Capítulo 28 da Série "A Niterói que eu vi e a que viram meus avós", de Romeu de Seixas Mattos

Havendo designado o Presidente Quintino Bocaiúva, pelo Decreto nº 763, o dia 1º de outubro de 1902 para que em Niterói se estabelecesse o Tribunal da Relação e outras Repartições, começou o êxodo do funcionalismo estadual da cidade de Petrópolis, até então capital de Estado.

Trabalhando na Contadoria de Corpo Policial Militar, meus tios Álvaro Martins de Seixas e Antônio Gonçalves de Mattos foram os primeiros a mudar-se para Niterói com suas famílias.

Meu tio materno Álvaro foi residir na Rua de São Pedro e meu tio paterno Antônio (Antonico) na Rua d'El-Rei, atual Visconde do Uruguai.

No último dia do mês de março de 1903, eu, meus pais, meu tio Francisco Antônio da Costa Areas Sobrinho, sua esposa Cocota (irmã de minha mãe) e seus filhos viajamos para Niterói pela linha - Norte - da Leopoldina Railway, isso porque no dia 1º de abril daquele ano deveria ser instalada, na nova Capital, a Repartição Central de Polícia, onde trabalharam meu pai e o tio Areas.

Meu tio Areas foi residir na Rua de São Pedro, em casa já anteriormente alugada e preparada para sua família, enquanto eu e meus pais nos instalamos, provisoriamente, na casa de meu tio e padrinho Antônio Gonçalves de Mattos, casado com uma irmã de minha mãe, minha tia e madrinha Miloca.

Meu avô materno, José Martins de Seixas, que naquela época era e Diretor de Finanças do Estado, tendo em vista que o Decreto nº 861, de 6 de junho de 1903, marcava para o dia 20 do mesmo mês e ano a instalação do Governo em Niterói, mudou-se para Niterói nos primeiros dias daquele mês, instalando-se па саsа já anteriormente alugada da rua de São Pedro, esquina da rua Visconde do Uruguai.

Contando a volta da minha família para Niterói, alonguei a narrativa descendo a minudências porque esse não foi um problema pessoal exclusivamente nosso, foi um problema geral que afetou todo o funcionalismo do Estado do Rio, acarretado pelas mudanças da Capital.

Saímos de Niterói para Petrópolis em 1894 em condições difíceis, causada pela Revolta da Armada, irrompida em 6 de setembro de 1893, e voltamos quando já estávamos ambientados lá, enfrentando condições piores. Digo em condições piores porque em 1903 o pagamento do funcionalismo estadual esteve atrasado por mais de um ano; de vez em quando fazia o Governo a liberação de uma parte do total do débito para com o funcionalismo; pagava-lhe uma pequena parte em apólices (as chamadas "Quintinas") ou em dinheiro mesmo, mas em qualquer dos casos o funcionário nada recebia, porque tinha de saldar contas com os agiotas que lhe haviam feito empréstimos enquanto aguardava pagamento do Governo, para melhorar seu crédito fortemente abalado pelas vicissitudes e poder aguardar novos pagamentos no futuro, recorrendo para tanto aos agiotas novamente, passando-lhes "procuração em causa própria". Com tais procurações, na época do pagamento, compareciam ao Tesouro não os funcionários, mas seus credores.

Por ocasião da volta das repartições para Niterói, o Estado pagou dois meses dos atrasados e deu uma pequena "ajuda de custo" que não atendia ao vulto das despesas e necessidades do funcionalismo.

Sendo assim, encontramos ao regressar, na terra do nosso berço, um clima de hostilidade, de falta de crédito que, felizmente, conseguimos vencer com heroísmo e dignidade.

Na data fixada pelo Decreto n.º 801, em uma das salas da Diretoria de Finanças (Tesouro), onde Quintino Bocaiúva instalara o seu Gabinete, declarou o velho chefe republicano estabelecida a capital em Niterói.

Desse ato, que teve numerosa assistência, foi lavrada uma Ata que, se não me falha a memória, consta de um Relatório apresentado em 1905 ao Presidente Nilo Peçanha, pelo Secretário Geral do Estado - Dr. Henrique Carneiro Leão.

Numa límpida manhã do mês de abril de 1903, saindo ao alvorecer, da casa dos meus tios e padrinhos, situada no lado ímpar da rua d'El-Rei, no meio do quarteirão entre as ruas de São Carlos e da Glória, tive um novo contato com a cidade onde nasci e que deixara em 1894, ainda pequenino, nos braços de minha mãe.

Nessa época tão distante (71 anos são passados) já a Rua d'El-Rei tinha o nome de Visconde do Uruguai, a São Carlos chamava-se Silva Jardim e na Rua da Glória havia uma placa com o nome de Rua 19 de Fevereiro, só mais tarde mudado para Fróes da Cruz, porém as designações antigas ainda eram usadas pelo pоvо, quando se referia a cada uma delas.

Parando na esquina da rua de El-Rei com a Rua da Glória, olhei para oeste e vi a rua da Glória através da Baía de Guanabara, destacando-se ao fundo a Ilha das Cobras e o ancoradouro da nossa esquadra, onde sobressaiam os encouraçados Riachuelo, Aquidaban, Deodoro, Floriano; o cruzador Tamandaré; os navios-escolas Benjamin Constant e 1º de Março, unidades navais que não existem mais.

Olhando para leste, ainda através da rua da Glória, eu vi a desaparecida enseada de São Lourenço, que naquela ocasião atingia os fundos do Quartel Policial, que por isso, na Revolta da Armada de 1893, fora bombardeado pela Corveta "Marajó".

Seguindo pela rua da Glória, parei na esquina da rua da Rainha (já então Visconde de Itaboraí) e vi, nesse momento, o famoso Largo do Quartel, o antigo Largo da Imperatriz, finalmente Praça General Fonseca Ramos, porque, em Niterói conquistara o título de "Cidade Invicta" - no combate de 9 de fevereiro de 1893, sob o comando do inclito Coronel Fonseca Ramos.

O Sol, nascendo, iluminava as frondosas copas dos flamboyants que guarneciam todo o seu perímetro, fazendo realçar o vermelho das flores sobre o verde da folhagem.

Ví - não - contemplei... porque, como disse Vargas Vila: "a visão é um ato físico, ao passo que a contemplação é um ato psíquico; vê-se com os olhos, contempla-se com a alma."

As histórias contadas e comentadas nas conversas de família exaltaram minha sensibilidade adolescente vibrante e idealista que sempre fui...

Ali estava o Quartel em cuja Contadoria do Corpo Policial Militar meu avô materno - José Martins de Seixas - chefiava com as honras de Tenente-Coronel, tanto assim que na minha certidão de nascimento lavrada em 1892, consta o seu nome com esse título.

Nessa mesma Contadoria do Corpo Policial Militar do Estado trabalhavam também meus tios - Álvaro Martins de Seixas e Antônio Gonçalves de Mattos, que por serviços ali prestados durante a Revolta da Armada em 1893, receberam patentes de Oficiais Honorários do Exército, sendo que a patente de 1º Tenente Honorário do Exército conferida a meu tio Álvaro Martins de Seixas foi assinada pelo Presidente da República Prudente de Morais e Barros, em 27 de abril de 1897 e referendada por Francisco de Paula Argollo, Ministro da Guerта.

Meu avô materno não foi agraciado com patente de Oficial Honorário do Exército porque não trabalhava mais na Contadoria por ocasião da Revolta. Em 5 de abril de 1893 meu avô era Diretor da Repartição Adjunta ao Tribunal de Contas, conforme verifiquei por uma dedicatória gravada na tampa de um relógio de ouro que, naquela data, lhe foi oferecido pelos funcionários daquela repartição, por motivo do seu aniversário natalício, relógio que ele deixou parа о neto que tinha seu nome e que foi também funcionário estadual como ele, servindo na Secretaria das Finanças até aposentar-se.

Em 1903 o Chefe da Contadoria do Corpo Policial era o Coronel Alfredo Parreiras, pai do Almirante Ary Parreiras e do Desembargador Athayde Parreiras.

Mais ou menos nessa época, quando iniciei minha vida pública como operário eletricista, instalei nesse quartel um Quadro Numérico (de seis números) para sinais de Campainhas Elétricas.

O número 1 correspondia ao Coronel Comandante do Corpo, o número 2 ao Tenente-Coronel Parreiras, Chefe da Contadoria, e os demais números chamavam a Contadoria, a Tesouraria, a Casa da Ordem etc.

A bateria de pilhas elétricas dessa campainha ficava no forro do segundo pavimento (sobrado), parte do qual hoje não existe mais porque foi demolido quando da abertura da Avenida Feliciano Sodré.

No forro desse sobrado havia acumulada uma grande quantidade de estrume de morcegos, que eu recolhia toda vez que ia fazer o conserto das campainhas. Esse estrume era muito apreciado por meu pai e pelo Coronel Parreiras, cultivadores que eram de parasitas e outras plantas difíceis de cultivar.

O terreno do Quartel do Corpo Policial Militar era formado por um grande quadrilátero, edificado em todo o seu perímetro, tendo ao centro grande área descoberta. Limitava-se pela frente com a Rua Barão do Amazonas; aos fundos com a desaparecida enseada de São Lourenço; no lado esquerdo do terreno (Sul) pela Rua da Glória (atual Fróes da Cruz); e ao Norte (lado direito do imóvel) com terrenos e prédios do lado ímpar da Rua Barão do Amazonas (anteriormente rua do Príncipe).

Na fachada da rua Barão do Amazonas, bem ao centro, havia um pavimento superior com três sacadas deitando para a frente da rua, onde funcionavam o Comando e a Contadoria, citados por mim, em cujo forro os morcegos depositavam seu ехсrеmento.

O advento da Avenida Feliciano Sodré separou em duas partes o terreno do quartel e do respectivo largo, surgido outrora com o nome de Largo da Imperatriz.

O alinhamento do lado par da Avenida Feliciano Sodré tangenciou o lado Norte do sobrado do quartel, tirando-lhe uma pequena parte, de forma que, na reconstrução realizada, a fachada que anteriormente estava voltada para a Rua Barão do Amazonas (em frente ao largo) passou para a Avenida Feliciano Sodré.

A entrada principal do Quartel, que antes era feita por uma porta larga ao centro da fachada da Rua Barão do Amazonas, agora é feita pela Avenida Feliciano Sodré, para onde se volta sua fachada atual. A saída não mudou, foi conservada a mesma que havia, pela Rua Fróes da Cruz.

Por uma parte do terreno do Quartel, passou a Avenida Feliciano Sodré, ficando separada uma outra parte, onde foi construída a Escola de Formação de Oficiais e o Campo de Esportes, com frente e entrada pela aludida avenida.

A parte do segundo pavimento que foi aproveitada tem hoje três janelas e não mais as sacadas com grades de ferro, perfuradas por balas de fuzil "Mauser" provenientes de um ataque realizado ao Quartel por alguns soldados do Batalhão 38 do Exército, amotinados e alcoolizados, por causa que não cheguei a conhecer.

Em 1924, a Contadoria do Corpo Policial Militar já havia sofrido grande modificação. Não era mais composta de funcionários civis, com honras militares; integrada nas normas do Exército, foi criado um Corpo de Oficiais Intendentes, para encarregar-se do serviço contábil. Sendo assim, meus dois tios foram transferidos e promovidos em outras repartições do Estado.

Nessa época, também com a Revolução de São Paulo, foram criadas, na Força Militar, algumas unidades novas, que seguiram para a frente de batalha, em defesa da legalidade.

Partiram para São Paulo as novas unidades sob o comando dos Capitães do Exército Eurico Peixoto e Luiz Antunes Vianna. Comissionado no posto de Capitão, o Oficial da Reserva de 2ª Classe Léo Midosi, comandava uma Companhia. Seguiram, também, o Dr. Alcides de Figueiredo, como Cirurgião; um dentista de nome Octavio; um filho do Capitão Eurico Peixoto, o Fernando, comissionados como Oficiais, além de outros cujos nomes me escaparam.

Foram feridos mortalmente, em combate, o Capitão Léo Midosi e o Tenente Octávio.

Como não podia deixar de acontecer, o movimento revolucionário de São Paulo teve ampla repercussão na vida do Estado do Rio de Janeiro e, especialmente, de Niterói.

Era Presidente do Estado e Dr. Feliciano Pires de Abreu Sodré, Prefeito de Niterói, o Dr. Rodolpho Villanova Machado e Diretor de Obras da Prefeitura, o Dr. Manoel Ribeiro de Almeida.

Eu havia dado baixa do serviço ativo do Exército e retornado à Prefeitura, sendo promovido para o Quadro de Engenheiros Municipais, e estava chefiando a Seção de Obras Públicas, seção na qual estavam incorporados os serviços de Água, Esgotos, Calçamento, Jardins, Arborização, etc.

Com a partida das tropas para São Paulo ficou o quartel desguarnecido e, por isso, o Dr. Ribeiro de Almeida recebeu a incumbência de guarnecê-lo com o pessoal da Prefeitura Municipal de Niterói, a mim cabendo a execução dessa honrosa tarefa.

Tratando-se de uma tarefa fora das novas atribuições funcionais, foi feito um apelo geral em forma de convite, admitindo-se uma espécie de voluntariado, que foi unanimemente aceito por todos os meus subordinados até mesmo pelo falecido Antônio Ornellas do Couto, que naquela ocasião, administrava a seção de Conservação da Rede de Esgotos Sanitários de Niterói - fervoroso partidário de Nilo Peçanha.

Tendo em vista suas convicções políticas, o Dr. Ribeiro disse ao Ornellas que não tivesse acanhamento, pois o dispensaria da prestação desse serviço compreendendo seus motivos para escusar-se. Respondeu-lhe o Ornellas que "em serviço não tinha política", sendo por isso incorporado à tropa voluntária e incluído na escala de serviço de guarda ao Quartel.

Sucede, porém, que os "sodresistas" mais extremados não acreditaram na sinceridade de suas afirmativas, supondo tratar-se de um recurso para ele fazer espionagem e estabelecer uma "cabeça de ponte" no caso de necessidade e de ter oportunidade, causando tal desconfiança algumas dificuldades a todos nós, que, felizmente, foram pouco a pouco sanadas no decorrer dos acontecimentos.

Atenderam, também, à nossa convocação alguns funcionários municipais de outras repartições, partidários da política do Dr. Sodré, o empreiteiro Nelson Ribeiro de Almeida, primo do Dr. Ribeiro; os Construtores Ludgero e João Dalossi, que faziam empreitadas de serviço na PMN; Arthur de Mello Braga Furtado de Mendonça, que naquela ocasião era Engenheiro do Patrimônio Nacional, mas algum tempo antes havia deixado o serviço da PMN; e outras pessoas cujos nomes não me ocorrem agora.

Sob o comando do então Major Galeno Camargo, chefe da Contadoria da Polícia, que não seguira com as forças regulares, assumimos nossos postos junto à pequena guarnição do Quartel, onde por vezes pernoitava também o Dr. Ribeiro de Almeida, Diretor de Obras.

Nem sempre decorreram serenos os nossos plantões no Quartel; algumas vezes chegavam, pelo telefone, alguns boatos alarmantes que nos obrigavam a tomar posições estratégicas de defesa, contudo, nenhuma perturbação da ordem se verificou, felizmente, durante aquele período.

Penso que tais boatos, espalhados através do telefone, provinham da atuação de pessoas interessadas em manter uma guerra de nervos, mas de qualquer forma, não poderiam ser desprezados por medida de segurança.

Todos cumprimos nosso dever, revezando-nos na vigília noturna e no trabalho diurno da PMN, enquanto em nossos lares nossas esposas e familiares ficavam atentos a quaisquer indícios que pudessem significar ameaça à segurança da cidade.

Terminando, devo dizer que o Largo do Quartel começou a desaparecer, primeiramente com a passagem da Avenida Feliciano Sodré, que o dividiu em duas partes. A parte compreendida entre essa avenida e a Rua Fróes da Cruz desapareceu quando foi construída a Estação Rodoviária.

A outra parte, situada entre a Avenida Feliciano Sodré e uma travessa sem nome que liga a Rua Visconde de Itaboraí à Rua Barão do Amazonas, começou a desaparecer com a construção de um edifício onde for instalado o "cérebro eletrônico" para processamento de dados pelo Governo do Estado do Rio.

Assim, os caprichos do destino me têm proporcionado tomar conhecimento ou participar de fatos tão importantes e significativos para nossa cidade, como as que recordei aqui: também a ele especialmente, devo e fato de estar, numa terça-feira do dia 20 de outubro de 1903, por acaso no edifício do Tesouro, onde fora visitar meu avô em seu gabinete de trabalho, e de ali encontrar e Dr. Mário da Silveira Vianna, pai do meu amigo de infância Irurá Mário Vianna, o qual là comparecia fazendo parte de uma Comissão Popular para assistir à instalação do Governo na nova Capital, isto é, em Niterói.


Publicado originalmente em O Fluminense, em 18 de outubro de 1974
Pesquisa e Edição: Alexandre Porto


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Publicado em 30/10/2024

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