Capítulo 36 da Série "A Niterói que eu vi e a que viram meus avós", de Romeu de Seixas Mattos
No meu último trabalho sobre enchentes (
Enchentes I) disse que, na minha infância, aproveitava as enxurradas como divertimento para conduzir minhas canoas de papel de jornal e que, mais tarde, volvi minha atenção para outros aspectos da natureza levando mais adiante minhas observações e estudos sobre a água, tanto na sua origem como nas suas finalidades.
É interessante a história sobre as teorias em relação à origem da água ...
Platão imaginava a existência de um grande abismo - ao qual chamava Tártaro - no fundo do mar. Deste abismo é que saíam as águas para, por infiltração direta na terra, alimentar as fontes, lagos e rios. Tal concepção tinha por base o não crescimento das águas do mar, apesar da água que constantemente nele caía.
Aristóteles opunha-se às idéias platônicas sobre a origem das águas. Era sua a seguinte teoria: "a terra possui em seu interior enormes cavernas onde é intenso o frio e grande a escuridão. Nestas cavidades condensava-se o ar transformando-se em água e desta maneira se alimentavam enormes lagos subterrâneos que davam origem às fontes e aos rios.
Lucrécio, um século antes de Cristo, afirmava que a terra é porosa estando sempre empapada devido aos mares que a rodeiam. A água é purificada pelas terras, saindo ao exterior nas origens dos rios. O conceito de que a filtração pode tornar doce a água salgada persistiu durante muito tempo.
Thales de Mileto - o sábio grego - acreditava que a água se insinuava no subsolo pela ação do vento e posteriormente a pressão das rochas fazia com que ela galgasse até mesmo a cumeada da montanha. A concepção atual que admite a evaporação d'água dos mares na formação das chuvas e estas como causadoras da existência da água no subsolo deve-se a
Vitrúvio, nascido em Roma um século antes de Cristo.
O calor solar incidindo na superfície dos mares provoca a evaporação da água. Esta eleva-se na atmosfera e passa a condensar-se: formam-se nuvens, nevoeiro, brumas. Com a interferência de novas variações termométricas a água cai à superfície da terra sob forma de chuvas, geada, orvalho, etc.
A água da chuva percorre caminhos diferentes até chegar ao solo. Se houver abundância de vegetação, a chegada ao solo é retardada e melhor distribuída: uma parte se infiltra, dá alimento às plantas e origem a lençóis subterrâneos; outra evapora-se de novo; uma porção corre pelos declives e alimenta os cursos d'água que afluem aos mares. Continuamente a água está em еvарогаção e assim se forma o ciclo, que chamaremos de 'Vitrúvio'.
Se atentarmos sobre a evolução do ciclo de Vitrúvio na bacia hidrográfica do Fonseca, antes e após o advento da
Alameda São Boaventura e à construção do canal triangular, veremos que, antes (havendo mais vegetação), a água retardava a sua chegada ao solo, distribuía-se melhor através da sinuosidade do talvegue e havia maior infiltração no solo, que em condições normais deve atingir um quarto da chuva caída na região.
Agora, sendo reto o canal triangular, diminuiu a extensão do talvegue, e sendo de cimento, não permite infiltração da água no solo em toda a sua extensão de três quilômetros, sendo de seção triangular que aproveita melhor os recursos aconselhados pela hidráulica, obtendo com isso maior velocidade d'água, causou um desequilíbrio no sistema sobrecarregando a parte do talvegue que continuou nas condições anteriores.
Além disso, o desaparecimento da
enseada de São Lourenço, levando para mais longe o litoral e com isso aumentando as dificuldades para o escoamento das águas, facilitou condições favoráveis às enchentes.
O resultado de tudo isso foi a enchente colossal que eu vi, durante a qual, procurando salvar uma pudica senhora, quase a deixei cair e quase fomos arrastados pela correnteza apenas os dois, escapando por sorte, apenas.
Posteriormente, fizeram obras complementares (projetadas pelo "processo da roda quadrada") que, embora tenham melhorado um pouco a situação, não resolveram o problema, tanto assim que O Fluminense de 11 de janeiro próximo findo (1975) noticiou o transbordamento do canal triangular da Alameda, a inundação do Ponto de Cem Reis de Sant'Ana, da Rua Padre Lamego e do Centro Espírita da Vovó Cabinda.
Essas transgressões das leis da natureza, acrescidas da poluição do ar e do ambiente, têm modificado o clima do Fonseca, que Manuel Benício dizia, por brincadeira: "ser o primeiro país do mundo".
O
Parque de Vicência (a caixa d'água do Fonseca) tinha outrora uma vegetação verdejante, opulenta, refrescada por uma unidade sadia que o tornava o local preferido para os piqueniques dos nossos avós e um clima benéfico que se estendia por quase todo o bairro do Fonseca.
Posteriormente, para executarem a
Estrada Amaral Peixoto, soterraram o Reservatório de Bento Peixoto, de forma não deixar o menor vestígio, e aterraram o Vale do Parque da Vicência, soterrando a base do
Reservatório da Vicência em uma altura maior de três metros, de manetra que, agora, não mais podem ser vistas as duas placas de mármore da inauguração em 1860 - uma escrita em latim e a outra em português - colocadas pelo Presidente Silveira da Motta.
A perfuração de poços profundos dentro do Parque da Vicência baixou consideravelmente o lençol freático e diminuiu a umidade do vale, de modo que hoje a vegetação não mais tem aquele frescor verdejante de outrora. Atualmente a vegetação do Parque da Vicência apresenta um verde amarelado, sendo muito menos abundante que antigamente.
Se volvermos nossa atenção para verificarmos como se desenvolve o "ciclo de Vitrúvio", na região que o nosso historiador Mattoso Maia Forte chamou de "Tabuleiro de Icaraí", veremos que, também lá, existem coisas dignas de nota.
Embora a infiltração d'água no solo dessa zona não tenha ficado inteiramente prejudicada, porque alguns dos canais anteriormente feitos não têm o fundo impermesbilizado, existem canais impermeáveis também e outros atentados ao melhor aproveitamento dos recursos da técnica especializada.
O maior empecilho que se estabeleceram foi a construção da Igreja de São Judas Tadeu, no terreno que foi do Lili Queiróz. Impedindo a melhora de escoamento de toda essa região, isto é do Tabuleiro de Icaraí.
A igreja poderia ser construída, mas depois que houvessem feito o viaduto de inundação para manter em cota zero o nível das águas durante qualquer enchente.
O projeto anterior a que me referi in
Enchentes I (e posso dizê-lo com conhecimento de causa porque dele participei) além de ser de custo mais barato era mais eficiente e não daria prejuízo a ninguém: de custo mais barato porque aproveitava as obras executadas na administração do Prefeito Ferraz, introduzindo os seguintes melhoramentos:
a) feitura do viaduto de inundação no Canto do Rio, de modo a manter completamente desimpedida a saída das águas do Rio Icaraí, no Canto do Rio, a fim de obter-se um desnível superficial máximo, já que a declividade da canalização não pode ser mantida com a alteração do funcionamento do sistema;
b) aproveitamento das obras existentes até o limite máximo da possibilidade;
c) desvio das águas vindas de montante do Campo de São Bento, através de um vertedor escoando-se por uma galeria de águas pluviais de seção circular ou de seu equivalente hidráulico correspondente uma seção retangular de largura duas vezes da altura, através da Rua Lopes Trovão.
d) se isso não fosse bastante, seria feito outro vertedor escoando-se por galeria com as mesmas características hidráulicas, passando pela Rua Otávio Carneiro;
e) possibilidade ainda de outros desvios. Esse projeto foi abandonado. Vejamos agora as inconveniências do projeto que foi executado, em seu lugar;
Para que se tenha uma ideia dos resultados obtidos com o aumento de mais dois metros na largura do Rio Icaraí, isto é, no canal entre o Campo de São Bento e a parte do Rio Icaraí que vem do Viradouro e Bairro Vital Brazil, que tantos prejuízos acarretou aos moradores da redondeza e à própria Prefeitura que teve de efetuar grande despesa para alargar o rio e aumentar o vão de duas grandes pontes, direi apenas o seguinte;
a) que, quando foi construído, tinha o aludido canal uma largura de 3m40, uma altura d'água de 0,m80 durante as enchentes e uma declividade muito pequena, que para uma hipótese de cálculo fixaremos em 1 milímetro por metro, disso resultando que teríamos para o cálculo: uma seção de 3m40 x 0m80 - 2m2,72, um perímetro molhado de cinco metros e um raio médio (raio hidráulico) de 2m72 + 5m = 0m54.
b) aumentando a largura do canal como o fizeram para 5m40 temos: 5.m40 x 0,m80 = 4m2,32, um perímetro molhado de sete metros e um raio médio (raio hidráulico) de 4.m32 + 7m = 0m61.
Como se vê, no primeiro caso - quando o canal tinha a largura de 3m40, o raio médio era 0m54, quando aumentaram a largura para 5m40, o raio médio passou a ser de 0m61; a velocidade de escoamento, nos dois casos, manteve-se em 1m77 mais ou menos, de modo que no primeiro caso tínhamos uma descarga de 2m2,72 x 1m77 = 2m3,940 e no segundo caso uma descarga de 4m2,32 x 1m,77 = 3m3,326, isso se as coisas se mantivessem equilibradas, em igualdade de condições, ou seja, que se mantivesse em igualdade de condições o funcionamento do canal, o que não se verifica realmente.
Sucede, porém, que um aumento de descarga de 1m3,326 por segundo, na parte final do Rio Icaraí, com a saída das águas prejudicada com a construção da Igreja de São Judas Tadeu, que impossibilitou a construção do viaduto de inundação, causará uma elevação de altura d'água tal que diminuirá o desnível superficial e assim a descarga do canal, após o alargamento, ficará inteiramente diminuída, sem que se possa fazer um cálculo, por falta de dados.
Há muito tempo acompanho os efeitos das enchentes na cidade e, por isso, lembro-me ainda da necessidade que teve o falecido Engenheiro Municipal Dr. Miguel Gomes de Pinho, morador na Rua Gavião Peixoto, um pouco antes da esquina da Rua Mariz e Barros, de abrir um grande rombo no muro que vedava o prolongamento da Rua Gavião Peixoto além da Avenida Sete de Setembro, para baixar o nível das águas naquele ponto, durante uma daquelas enchentes que assustavam muita gente.
Como se vê, aqui e ali, a natureza tem posto em evidência a falta de coordenação entre projetos, as transgressões cada vez maiores das leis naturais e os desequilíbrios dos sistemas de escoamento de cada bacia hidrográfica.
Publicado originalmente em O Fluminense, em 01 de março de 1975
Pesquisa e Edição: Alexandre Porto
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