Capítulo 30 da Série "A Niterói que eu vi e a que viram meus avós", de Romeu de Seixas Mattos

A organização democrática das sociedades modernas exige, com efeito, um mínimo de educação e consciência cívica a todos os indivíduos que a ela pertençam.

Chamados a intervir na vida social e na dos respectivos países, por motivo dessa mesma organização, nunca poderão fazê-lo consciente e proficuamente sem a convicção cívica indispensável.

Um indivíduo que, por exemplo, vota sem a necessária reflexão, e assim dá a outro, levianamente, o direito de ser seu defensor e representante numa assembleia, pratica um ato de possíveis consequências absolutamente prejudiciais aos seus interesses, aos interesses do seu país e até mesmo aos interesses da civilização a que pertence.

Uma opinião pública que também não sabe ser a vigilante fiel desses interesses é, do mesmo modo, perigosa e inútil.

E estas verdades são de tal modo axiomáticas, de tal maneira evidentes que em nenhum país do mundo civilizado poder-se-á encontrar hoje quem delas duvide e até quem não as defenda.

Enquanto predominaram as castas, enquanto as nações viviam sob o regime aristocrático, para nada importava que o povo fosse ou não fosse educado, soubesse ou não avaliar o que desejava para o seu bem e para o bem da sociedade ou do país que eram os seus.

Hoje, porém, assim não acontece: atingimos um regime em geral democrático compreendemos o valor da palavra educação e o alcance admirável do ato de educar.

Podemos afirmar, sem receio de desmепtido, que um regime democrático é tanto mais perfeito e completo quanto mais perfeito e completas forem, nele, as instituições educativas.

Instrução só, não basta. Torna-se também indispensável a educação cívica e a liberdade de pensamento para que o povo possa e saiba escolher seus mandatários.

Hodiernamente, a Imprensa, o rádio e a televisão muito concorrem para o aperfeiçoamento dessa percepção, as eleições foram regulamentadas, exigindo-se comprovação da identidade aos eleitores; foi criada uma justiça eleitoral que apura e julga os resultados da manifestação popular e as infrações da lei.

Sendo assim, o resultado final do pleito abrange toda a responsabilidade envolvida no processo, define os escolhidos, traça o perfil dos que escolheram, dos que deixaram de votar, dos que votaram em branco ou anularam deliberadamente seu voto, anulando o próprio direito e a própria vontade.

Transcorrendo tranquilamente a última consulta eleitoral no Brasil, com um alto nível de presença de eleitores, demonstração da consciência política, vocação democrática, maturidade social, cívica e civilizatória do seu povo, devemos admitir que o Governo e a Justiça Eleitoral cumpriram seu dever proporcionando um clima de ordem e liberdade para que a Nação manifestasse sua vontade nas urnas.

De todo o país nos vem a notícia do desenvolvimento regular do processo eleitoral, com poucas e raras exceções.

Contudo, apesar dessa evolução dos costumes, dessas manifestações de civismo, os jornais também noticiaram que um Presidente de certa Mesa Eleitoral fora autuado por embriaguez depois que legistas constataram o seu estado de etilismo agudo. Sua prisão foi solicitada pelo delegado partidário que, ao inspecionar os trabalhos daquela Seção Eleitoral, descontou do seu comportamento, denunciando-o aos policiais de plantão. Testemunhas informaram que, antes de rubricar um título, ele tomava um gole.

Em Campos, um empregado da Usina Barcelos, armado de revólver, coagia os eleitores de uma Seção Eleitoral a votar no candidato que ele preferia, sendo autuado por porte de armas e infração da lei eleitoral, prestando fiança para ser posto em liberdade.

Em Cabo Frio foram presos motoristas de praça, acusados de estarem contratados por políticos para o transporte de eleitores.

Na Bahia, um eleitor de Ribeira do Pombal, no nordeste do Estado, apanhou a urna da sua seção, saiu correndo com ela, perseguido pelos que esperavam na fila, e depois de rasgá-la à faca, despejou o conteúdo de 56 votos na rua, sobre o lixo. O Juiz remeteu ao TRE local a comunicação do fato, que poderá ocasionar eleições complementares naquela seção, onde estão inscritos 180 eleitores.

Nada disso é novidade, tudo isso (e mais alguma coisa já aconteceu no passado, no tempo do coronelismo rural, do voto de "cabresto" e das eleições a bico de pena", de gloriosa memória...

As eleições que puderam ser feitas a bico de pena, preenchendo todas as formalidades e passar por verdadeiras, não chegaram algumas vezes a perturbar a ordem, embora de qualquer modo concorressem para o desprestígio da instituição.

Isso porque Deus é brasileiro - protege o Brasil escandalosamente, consertando à noite aquilo que se escangalhou de dia e assim a incompetência, a conveniência e (por incrível que pareça) até mesmo o patriotismo de alguns coronéis rurais, elegendo para os cargos políticos pessoas de grande valor moral e intelectual conseguiram, apesar de tudo, elevar a nossa cultura, a condição de subdesenvolvido e a prosperidade do nosso país.

A falta de comprovação da identidade dos eleitores permitia que os defuntos continuassem votando, que um indivíduo votasse mais de uma vez em diferentes seções eleitorais, aproveitando-se da semelhança de nomes, além de outros truques.

A cabala eleitoral era, e talvez ainda seja, multiforme, usando todos os meios de mistificação, suborno e coação.

A dificuldade dos transportes era utilizada para facilitar o comparecimento dos correligionários e impedir a presença dos contrários (Talvez estivessem envolvidos numa operação desse gênero os motoristas de Cabo Frio).

O abuso chegou a tal ponto, nessa prática, que o administrador da 1ª Linha Adutora deixou de reparar um vazamento de água na referida linha, ficando a cidade de Niterói sem água, certa ocasião, para usar os "trolleys" no transporte dos seus eleitores, e nada lhe aconteceu por tal desídia, apesar do engenheiro ter representado contra isso, não só nada conseguindo como até sendo demitido do cargo que exercia.

Еssе mesmo funcionário usou a água de serviço que administrava como meio de cabala política eleitoral, concedendo clandestinamente, e por processos irregulares, ligações tiradas da Linha Adutora, conseguindo dessa forma algum prestígio político durante certo tempo.

Foi envolvido em inquéritos administrativos que conseguia contornar até que, com o advento da Revolução de 1930, sendo notificado pelo Capitão Limeira de que tais inquéritos seriam restaurados, faleceu vítima de um enfarte do miocárdio.

Quanto às eleições feitas "a bico de pena" com a diminuição do prestígio dos coronéis políticos e a evolução dos costumes, foi-se tornando cada vez mais difícil a manutenção das mesmas, sendo necessário a montagem de um mecanismo de falsificação conforme a espécie dos casos que se apresentavam.

À proporção que evoluíam os costumes políticos, mais se apuravam os processos de falsificação, não sendo mais possível empregar o simples decalque de assinaturas na falsificação das atas.

Para isso foi preciso encontrar peritos no assunto que imitassem com perfeição a letra de cada um.

Existiram vários indivíduos que se aperfeiçoaram nesse mister, porém de uma habilidade prodigiosa eu pude verificar, quando ele fez uma brincadeira para assustar um funcionário da PMN.

Datilografando um memorando de censura ao tal funcionário, ele imitou com perfeição a assinatura do Prefeito, imitou a letra e a assinatura do Chefe do Departamento, encaminhando o memorando à Seção, fez encaminhamento do memorando ao funcionário para "devida ciência", imitando para isso a letra e a assinatura do Eng. Chefe da Seção, etc.

Quando o falso memorando foi entregue ao destinatário, o pobre homem quase desmaiou e a brincadeira teve de ser rapidamente desfeita para evitar que o funcionário atingido, de posse do tal memorando, corresse ao Gabinete do Prefeito para defender-se daquela censura.

Esclarecida a brincadeira e comparadas as letras forjadas com elementos autênticos existentes na repartição, verificou-se uma semelhança prodigiosa e até assustadora entre as letras falsas e as verdadeiras, tanto mais admirável a habilidade da imitação porque tudo isso fora feito rapidamente, ao correr da pena.

Todavia, o mais assombroso nesse caso é que esse artista consagrado nunca usou sua habilidade para outros fins que não os de falsificação eleitoral.

No desenrolar dos acontecimentos, quando a química eleitoral de falsificação de atas, suborno e coação do eleitorado, dificuldade de transporte, roubo de urnas, etc não era suficiente, entrava então a funcionar o mecanismo de apuração, aplicavam uma aritmética que denominavam: Pereira Lobo, que consistia em errar propositadamente a soma e se isso ainda não bastava, anulavam a urnas onde um determinado candidato, que pretendiam depurar, livesse maior votação.

Sucede, porém, que na eleição do Presidente Hermes da Fonseca faltava apenas um Deputado Federal para fazer o reconhecimento e o Deputado Federal eleito com maioria absoluta de votos em todas as seções do Estado do Rio de Janeiro era o Dr. Mário Vianna, de forma tal a possibilitar a aplicação da "aritmética Pereira Lobo" ou o expediente de anulação de seções de maior votação, porque em todas as urnas havia maioria absoluta de votos para ele.

Então recorreram ao seguinte estratagema: foi apresentado o projeto para o reconhecimento e na hora da votação apresentaram uma emenda para, em lugar do nome de Mário Vianna, ser lido um outro nome (penso que foi Camilo de Holanda); a emenda foi aprovada e Deputado reconhecido foi o outro, que passou à história como "deputado eleito por emenda".

Assim, graças a tão escusos procedimentos, Dr. Mário Vianna - conhecido em todo o Estado do Rio, com forte prestígio eleitoral, pessoal e merecido - só conseguiu eleger-se Vereador e Deputado Estadual, não tendo conseguido atingir à Câmara Federal, assim como também Rui Barbosa não conseguiu chegar à Presidência da República.

Tudo isso passou, como passa o fogo, a tempestade e a guerra, ficando porém os ensinamentos e a experiência que habilitarão aperfeiçoar-se cada vez mais o mecanismo eleitoral.

É possível que ainda existam processos velados de coação moral e pressões econômicas difíceis de extinguir, porque às vezes são os mais fortes que empregam tais recursos. A consciência cívica permitirá ao cidadão, dentro de certos limites, resistir às coações morais, às pressões econômicas e enfrentar e superar as dificuldades de transporte, valendo-se do sigilo do voto para externar sua opinião na certeza de que será levada em conta, graças à lisura das apurações, sob a égide da Justiça Eleitoral.

Assim, não procurará furtar-se ao cumprimento do dever de votar para exercer o direito de escolher, seguindo o exemplo de eleitores fluminenses nas eleições de novembro último, quando os moradores das ilhas do Jaguaramim, Flecheiras, Bandolim e Águas Lindas utilizaram barcos a remo e a motor, enfrentaram o mau tempo, mas compareceram às suas Seções Eleitorais para votar.


Publicado originalmente em O Fluminense, em 06 de dezembro de 1974
Pesquisa e Edição: Alexandre Porto


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Publicado em 30/10/2024

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