Mas a história do nosso mais antigo teatro começa seis décadas antes no mesmo local
No próximo dia 08 de agosto de 2024, uma quinta-feira, o nosso Theatro Municipal João Caetano, ou Municipal de Niterói, como é mais conhecido do grande público, completa 140 anos.
Uma história de altos e baixos, descasos e glórias que começa, na verdade, seis décadas antes, quando surgiu na então Vila Real de Praia Grande em 1827 uma modesta casa de espetáculos no antigo Caminho do Capitão Mor, depois rua da Imperatriz, do Teatro, hoje Rua XV de Novembro. À frente dela estavam homens ilustres da Vila, entre os quais o comerciante
Joaquim Antonio Correia Bacelar e os vereadores
Alexandre Pinto de Carvalho e
André de Moura Velho, administradores de um corpo cênico que funcionava com o nome de
Sociedade do Theatrinho. Atribui-se, inclusive, a Moura Velho a edificação das primeiras casas no entorno do então Largo da Memória, hoje Praça do Rink.
Sabe-se que em 1834, a casa onde funcionava o já chamado Theatro da Praia Grande pertencia a José Francisco Furtado de Mendonça, que, por escritura passada em cartório, vendeu-a a Joaquim Antônio Ferreira que a transferiria em 1840, à Sociedade Philodramática de Niterói, já com o nome de Theatro Nictheroyense. Esta o explorou até 1842, quando o ator, diretor e empresário
João Caetano dos Santos adquiriu a casa por 4 contos de réis.
Visconde do Uruguai, João Caetano dos Santos e Marquês do Paraná
Do Praia Grande se fez o Santa Thereza
Antes disso, em 1839, quando a fama de João Caetano já se consolidara, presidia a Província do Rio de Janeiro Paulino José Soares de Souza, o futuro
Visconde do Uruguai, que, por meio da Lei 140, de 12 de abril, franqueou-lhe inúmeros benefícios, por meio de extrações ordinárias e extraordinárias de loterias oficiais, com vistas à construção de um Teatro Provincial, que, no entanto, nunca foi concluído. A obra foi considerada muito ambiciosa para uma cidade de pequena e pouco abastada população e as despesas necessárias para sua conclusão demasiadamente vultuosas. E construído, teria de permanecer fechado a maior parte do ano, por não ser possível manter, em um teatro desta ordem, representações contínuas e tão dispendiosas.
Com o objetivo de reparar esse contratempo, na gestão seguinte, do futuro
Marquês do Paraná, Honório Hermeto Carneiro Leão, para o ator se abriram mais uma vez as comportas dos cofres públicos. Com o decreto 273, de 11 de maio de 1842, que renovava o contrato de 1839, pôde o Nictheroyense ser adquirido por João Caetano que o reformou e ampliou. Após 3 meses de obras, a 25 de dezembro de 1842 inaugurou-se a nova casa com o drama, por sinal pouco natalino, "As Memórias do Diabo"; e entre os atos, se ofereceu ao público ligeiras apresentações carnavalescas.
Por essa época,
D. Pedro II já estava casado, por procuração, com a princesa de Nápoles, Thereza Cristina Maria de Bourbon (1822-1889), que só chegaria ao Brasil em 1843. Mas o novo teatro desde logo recebeu, em sua homenagem, o nome de Santa Thereza.
No ano seguinte, duas casas vizinhas foram desapropriadas e demolidas para a construção de varandas laterais e assim ajudar a isolar o edifício. Além disso, o engenheiro
Carlos Garçon Revière comandou uma segunda reforma, dando-lhe um frontispício mais elegante, melhorando os camarins, e construindo um camarote de honra, destinado ao jovem imperador.
Momentos de glória o Santa Thereza viveu, ninguém discute, muitas vezes recebendo Pedro II para assistir às comédias de
Victorien Sardou, aos autos de
Gil Vicente, aos dramalhões de
Alexandre Dumas ou às versões de Jean-François Ducis para as tragédias de
William Shakespeare.
E foi nesse palco que João Caetano representou pela última vez, levando à cena o drama "Os Íntimos", de Sardou, depois do que adoeceu e faleceu, em outubro de 1862. Sua morte representaria também a decadência do nosso teatro, que durante 21 anos funcionou regularmente. Na verdade, mesmo alguns anos antes, o edifício já dava claros sinais de declínio. No ano seguinte pouco dele se podia aproveitar.
Para muitos, era inevitável o fim da mais importante casa de espetáculos da cidade, já devolvida ao governo provincial, que rescindiu amigavelmente e sem custos, a concessão com a viúva do ator,
Estela Sezefreda, que não quis ou não pôde explorar o Santa Teresa. Enquanto isso, os herdeiros vendiam uma por uma as folhas da coroa de ouro que lhe fora oferecida em 1838, para poder sobreviver.
Francisco Correa Vasques, Joaquim Norberto de Souza Silva e Xisto Bahia
Teatros alternativos
Da ruína do Santa Thereza, por óbvio, se aproveitaram alguns empresários da cidade que logo trataram de ocupar o vácuo criado, inaugurando teatros pela vizinhança. Já em 1865 funcionava em Niterói uma outra casa de espetáculos, o
Elyseu, na rua D'El Rey, atual Visconde do Uruguai e Almirante Teffé, magnificamente instalado entre as árvores da chácara do comendador
Joaquim Norberto de Souza Silva, que era membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Coube ao Elyseu manter viva por quatro ou cinco anos a tradição teatral na cidade, chegando mesmo a apresentar companhias líricas francesas e italianas. Ali começou a trabalhar a icônica atriz Ismênia dos Santos, a matriarca do teatro brasileiro, que já no século XX adotou Niterói e aqui montou sua afamada companhia teatral.
Pouco depois, em 1874,
Raphael José de Mattos inaugurou o
Theatro Santo Antônio, na Rua de São João nº 52, onde, por sinal, seria vaiado o grande
Francisco Corrêa Vasques, ator negro e discípulo de João Caetano, por enxertar um "caco" ofensivo a Niterói; e que terminaria melancolicamente em 1881, transformado em armazém de secos e molhados.
O fechamento de "Santo Antônio" não deixou Niterói sem teatro, já que no ano anterior começara a funcionar, num formoso edifício à rua d'El-Rei nº 123, esquina com Imperador, hoje Marechal Deodoro, e onde antes funcionava um rink de patinação, o
Phenix Nictheroyense, iniciativa do empresário
Joaquim José da Costa Lima. Inaugurado a 16 de dezembro de 1880, com a companhia de Guilherme da Silveira, e com capacidade para 500 pessoas, para o Phenix convergiu todo o movimento dramático niteroiense, até a reconstrução do Santa Thereza.
Costa Lima, embora não exclusivamente ligado ao teatro, foi assessorado por pessoas influentes nos círculos teatrais do Rio de Janeiro, como
Domingos Braga,
Soares de Medeiros,
Xisto Bahia e o notável português
José Dias Braga, que ali muitas vezes fez apresentar sua companhia. O grande momento do Phenix, entretanto, foi no correr do ano de 1882, quando o baiano Xisto Bahia fez temporada com seus trejeitos caipira, levando à cena dezenas de vezes a comédia "Uma Véspera de Reis", de
Artur Azevedo.
Sobrevivendo à custa de miserável subvenção provincial, extinta com a República, o Phenix encerrou suas atividades em 1891, sendo o edifício vendido para uma Companhia de Pães e Massas, no popular, uma padaria, que, no entanto, não durou muito tempo.
O fim do teatro que nasceu Praia Grande, coincide também com o pipocar de diversos clubes dramáticos na cidade, que também não tardaram a abrir pequenas salas de espetáculos para uso próprio e aluguel. É sempre bom pontuar, que os teatros funcionavam também como uma espécie de Centros de Convenções da cidade, para onde convergiam uma série de reuniões políticas, literárias e beneficentes, além, é claro, de festejos carnavalescos.
Antônio Parreiras, Thomas Driendl e Manoel Benício
Reconstrução do Santa Thereza
Sem o apoio do poder público, que pouco se interessou pela empreitada, reconstruir o Santa Thereza, que em ruínas foi demolido em 1866, sob risco iminente de desabamento, não seria uma tarefa simples, mas depois de algumas frustradas tentativas, o maestro e cantor italiano
Felício (Felice) Tati (1845-1909), radicado desde menino em Niterói, tomou a si, em 1875, a tarefa. Para essa missão, juntou alguns poucos endinheirados da terra que o adotou numa sociedade por ações, a Companhia Theatro Santa Thereza, composta dos senhores Jesuíno Lamego da Costa, o Barão de Laguna; José Francisco de Sá Júnior; e Augusto de Souza Lobo; ficando Tati como gerente. Buscou na vizinha capital do império uma firma construtora que fosse a mais barata possível e em janeiro de 1878 colocava a pedra fundamental do novo teatro, no mesmo sítio do pequeno teatrinho de 1827. A firma escolhida pertencia aos irmãos Abílio e Carlos Amand.
Mal iniciadas as obras, percebeu-se que os construtores não empregavam materiais de boa qualidade, além do que deixaram de seguir em várias recomendações do projeto original do engenheiro
Ernesto Fernandes Barrandon, do que resultaram graves erros técnicos que comprometiam a segurança do prédio. Vistoria realizada em 1880 pela Diretoria de Obras Públicas constatou rachaduras e outras irregularidades.
A Companhia Theatro Santa Teresa suspendeu então o pagamento da empreitada e recorreu à justiça para reaver seus prejuízos. Os irmãos Amand mais que depressa apresentaram um segundo laudo, que desdizia totalmente a opinião dos abalizados técnicos oficiais. O Tribunal de Justiça, no entanto, desconheceu esse segundo documento e proferiu acórdão em favor da Companhia de Tati.
Mas o drama do Theatro Santa Teresa ia se arrastar por mais alguns anos. Muitos acionistas, desapontados com o ritmo das obras, desanimavam e não aportavam os valores das ações subscritas. Tati era o único que não perdia o entusiasmo e convenceu o governo a lhe conceder, em dezembro de 1881, um empréstimo de 10 contos de réis, para poder, finalmente, inaugurar o teatro. Afinal, tudo se arrumaria mais tarde, já que o próprio credor estava contratualmente obrigado ao pagamento de uma subvenção de valor bem maior, desde que a casa fosse aberta e começasse a funcionar. Mas na insegurança jurídica vigente na segunda metade do século XIX no Brasil, de que valiam os contratos?
Em dezembro de 1883, após uma visita técnica com a presença da diretoria da Companhia, do Chefe de Polícia, do presidente da Província e representantes da imprensa, se divulgou a descrição do frontispício do palco e do pano de boca da cena:
"O frontispício compõe-se de um escudo, onde se leem as letras 'TST' formando um monograma. O escudo acha-se no centro entre duas figuras, uma representando a Arte, outra a Verdade. Nas extremidades, figuram instrumentos de música.
O primeiro plano é formado por um átrio de azulejos com colunas balaústres, onde caem cortinas ornadas de franjas e jogos de cordas. Nas colunas que formam a entrada do pátio, existem as figuras da Música e da Fama. No centro do pátio, encostado a um repuxo formado por um grupo de anjos, vê-se Vênus com uma túnica branca. Sobre o repuxo está uma figura representando a Arte Dramática. Do lado direito do pátio, nota-se, entre as cortinas, Cupido, à espreita.
O plano de fundo é formado por um lindo ponto de vista da praia de Icaraí. Cercam o pano bambolinas e ornatos. Este trabalho foi feito pelo Sr. Antonio Parreiras, filho desta cidade e distinto aluno da Academia de Belas Artes, que nele revelou em geral bastante talento, gosto e estudo. A vista da praia de Icaraí está magnífica.
Mas por conta de um certo preconceito que reinava na época pelo paisagismo, o trabalho do artista acabou sendo recusado. Membros da Companhia Theatro Santa Thereza desejavam algo mais "dramático" e condizente com um teatro. O ainda jovem pintor, no entanto, acabou aceitando a tarefa de refazê-lo em outros termos. Seis meses depois Parreiras apresentou um novo trabalho, um desenho que representava as colinas do Coliseu. Segundo se noticiou à época, "bem acabado e, não obstante serem ruinas, deixam uma boa impressão em quem as vê, e despertam ideias históricas, bastante agradáveis".
A soleníssima inauguração, inicialmente agendada para 14 de julho de 1884, foi adiada para a sexta-feira, 8 de agosto, a fim de se conciliar a concorrida agenda do imperador. Presentes à festa ainda estavam o presidente da província,
José Leandro de Godói e Vasconcelos - que deixaria o cargo 10 dias depois, ministros de Estado, senadores, deputados, jornalistas, literatos, e, no palco, uma das mais afamadas companhias dramáticas em atividade no país, a do português José Dias Braga, que levou à cena o espetáculo
"O Gran Galeoto", de
José Echegaray y Eizaguirre, prêmio Nobel de Literatura, vinte anos depois.
Justas comemorações à parte, não faltaram maldosas criaturas que fizeram distribuir panfletos ameaçadores à própria volta do teatro. Segundo a apócrifa maledicência, a construção tinha incontornáveis problemas, a casa podia desabar a qualquer momento, o povo que se prevenisse para a hecatombe próxima e inevitável. Ainda corria no imaginário popular, o laudo da vistoria de 1880. Resultado: Entupido de gente no dia 8, nas semanas seguintes ficou o teatro às moscas e a bilheteria mal dava para pagar a impressão dos ingressos.
Ao mesmo tempo, nos corredores dos cartórios já tramitava uma ação executiva proposta pela Província contra a empresa concessionária, por causa daqueles 10 contos que o Governo emprestara. É verdade que o mesmo Governo devia aos mesmos empresários muitas vezes aquele valor, pois se comprometera por contrato a subvencioná-los com 5 contos de réis anuais, detalhe que ficou no esquecimento. Nada disso foi levado em conta e o teatro, que custara 80 contos de réis, passava à propriedade provincial por uma dívida de 10.
O pior é que, não tendo como explorá-lo, resolveram as autoridades transformá-lo em dinheiro vivo, vendendo cenários, móveis, aparelhagens, e até mesmo o encanamento de iluminação a gás. Nem o pano de boca, pintado pelo jovem niteroiense
Antônio Parreiras, ficou pra contar história.
Mudam os governos, as prioridades, e em 1889 cuidou-se da recuperação do teatro, na esperança de ser arrendado. Sucedem-se companhias interessadas, mas todas esbarram nas exigências financeiras impostas. São dessa reforma as pinturas decorativas do teto, contratadas ao pintor alemão, radicado no Brasil,
Thomas Driendl. Os bem-vindos melhoramentos foram, no entanto, dramaticamente danificados pela
Revolta da Armada (1893-94), que duramente castigou com bombardeios diários a cidade de Niterói.
Com paredes esburacadas pelas balas, telhado em frangalhos, assoalhos arrancados, a Assembleia Legislativa promulgou, a 6 de dezembro de 1895, a Lei nº 168 que autorizava o governo de
Maurício de Abreu, a leiloar o Santa Thereza. O magnífico edifício era então ambicionado por dois abastados industriais da cidade, um deles o mesmo José Maria Barbosa, que já transformara o Phenix em cocheira, três anos antes.
Nem mesmo o protesto da sociedade e da Câmara Municipal niteroiense demoveu o governador, nem mesmo a lei estadual 88/1894 que ordenava a transferência para o Município dos próprios estaduais adquiridos antes de 1889. Encarregado pela Secretaria de Obras do estado, coube ao engenheiro Noronha de Oliveira avaliar os bens móveis do teatro, localizado na já renomeada rua XV de Novembro, 11, depois, 35.
Um periodista que assinava 'Gal', escreveu a 29 de fevereiro, no jornal O Fluminense:
"Quando me lembro que o Phenix, de theatro passou a padaria, de padaria a cocheira, esse teatro, que se não tinha os requisitos necessários, era excelente e central; quando penso que o Santa Thereza já foi o campo de batalha, onde João Caetano alcançava os louros da vitória ante as turbas alucinadas de entusiasmo; quando penso que aquilo representa uma tradição e talvez, amanhã, depois da pancada seca do martelo, transformar-se-há em fábrica, cortiço, avenida ou casa de pensão; quando noto que Niterói vai ficar privado do único teatro que possui, tenho vontade de comprá-lo. Mas... vontade não é moeda e a respeito de capitais, conheço as duas, Petrópolis* e Federal, quanto a dinheiro, é o caso de dizer: Minh'alma é triste e lá em casa a família passa bem."
Mas os protestos surtiram algum efeito. A Câmara de Niterói, por iniciativa do vereador
Manoel Benício, apressou-se em arrematá-lo por 50 contos de réis, e após investir outro tanto em reformas e decoração inaugurou-o a 1º de janeiro de 1897, como Theatro Municipal de Nictheroy. No regime republicano, não cabia mais homenagear a já falecida imperatriz. Três anos depois, a Câmara Municipal aprovou a lei de autoria de
Luiz de Souza da Silveira que o rebatizou com o nome de Theatro João Caetano.
Fachada do Theatro Municipal João Caetano em diferentes períodos. 1904, 1925, 1935, 1956 e 1960. |
Como Municipal João Caetano no século XX
Daí por diante sobreviveu a trancos e barrancos, à mercê das atenções ou desinteresses das autoridades constituídas. Em 1904, mais reformas, desta vez iniciada no ano anterior pela Câmara Municipal, e concluída já na gestão do primeiro prefeito de Niterói, o engenheiro
Paulo Alves. Para a cerimônia de reinauguração, o teatro convidou o poeta
Arthur Azevedo para a função de Chefe de Cerimônias. E para os que desdenhavam da obra, alegando desperdício de dinheiro em uma Casa que pouco benefício trazia à população, o ilustre homem de letras, incansável incentivador da campanha em prol do teatro nacional, comentou em mensagem que dirigiu ao prefeito, no jornal "A Notícia":
"Ele que não esmoreça; quando lhe disserem que Niterói tem necessidades mais urgentes que a de um teatro, faça de conta que não ouviu e vá por diante com a consciência tranquila de quem trabalha pelo engrandecimento da sua terra. O teatro é tão necessário como a escola, o quartel, o hospital, o calçamento e limpeza das ruas, etc. É preciso impô-lo à população."
E mais reformas vieram: em 1911, 1935, 1940, 1944, 1952, 1956, 1965, 1976 e em 1987, até ressuscitar definitivamente em 1995, após longa e minuciosa restauração comandada pelo pintor e restaurador
Cláudio Valério Teixeira.
Algumas dessas "reformas" foram necessárias para corrigir transtornos decorrentes da histórica falta de manutenção; outras para o adequar às necessidades tecnológicas que surgiam ao longo do século; mas também tivemos alterações que, ditadas pela vaidade de alguns administradores, sem o olhar preservacionista, muitas vezes deturparam seu conceito artístico, tais como um enorme carpete marrom que cobria todo assoalho, camadas de tinta comum sobre trechos do trabalho de
Thomas Driendl, azulejos rosas no piso dos banheiros, ou mesmo uma marquise sobre o portão principal.
O descaso oficial chegou ao ponto que em dezembro de 1962, a Comissão de Segurança e Prevenção contra Acidentes da Prefeitura de Niterói condenou as instalações do teatro, que ainda assim funcionou precariamente até 1964. Tendo como prefeito Emilio Abunahman, em julho de 1965, iniciou-se mais uma grande reforma. O Municipal foi reinaugurado a 2 de maio de 1966, com a encenação de
Mulher Nota Zero Quilômetro, de Edgard G. Alves. Na década de 1970, a prefeitura ser foi novamente impedida de utilizar o teatro que era seu. Assim, resolveu o então
Instituto Niteroiense de Desenvolvimento Cultural (INDC, hoje FAN) arrendar outra casa de espetáculos, o antigo Teatro Alvorada, rebatizado de
Leopoldo Fróes. Casa pequena, acanhada, inferior em conforto e recursos, coube ao Leopoldo Fróes oferecer ao niteroiense uma casa de espetáculos que pudesse ocupar inúmeras companhias teatrais da cidade, à espera de um tratamento digno ao nosso Theatro Municipal João Caetano.
Á direita, o restaurador Cláudio Valério ao lado do então diretor do Theatro, Sohail Saud.
O restauro de 1995
Mas engana-se quem pensa que a obra inaugurada em 1995 restaurou o aspecto original do antigo Santa Thereza, aquele de 1884. Algumas intervenções, sobretudo as realizadas em 1889, 1904 e na primeira metade da década de 1910, foram preservadas. Sem elas, não teríamos hoje a atual fachada em estilo do renascimento, as pinturas de Driendl, as frisas ao lado da plateia ou os balcões policromados.
Cláudio Valério fez questão, no entanto, de recuperar as cadeiras de palhinha austríacas que foram vendidas em hasta pública logo após a inauguração. Conforme foi dito na época pelo artista, "os elementos históricos e de qualidade serão mantidos e aqueles que desvirtuam a obra como um todo serão transformados".
O trabalho da equipe liderada por
Valério, que contou com a participação das arquitetas
Maria Regina Potin Mattos,
Fernanda Couto Teixeira e
Cristiani Bittencourt Suzuki, além da colaboração da historiadora Maria Auxiliadora Silveira, foi premiado pelo Instituto dos Arquitetos do Brasil em 1994. Outro ponto de destaque que surgiu após as obras foi o pano de boca pintado por Roberto Burle Marx.
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Na imagem, o presidentre da Funiarte (hoje FAN) Luís Antônio Melo; o restaurador Cláudio Valério; o prefeito João Sampaio; Jorge Roberto Silveira e o Secretário de Cultura Ítalo Campofiorito (Revista Manchete, 13/04/1996). |
No fundo do palco, o muro de tijolos chama a atenção do público. Escondido durante muito tempo por majestosos cenários bem ao gosto do estilo teatral do início do século XX, a estrutura voltou à cena depois das obras. Ela faz parte da reconstrução do teatro em 1884 e ainda guarda as marcas da Cerâmica Santa Cruz, propriedade do comendador Trajano de Moraes, que mantinha uma filial em Santa Rosa.
Salão Nobre e Sala Carlos Couto
Quem visita o Salão Nobre também fica encantado com a beleza do lugar. O espaço recebeu atenção especial dos profissionais responsáveis pelo processo de restauração, que se debruçaram sobre as paredes e encontraram sete camadas de tinta sobre a original. Optou-se por deixar aparente a segunda mais antiga, justamente a realizada por Driendl.
Doada pela Mesbla em 1986, a casa anexa ao prédio foi definitivamente incorporada ao complexo, com o nome de Sala Carlos Couto, homenagem a um ex-diretor do teatro, que, quando jovem, por muitas vezes apresentou-se em seu sagrado palco. Hoje, a Sala é utilizada como suporte à programação do teatro, com exposições, lançamentos de livros e shows mais intimistas e gratuitos.
As cortinas do "novo" Theatro Municipal João Caetano foram reabertas a 20 de dezembro de 1995. Para um plateia apenas de convidados, a Companhia de Balllet da Cidade de Niterói apresentou a montagem de "Na floresta", que contava com figurinos da carnavalesca Rosa Magalhães.
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Personagens
Ao longo desses 140 anos, essa casa já abrigou o Teatro de Ópera de Niterói; a Academia Fluminense de Literatura; a Orquestra Symphonica Fluminense, duas companhias de ballet municipais; uma companhia de teatro infantil; e o Conservatório de Música de Niterói, entre outros tantos coletivos artísticos e instituições.
Embalou a carreira internacional de Leopoldo Fróes, recebeu artistas cênicos como Dias Braga; Ismênia dos Santos; sua nora Júlia dos Santos; Pepa Ruíz; Jardel Jércolis; Martins Veiga; José Carlos da Costa Velho; Alberto Vítor; Xisto Bahia; João Pinto, o Rei dos Amadores; Irênio Coelho; Artur Azevedo; Eduardo Souto; Oscar Guanabarino; Abigail Maia; Alda Garrido; Bibi e Procópio Ferreira; Céu da Câmara; Clóvis Salgado; Catulo da Paixão Cearense; Eduardo Gomes; Renato Lacerda; Renato Viana; Sady Cabral; Luís (Lili) Leitão; Almanir Grego; Dulcina de Moraes; Itália Fausta; Jaime Costa; Laura Botelho; Maria Jacintha; Paschoal Carlos Magno; Pernambuco de Oliveira; Raul Roulien; Lyad de Almeida; Nicete Bruno; Henriette Morineau; Carlos Couto; Isaac Bardavid; Roberto Piola; Roberto Machado; Conrado de Freitas; Lavínia Duarte; Carlos de Caz; Fernando Bonorino; Waldyr Nunes; Cristina Fracho; Eduard Roessler; Clotilde Moreira; Haydée Brasil; Fernanda Montenegro; e tantos outros.
Na música, se apresentaram nomes como Jacques Klein; Arnaldo Estrela; Radamés Gnatalli; Francisco Mignone; Magda Tagliaferro; Heitor Villa Lobos; Pixinguinha; Vicente Celestino; Bidu Sayão; Cauby Peixoto; Arthur Maia; Bia Bedran; Dalto; o MPB4, Os Lobos; Carl Palmer; Stanley Jordan; Gilberto Gil; Guinga; Leo Gandelman; Zélia Duncan; os maestros Assis Pacheco, Ernani Bastos, Cordiglia Lavalle, José Botelho e Felício Toledo; as irmãs Raymunda e Ruth Viana; e a maestrina Joanídia Sodré.
O palco do Municipal recebeu coreografias das professoras Eunice Linton, Helfany Peçanha e Juliana Yanakieva, que conduziram centenas de jovens bailarinos em formação.
Nele também surgiram gerações de grandes atores, diretores, bailarinos, figurinistas e autores. O Municipal foi também, para a tristeza de todos nós, a 7 de março de 1998, o último palco do cantor e compositor
Tim Maia.
Hoje lá está, cercado por prédios que lhe reduzem a opulência original, mas ainda orgulhoso de sua elegância artística e arquitetônica que, por obstinação de aguerridos amantes das artes, sobreviveu. E restituído, enfim, às dimensões de grandeza de seu passado e suas tradições.
Vida longa ao Theatro Municipal João Caetano, o Theatro Municipal de Niterói.
Uma palavrinha sobre Felício Tati
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Cantor, maestro e empresário do Theatro Santa Thereza, Felício Fortunato Tati |
Nada mais justo o nosso mais icônico teatro homenagear o Talma Brasileiro, João Caetano, que por mais de duas décadas ajudou a cultivar o gosto pela arte dramática na cidade, mas o verdadeiro herói do Theatro Municipal de Niterói, tal qual o conhecemos hoje, tem nome e sobrenome: Felício (Felice) Fortunato Tati. Artista desde menino, quando migrou para o Brasil com seu pai, o tenor Filppo Tati. Ainda adolescente se empolgou pelo canto e chegou a encantar plateias do Rio de Janeiro, São Paulo, Montevidéu e Buenos Aires. Por indicação do próprio Imperador Dom Pedro II, matriculou-se no Colégio Pedro II, onde completou sua educação literária.
No início da década de 1860, chegou a Niterói para ficar, sobrevivendo como professor de canto e piano. Artista de espírito ousado e irrequieto, passou a conviver, na então capital da Província do Rio de Janeiro, com as ruínas de um teatro onde nas décadas anteriores brilhara um gênio chamado João Caetano. Talvez o motivasse, a ajuda que poucos anos antes deu o Talma Brasileiro ao seu pai, já adoentado e em dificuldades financeiras, abrindo o Theatro São Pedro de Alcântara, então sob sua direção, a um espetáculo em benefício de Filppo.
Pois foi graças ao seu empenho, seu amor pela arte e seu tino empresarial, que a então capital da Província do Rio de Janeiro, pôde inaugurar, em 1884, uns dos teatros mais imponentes e bem aparelhados do Brasil. E esse reconhecimento lhe foi oferecido ainda na década de 1880, antes mesmo da inauguração de seu empreendimento, pelo cronista Luiz Fernandes.
"Falar porém neste teatro e esquecer o nome de Felício Tati, o seu empresário, seria uma falta imperdoável, seria uma ingratidão inqualificável. Entre os poucos que se consagraram a esta obra grandiosa merece ele menção honrosa. Foi ele quem teve a ideia de reedificar a antiga testemunha das glórias de João Caetano e desde este dia não teve outra preocupação, não teve outro divertimento; semelhante tarefa constituiu-se para ele uma monomania. Tati tem trinta e seis anos e está com os cabelos brancos! Embranqueceu-os em quatro anos de lutas contra a indiferença do nosso público e contra os ataques da inveja. Tudo ele sacrificou à sua ideia querida, ao seu sonho dourado. Segundo a opinião dos espíritos práticos e positivos, Felício Tati é um daqueles homens que merecem o epíteto de loucos. Eu o felicito por isso: os loucos da sua natureza deixam sempre um nome lembrado com saudade, e, o que é mais, conquistam as bênçãos da posteridade legando-lhes alguma coisa de útil." Luiz Fernandes.
Por Alexandre Porto
Fontes: Gazeta do Rio de Janeiro, Jornal do Commercio, Jornal O Paiz, Jornal O Fluminense, O Globo, Jornal A Capital, Diário da Manhã, Revista Manchete, Hemeroteca da Biblioteca Nacional, Anotações de Emmanuel Bragança.
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Nota: *Em 1896, em razão dos bombardeios da Revolta da Armada, a capital do Estado do Rio era Petrópolis, situação que permaneceu até 1903, quando voltou à Niterói.
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