoluta necessidade de realizar aquela viagem, resolvi depositar a importância de 300$000 em dinheiro (metade do meu salário) como garantia pela vida do burro, e assim mesmo me entregaram o pior animal que possuíam.
Cheguei no Subaio em torno das quatorze horas e lá encontrei as mesmas dificuldades, pois o tempo continuava ameaçador, mas consegui comer alguma coisa e trocar de animal, por estar muito fatigado o que viajara desde Santana.
Continuando a caminhada, atingi o ponto em que teria de atravessar o Rio Itinga por volta das dezessete horas e meia e, devido à época chuvosa, o rio apresentava maior altura d'água, o que me obrigou a atravessá-lo obliquamente, para compensar a deriva proveniente da correnteza.
Chegando à margem oposta, um pouco a montante da rampa de acesso, fui alcançado por uma cabeça d'água e arrastado pela correnteza, agarrando-me às árvores da margem oposta até poder conseguir escapar pela rampa de acesso de saída do rio.
Transposto o rio, cheguei ao acampamento da Serra Queimada mais ou menos às dezoito horas, perguntando-me o meu compadre Getúlio: "Como é que você conseguiu atravessar o Itinga, pois a cabeça d'água já passou por aqui há cerca de meia hora?" Respondi-lhe: "Atravessei na frente dela, uns cinquenta metros, fui apanhado na margem oposta e, por isso, consegui escapar".
No dia seguinte pela manhã, levantamos o acampamento da Serra Queimada, deixamos as coisas em condições de podermos prosseguir mais tarde e partimos de volta, encorajados por havermos conseguido cumprir nossa espinhosa missão.
Cruzando na volta o rio Itinga, pela manhã, em melhores condições de iluminação, foi que eu pude compreender o perigo formidável que me expusera na véspera.
À montante, cerca de uns cinquenta metros, o rio fazia uma curva que ocultava a vinda da cabeça d'água. Além disso, a vegetação de suas margens concorria para dificultar a observação do horizonte.
A felicidade do meu sucesso eu devo, em sua maior parte, às características do burro que me servia de montaria. Tratava-se de um animal daquela região, perfeito conhecedor do terreno onde pisava, tanto assim que o seu instinto não refugou a travessia do rio em condições perigosas, apesar da prudência tradicional que os burros costumam apresentar.
Tendo eu, inspirado pela tarimba do serviço, o costume de soltar a rédea do animal, para que ele escolhesse caminho na passagem dos atoleiros e travessia de rios, pensei que a direção por ele tomada fosse para compensar a deriva proveniente da correnteza.
No entanto, ele procurava seguir um atalho, do qual fomos desviados e arrastados pela correnteza, somente escapando pela rampa usual de travessia, agarrando-me às árvores, por um verdadeiro golpe de sorte.
Diante de tais evidências, pude compreender porque encontrara tantas dificuldades para aquela viagem que antes e depois com tempo bom, constituía um caso de rotina.
Publicado originalmente em O Fluminense, em 28 de junho de 1974
Pesquisa e Edição: Alexandre Porto
Imagem de capa meramente ilustrativa
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