Capítulo 34 da Série "A Niterói que eu vi e a que viram meus avós", de Romeu de Seixas Mattos

Recordo-me de haver lido num livro de Chateaubriand talvez, uma referência à epidemia de "cólera morbus" quando ela, em tempos idos, penetrou na Europa pelo sul da França, através dos portos de Marselha ou de Lião, não estou bem certo.

Também in "Paginas de História Fluminense", da Professora Thalita de Oliveira Casadei, presidente do Instituto Histórico de Niterói, a fls. 51. encontrei outra referência a uma epidemia de cólera que houve no ano de 1867, desta vez em Niterói, relativa aos médicos que atuaram nessa epidemia, quando a cidade de Niterói foi dividida em distritos e para cada um deles designado um grupo respectivo de médicos.

Nessa época também foram impressas instruções, para serem observadas pela população, visando ao asseio da cidade e à higiene domiciliar. Pelo número de médicos nomeados, pelo número de distritos criados (7), abrangendo cada qual uma limitada área, pode-se avaliar ter sido muito elevada a incidência de casos.

Em 1867 o abastecimento de água da cidade era ainda feito pelas 13 primitivas fontes, sendo as mais importantes a do Vintém (desapropriado do Conselheiro Andrade Pinto), e a do Rio da Vicência, através de chafarizes públicos e em barris transportados por carroças, que faziam entrega em domicílio.

Não havendo instalação domiciliar de abastecimento d'água, em caso de calamidade pública, tal como o advento de epidemia de origem hídrica, a situação deveria ser mais facilmente controlada, tendo em vista a insignificância dos elementos em causa, comparados com as condições atuais do abastecimento existente.

Como já disse em outro trabalho, ao tempo da Vila Real da Praia Grande e depois de sua elevação à cidade, a limpeza pública de Niterói estava a cargo do Urubu (cuja vida era preservada a ponto de pagar multa de 2$000 quem matasse uma dessas aves) e os esgotos ficavam por conta do Tigre, denominação que o povo dava aos barris que transportavam as matérias fecais, classificando-os pomposamente os paredros da engenharia sanitária de "sistema estático de Esgotos".

Contudo, naquela época o ar não estava poluído, conservava ainda um coeficiente elevado de oxigênio, e a alimentação não estava prejudicada pelos processos de imunização, disso redundando que os homens e os animais eram mais fortes do que hoje.

A medicina de então acreditava provavelmente na teoria dos miasmas, não surgira ainda o advento da teoria microbiana de Pasteur, de modo que eram usados ainda processos draconianos de sangrias generalizadas, purgantes de óleo de rícino, lavagens intestinais, mas apesar de tudo, a humanidade resistia às doenças e até mesmo aos médicos, com seus tratamentos depois repudiados pela medicina, que, entretanto, merecem a nossa admiração e respeito porque faziam da profissão verdadeiro sacerdócio e procuravam obter o melhor rendimento dos escassos recursos de que dispunham.

Soube por conversas de família e assisti, eu mesmo, no início deste século, a casos de desinfecção e combate às supostas causas de epidemias que irei divulgando, quando houver oportunidade, uns interessantes, outros incômodos e prejudiciais e alguns divertidos e cômicos sob alguns pontos de vista.

Em 1929, no momento (18 horas) em que em minha casa nascia uma das minhas filhas, de uma casa em frente era removido um português atacado de febre amarela.

Dias depois aplicaram na casa, um depósito de leite, e nas circunvizinhanças, uma forte desinfecção com formol vaporizado, as autoridades da saúde pública, através do Serviço Nacional de Febre Amarela.

Para isso foram calafetadas com papel todas as saídas do ar da casa, as famílias esperaram sentadas nos passeios ou nos quintais e jardins, enquanto o gás atingia todas as dependências.

O resultado da operação foi excelente porque morreram todos os "Stegomyia fasciata" que existiam nas proximidades, estivessem ou não infeccionados, não escaparam também as baratas, ratos e lagartixas que desapareceram por muito tempo, porém minha casa sofreu alguma coisa, efeitos da aplicação do formol vaporizado.

Construída em 1907, pelo saudoso Juiz Dr. Otávio Kelly, era forrada a sala de visitas com papel imitando veludo, constituído em painéis contornados por molduras douradas, dourado também o lustre que ficou oxidado imediatamente. A sala de jantar, pintada a óleo imitando painéis de mármore, com uma barra superior apresentando todos os episódios de uma caçada e mais abaixo escudos pintados com troféus de caca, igualmente foi atingida. Foram as cicatrizes dessa guerra contra o mosquito...

Mas, voltemos à epidemia de cólera:

Mais ou menos em 1973 houve na Itália uma epidemia de cólera, cuja origem foi atribuída à infecção de ostras e mariscos de uma determinada região que ingeridos pela população, propagaram a doença através de meios subsidiários, tais como: a mosca, o aperto de mão e até mesmo a via hídricas, etc. Parece que em Portugal surgiu também uma situação idêntica, no ano passado (1974).

Há poucos dias os jornais noticiaram: "Fontes do Ministério da Saúde revelaram que a Organização Mundial de Saúde informou que a cólera poderá ser a próxima epidemia a atingir vários países subdesenvolvidos", advertência que foi endereçada a todos eles, inclusive ao Brasil.

Após a advertência, o Ministério montou um sistema de alerta em todos os portos e aeroportos, a fim de prevenir quaisquer riscos.

Vigilância

A propósito do assunto, o Ministro Almeida Machado, no Rio, disse que, se surgir alguma denúncia a respeito da ocorrência de algum caso de cólera, a ação será imediata e as medidas de urgência serão tomadas independentes de confirmação. Adiantou o Ministro que não se perderá tempo em confirmar se é mesmo cólera ou fazer estatísticas.

Como se vê, há uma situação de alerta que a mim causou forte inquietação, pelos motivos que passo a expог:

1º Como todos sabem, a cólera é uma doença de fácil propagação pela via hídrica, embora também se propague através de outros meios subsidiários;

2º) Como todos sabem, em Niterói não existe abastecimento d'água eficiente e de torneira franca. O abastecimento é intermitente, feito por manobras em dias alternados, muito espaçado e com níveis piezométricos muito baixos e até negativos, porque a maioria da população possui bomba diretamente sugando da canalização pública.

A maior garantia contra a poluição que pode existir numa canalização de abastecimento d'água está na pressão interna, porque, se houver um qualquer rompimento, haverá um vazamento que denunciará o acidente, e o meio contaminado externo, se o houver, não conseguirá penetrar na canalização em causa.

Num abastecimento intermitente, como é o de Niterói, a rede fica vazia nos dias em que não é feita a manobra, a água aflui para os pontos mais baixos, as bolas das ventosas caem e há nos pontos mais altos sucção na rede, e caso haja qualquer solução de continuidade haverá penetração na canalização de elemento externo que contenha qualquer poluição.

Imaginem o que aconteceria com o corpo humano se não houvesse a pressão interna arterial e venosa que defende a saúde na maioria dos casos evitando graves infecções.

Além disso, a existência de bombas sugando diretamente da rede, possibilita a alteração dos níveis piezométricos, que, quando se tornam negativos, criam condições favoráveis para o advento de um caso de poluição em qualquer lugar;

3º) Como é público e notório, e a quem duvidar basta ler os jornais ou der um passeio por qualquer ponto da cidade para ver, ou saber que um tampão de esgotos está vazando aqui e ali, correndo o líquido característico para a sarjeta, outras vezes pelos passeios, em ralos de águas pluviais etc;

Tudo isso tem uma causa sobre a qual poderá haver opinião divergente da minha e não quero aqui discuti-la, porém acho que não poderá haver quem discorde ou duvide de que isto é uma situação perigosa, uma verdadeira "Espada de Dâmocles", que precisa de solução urgente;

4º) Que, em virtude do regime de manobras do abastecimento d'água e das condições dos níveis piezométricos (até negativos), não pode haver um funcionamento regular dos fluxíveis instalados nas cabeceiras dos esgotos sanitários; por isso não tem havido um serviço regular de conserva desses aparelhos e, em alguns pontos, a carcaça de alvenaria de alguns aparelhos tem sido transformada em poços de visita, estando a maioria sem as campânulas respectivas;

5º) Que, como todos sabem, nosso sistema de esgotos é separador absoluto: por isso, no tempo em que o Serviço de Águas e Esgotos estava a cargo da Prefeitura Municipal de Niterói, havia, por parte desta, a prestação de um serviço gratuito de limpeza das caixas e remoção das gorduras domiciliares; mais tarde foi criada uma empresa particular que fazia esse serviço, mediante pagamento por parte dos usuários, até que a extinção da empresa determinou a paralisação do serviço de coleta e limpeza de caixas de gordura;

Ultimamente, isto é, há mais de dois anos, encontrei na minha caixa de correio o seguinte memorando:

"Serviço Limpeza Caixas de Gordura Conservadora Niterói
Av. Amaral Peixoto № 60 - Sala 701 - Fone 2-2148

Prezado Senhor: É proibido pela Prefeitura jogar detrito de Caixa de Gordura nos Esgotos, nas praias, nos terrenos vazios e nas valas, para isto foi criado esta agência Serviço de Limpeza de Caixa de Gordura, Cisternas e Fossa. Nosso serviço é executado periodicamente com pessoal longamente experimentado em tal modalidade, já temos o prazer de contar com grande número de clientes de nossa cidade, aos quais desde longos anos prestamos nossos relevantes serviços. Atenciosamente agradecemos, J. Vidal"


Guardei o memorando e utilizei-me durante algum tempo dos serviços dessa empresa. Conversando com seus empregados, soube que o memorando fora distribuído pelas residências de Niterói porque grande número de usuários baseando-se em que a Prefeitura realizava esse serviço gratuitamente, recusava-se a remunerar os serviços prestados pela empresa, de modo que as caixas de gorduras ficavam cheias: quando os moradores das casas em questão procuravam limpá-las, não tendo meios para eliminar tais resíduos, jogavam as gorduras nas praias, nos terrenos baldios, em valas, etc. e alguns, menos conscientes, destampavam a caixa K e atiravam as gorduras na própria rede de esgotos.

Acontece, porém, que há muito tempo os empregados da tal empresa não mais apareceram para recolher as gorduras de minha casa, não sei se ainda existe a tal empresa, por isso, mandando limpar periodicamente a caixa de gordura, aproveito os resíduos como estrume, pois meu quintal é arborizado.

6º) Sendo os esgotos sanitários de Niterói do sistema separador absoluto e "estando (como dizem) obsoletos e superados", que só o advento do interceptor oceânico os salvará", não poderão comportar ligação de águas pluviais na rede domiciliar, porque isso não é admissível no sistema separador absoluto, ainda mesmo num esgoto que não seja obsoleto e superado e, no entanto, dizem os jornais, existirem casos desse gênero.

7º) Que sendo, como dizem, os esgotos obsoletos e superados (não concordo com isso) e o interceptor a salvação, não compreendo como pode ficar sem verbas uma obra dessa importância, segundo os jornais, que publicaram fotografias de canos expostos ao tempo, etc.

8º) No cálculo de uma rede de distribuição de água, procura-se fixar os diâmetros da canalização em função das descargas, de modo a não atingir uma velocidade turbilhonar; entretanto, essa inconveniência pode ser atingida, uma vez que haja bombas sugando diretamente da canalização pública etc., o que altera o regime de funcionamento da rede.

No Diário Oficial do Estado do Rio de Janeiro do dia 06/01/1975, na parte de Saúde e Saneamento - Gabinete do Secretário, foi publicada a "Portaria nº 1, de 02/01/1975, designando o Médico, classe "M-1", Waldenir de Bragança; o Enfermeiro de Saúde, classe "ES-2", MILMA LANNES DUARTE DE SOUZA, ambos do Quadro Permanente, lotados nesta Secretaria, o médico contratado pelo Regime da Consolidação das Leis do Trabalho, LUIZ SERGIO KEIN, o Engenheiro do Quadro Geral da SANERJ, permissionado nesta Pasta, CARLOS ALBERTO CORBACHO VIANNA e o Engenheiro Sanitarista do Quadro Geral da SANERJ, RICARDO SILVEIRA, para sob a presidência do primeiro, constituírem a Comissão Estadual de Prevenção contra Cólera."

Como se vê, existe realmente um estado de alerta, tanto assim que o Governo do Estado tomou primeiras providências, nomeando uma comissão para cuidar do problema.

Penso também que em vista da situação do nosso abastecimento de água e das condições dos esgotos sanitários de Niterói, sobram motivos para a inquietação de todos nós, tanto mais que agora enfrentamos poluição de várias espécies: do ar, do som, da radioatividade e até mesmo do estilo, pois todo mundo fala de voz empostada em economicidade, infraestrutura, faixa etária, etc., mesmo sem conhecimento de causa e sem interesse de cooperar para esclarecimento ou solução do caso em tela, mas apenas para demonstrar erudição, complicando o que é simples por natureza.

Dizem que existe em nossas praias um bacteriófago que se alimenta com as ebertelas e outros germes, mas receio que ele seja alérgico ao bacilo da cólera; por isso, penso que seria mais seguro consertar os esgotos de forma a não oferecer meios subsidiários de propagação das doenças e melhorar o abastecimento d'água, de forma a haver fornecimento com torneira franca e pressão interna permanente na rede, para garantia eficiente contra possibilidade de poluição.

A medicina de hoje dispõe de mil armas para combater ou prevenir as enfermidades que ameaçam a humanidade: aparelhos de Raios X, raio Laser, ultrassom, laboratórios para exames de toda espécie, vacinas para várias moléstias etc., porém o contato do médico com o seu paciente realiza-se de modo tão rápido e impessoal que dificulta o estabelecimento de uma relação de amizade, como outrora, quando os médicos conheciam bem seus doentes e seus problemas físicos ou psíquicos, podendo aconselhá-los e confortá-los, fazendo da profissão verdadeiro sacerdócio.

Aliás, nos romances antigos e nas antigas peças de teatro havia sempre, entre os personagens, um padre ou um médico, ou ambos.

O padre, que para a família era o assistente social e tratava da alma, e o médico, que tratava da saúde, orientavam sobre a higiene e eugenizavam a raça, eram amigos desinteressados, de boa vontade, sempre a postos, sempre à disposição de quantos deles carecessem e procurassem.

Hoje, criaram-se cursos diversos, desdobraram-se as especializações, foram regulamentadas as profissões, existem conselhos regionais e locais de fiscalização, especificaram-se e limitaram-se as competências, uma interminável burocracia que se enquadra naquela afirmativa de Eça de Queirós, através de Fradique Mendes: "A Fraternidade vai-se sumindo, principalmente nestas vastas colméias de cal e pedra onde os homens teimam em se amontoar e lutar: e através do constante deparecimento dos costumes e das simplicidades rurais, o mundo vai rolando a um egoísmo feroz. A primeira evidência deste egoísmo é o desenvolvimento ruidoso da filantropia. Desde que a caridade se organize e se consolida em instituição, com regulamentos, relatórios, comitês, (ilegível), um presidente e uma campainha, e de sentimento natural passa a função oficial - é porque o homem, contando já com os impulsos do seu coração, necessita obrigar-se publicamente ao bem pelas prescrições d'um estatuto. Com os corações assim duros e os invernos tão longos, que vai ser dos pobres?..."

Assim, passamos da época dos fiacres e dos coupés, que transportavam Fradique e Eça, e chegamos à era espacial, sem que houvesse muito progresso no caminho da fraternidade.

Na era espacial, do cérebro eletrônico - enfim, a era do botão, aperta-se um botão e a coisa aparece e se desenvolve... E todos ficam satisfeitos.

Sucede, porém, que às vezes o botão é apertado... e a coisa não aparece e isso causa preocupação aos indivíduos que, como eu, não são homens de talento, são como o garoto simplório que escandalizou os homens de talento dizendo não ver a famosa e especial roupa do Rei, a tal roupa inexistente.

Sendo assim, gostaria que me esclarecessem, e à população da cidade, o seguinte:

a) Se o que existe em Niterói, sobre abastecimento d'água, é engenharia moderna, que vai ser conservado e eu estou enganado preferindo um abastecimento de torneira franca; se os princípios de Fruling e Gunther Manes que aconselham abastecer os pontos pelos caminhos mais curtos e os níveis piezométricos acompanharem as oscilações dos terrenos devem ser abandonados, porque as redes podem abastecer pelo caminho mais longo e os níveis piezométricos não precisam ser convenientemente ajustados às oscilações do terreno, podem ser até mesmo negativos e as velocidades atingirem ao turbilhão;

b) se num regime como o atual de Niterói, é possível fazer uso da piezometria para estudar as condições das canalizações existentes, e como;

c) se o regime de abastecimento atual existente permite a limpeza regular e periódica dos reservatórios;

d) se eu estou desatualizado relativamente às características do sistema separador absoluto de esgotos, porque agora, com o uso de detergentes, as gorduras podem chegar livremente até as canalizações, os fluxíveis podem desaparecer e as águas pluviais podem ser ligadas aos esgotos sanitários, porque vai ser feito um interceptor que corrigirá todas as deficiências;

e) quais são as características desses melhoramentos.


Publicado originalmente em O Fluminense, em 29 de janeiro de 1975
Pesquisa e Edição: Alexandre Porto
Na imagem de capa, canalização do rio Vicência, no Fonseca


Tags:






Publicado em 04/11/2024

Despacho de Dom João VI Leia mais ...
Carta de Lei Nº 6 de 1835 Leia mais ...
Carta de Lei Nº 2 de 1835 Leia mais ...
Pronunciamento da Mesa do Desembargador do Paço Leia mais ...
Representação do Ouvidor da Comarca Leia mais ...
Escritura de Renúncia de Terras Leia mais ...
Auto da Posse da Sesmaria em 1573 Leia mais ...
Alvará de Criação da Vila em 1819 Leia mais ...
Símbolos de Niterói Leia mais ...