Capítulo 32 da Série "A Niterói que eu vi e a que viram meus avós", de Romeu de Seixas Mattos
Ao lado direito de quem sobe o caminho da mina na cota 55m acima do nível do mar (medida com Aneroide), no morro de São Lourenço, encontrava-se antigamente, sem qualquer dissimulação, o frontispício de alvenaria caiado de branco, com características das obras antigas, à entrada de um pequeno túnel subterrâneo todo empedrado cujas dimensões permitiam com dificuldade a passagem de uma pessoa agachada, túnel esse que, provavelmente, perfurou a camada permeável da encosta e foi atingir a camada impermeável, facilitando, drenando e encaminhando a saída do precioso líquido.
Possivelmente a construção dessa galeria drenante foi orientada pelo local onde a água aflorava na superfície da encosta, isto é, pelo olho d'água da nascente, no seu estado natural que não consegui alcançar.
Data de 1924, quando atingi o quadro de engenheiros do município e comecei a trabalhar no Serviço de Águas de Niterói, o meu segundo contato com essa relíquia histórica que considero a célula embrionária da das nossas captações que infelizmente ainda não foi tombada, embora eu já tenha solicitado tal providência da autoridades competentes através de várias cartas.
Essa fonte abasteceu o pequeno núcleo de aborígenes cristianizados, sob a chefia do cacique temiminó
Arariboia, que recebeu no batismo o nome cristão de Martim Afonso de Sousa.
Na ocasião (1924) encontrei a boca desse dreno subterrâneo fechada por uma grossa porta de madeira com grandes dobradiças de ferro, ornamentadas e presas à madeira com parafusos de porca, cujas cabeças eram artisticamente enfeitadas, bem como a fechadura, com chave muito grande, também caprichosamente adornada, conforme o estilo da época, situação essa que procurei manter, assim como também a grande bica de metal estilizada em forma de golfinho, que existia só lado da grossa porta no frontispício de alvenaria caiado de branco com características das obras antigas.
Atualmente outra é a situação existente: foram retirados o frontispício e a porta que fechava a entrada do dreno subterrâneo, escavaram uma parte do morro e uma parte do dreno para preparar o local onde fizeram duas cisternas canalizando paгa uma as águas da fonte histórica e para a outra as águas do abastecimento geral do Morro de São Lourenço. No morro acima do dreno, existe uma casa de pau-a-pique, conforme se pode ver numa fotografia que possuo.
Em diversas épocas, os jornais noticiaram a existência de subterrâneos no Morro de São Lourenço, considerados obras dos Jesuítas a fim de guardar tesouros ou para refúgio de perseguidos, além de outras lendas que corriam de boca em boca, estimulando certas pessoas a explorá-los, embora outras o tivessem feito anteriormente desistindo na incapacidade de vencer as dificuldades encontradas.
Talvez resultassem tais subterráneos de tentativas fracassadas de captação d'água ou talvez fossem obras necessárias e complementares das captações feitas, para obstruir alguma fenda surgida na camada impermeável, situada em local inconveniente, que desviava a água captada para outros pontos, etc, etc.
Assim penso porque, entre as muitas lendas que ouvi contar sobre o malogro e im possibilidade de penetração nesses subterrâneos, suas consequências, tais como falta de ar, etc, falaram-me de uma que afirmava que num deles a galeria terminava com um alargamento, onde havia uma laje interceptando qualquer avanço, o que me fez crer na hipótese de um fechamento de alguma fenda inconveniente na camada impermeável.
Acredito também que o fato do dreno subterrâneo da fonte dos Caboclos não trazer ao público a mesma sensação de mistério e lenda que as notícias da existência de outros subterrâneos nesse morro causaram, se deve a que estando inteiramente à mostra e caracterizada a sua finalidade relativa ao abastecimento de água, não se prestava a excitar a imaginação popular.
É possível que essa fonte, no tempo do tuxaua Arariboia, houvesse sido primeiramente utilizada no seu estado natural e que mais tarde recebesse uma instalação bem rudimentar, dessas que ainda hoje vemos no interior dos acampamentos de escoteiros ou de manobras militares, e até mesmo nos canteiros de serviços de engenharia, feitas com aquedutos e condutos forçados de madeira ou de cerâmica, isto é, com tábuas, telhas canal, manilhas, bambus, taquaruçu, embaúba (árvore oca de grande porte, existente no mato em abundância), etc.
Contudo, os remanescentes desses serviços hoje encontrados nessa fonte são de uma captação d'água mais apurada, cuja técnica devia estar ao alcance dos Jesuítas, tanto assim que se atribui a eles a construção de qualquer subterrâneo que se descobre atualmente.
Tratando-se de uma obra de maior envergadura para os recursos da época, é possível que o seu advento se verificasse quando o crescimento da aldeia exigisse maior fornecimento d'água e por isso aplicassem o processo por eles chamado "de minação do morro em que existe a nascente", visando com isso a obter maior rendimento da fonte em causa, processo também aplicado na captação de água das outras encostas do Morro de São Lourenço, desapropriadas em 25 de abril de 1838 do Conselheiro
José Caetano de Andrade Pinto, nas da parte ocidental do
Morro do Calimbá, em 1820, e nas do Rio da Vicência, em 1860.
Quanto à época da execução desse melhoramento, nada encontrei nos locais onde me foi possível pesquisar.
Somente encontrei a respeito de subterrâneos no Morro de São Lourenço, uma pasta com alguns documentos do ano 1867, na Biblioteca Pública do Estado, documentos que se referiam às despesas com trabalhos de desobstrução de mina no Morro de São Lourenço e num subterrâneo descoberto junto à Igreja de São Lourenço, não se tratando porém do dreno subterrâneo da fonte conhecida como a "Bica dos Caboclos", que fica muito distante da igreja.
Todavia, objetivando uma hipótese, transcrevo aqui uma referência de
Milliet de Saint Adolphe na sua obra "Dicionário Histórico, Geográfico e Descritivo do Império do Brasil:
Foi o plano da vila novamente criada desenhado por José Clemente Pereira, seu primeiro Juiz de Fora.
As ruas largas, que se traçaram naquela estéril planície, se povoaram em breve tempo de casas, de cercas e tapumes alinhados, de hortas e de pomares; fez este meritíssimo administrador construir várias fontes que já não existem e entre elas uma na raiz do monte de São Lourenço, que foi reedificada em 1836"; etc etc.
Sendo assim, podemos admitir que talvez o dreno e o frontispício que encontrei em 1924 na fonte denominada Bica dos Caboclos não fossem obras dos Jesuítas e sim a tal reedificação de 1836 mencionada por Millet de Saint Adolphe tanto mais que trata de obras idênticas às realizadas na fonte desapropriada do Conselheiro Andrade Pinto, em 1838, às da parte ocidental do Morro do Calimbá em 1820 e as do Rio da Vicência, feitas em 1860.
Em tal caso, essa modificação de 1836, não teria sido empreendida por José Clemente Pereira, porque este deixou o cargo de Juiz de Fora em de maio de 1821, sendo substituído pelo Dr. José de Siqueira e Silva.
Quanto à Bica dos Caboclos, diz Mattoso Maia no final da página nº 129 de "Notas para história de Niterói - 1ª edição" o seguinte:
"As águas do morro de São Lourenço, dando 1.000 barris, abasteciam um chafariz, a Bica dos Caboclos, no próprio morro e três pilastras na rua de São Lourenço. "
Ora, dando a Bica dos Caboclos 1.000 barris diários, a sua descarga nas vinte e quatro horas atingiria a 15m3,972 (quinze metros cúbicos e novecentos e setenta e dois litros diários) que abasteciam, conforme diz Mattoso Maia, um chafariz, a "Bica dos Caboclos", no próprio morto, e a três pilastras na Rua de São Lourenço.
O chafariz no morro era a tal torneira de metal estilizada em forma de golfinho, ao lado da porta grossa de madeira, no frontispício de alvenaria a que me referi anteriormente.
As três pilastras existentes num terreno com frente para a Rua de São Lourenço, junto à base do morro, era um chafariz que cheguei a ver em 1903, chafariz que não existe mais.
A Bica dos Caboclos já estava desvirtuada das suas finalidades primordiais, porque o aldeamento dos índios fora extinto por deliberação provincial de 26 de janeiro de 1866 e essa fonte havia sido integrada no primitivo abastecimento da cidade, feito através de treze fontes locais, algumas das quais ainda têm remanescentes.
Publicado originalmente em O Fluminense, em 20 de dezembro de 1974
Pesquisa e Edição: Alexandre Porto
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