Capítulo 01 da Série "A Niterói que eu vi e a que viram meus avós", de Romeu de Seixas Mattos

No cruzamento dos lados de numeração par das ruas do Imperador (hoje Marechal Deodoro) com a rua da Princesa (atual Visconde de Sepetiba) existiu um pequeno outeiro chamado, não sei porque, de "Monte d'Ouro", hoje totalmente desaparecido, cujos vestígios agora só podem ser notados por quem possua alguns elos da cadeia histórica.

O local dessa elevação, que ainda cheguei a ver entre os anos de 1908 e 1913, ocupava toda a área onde atualmente está os terrenos dos prédios de nº 174, 178, 182, 184, 188, 180, 194, 186, 198 e o da esquina, de nº 200, todos da rua Marechal Deodoro, e o de nº 188 da rua Visconde de Sepetiba, até onde também o outeiro se estendia.

Croqui organizado com elementos tirados de uma planta da cidade de 1908. O Fluminense, 10/09/1973
Na outra esquina em frente, isto é, no cruzamento do lado par da Marechal Deodoro com o lado ímpar da rua Visconde de Sepetiba, havia outro terreno completamente diferente, pois era baixo, alagadiço, coberto de vegetação própria dos mangues que por ali se estendiam até próximo à rua de São João, considerados naquela época terrenos de Marinhas, que agora estão totalmente ocupados por vários prédios.

Ligada ao desmonte dessa pequena elevação, meu falecido amigo José Liberato dos Santos contou-me uma história real, meio anedótica:

Chamava-se Gustavo José de Mattos o proprietário dos dois terrenos - o do outeiro e o alagadiço que encarregara um português, dono de modesta carroça, de fazer desmonte do pequeno outeiro, mediante assinatura de contrato, com fiador idôneo, etc.

Ao português, homem trabalhador, mas simplório, José Liberato aconselhara que mandasse avaliar a volume total do desmonte a fazer, visse o número total de metros cúbicos que atingia, antes de assinar o tal contrato, mas não foi aceito o seu conselho, de modo que, mais tarde, encontrando-se com ele, disse-lhe, apavorado, o português: "Sr. Liberato, olha! aquele negócio de cúbicos que o senhor falou tem a sua diferença; eu já tirei o dobro das carroças que pensava e, no entanto, o diabo do morro nem parece que foi mexido, acho que não vou aguentar a virada e vou deixar mal o meu fiador".

Penso que o pobre português "não aguentou mesmo a virada", pois recordo-me, vagamente, de ter visto montada entre os dois terrenos, atravessando a rua Visconde de Sepetiba, uma pequena linha ferroviária Decauville, completando o aludido desmonte.

Até aqui escrevi sobre o Monte d'Ouro baseado naquilo que vi ou me contaram, em tempos idos. Entretanto, através de investigação feita para outros trabalhos, consegui descobrir algumas coisas que, submetidas aos quatro métodos de raciocínio indutivo estabelecidos por Stuart Mill, a saber: de concordância; de diferenças; dos resíduos; e das variações concomitantes, levaram-me a crer que o Monte d'Ouro foi uma ilha, absorvida com a evolução da Ponta d'Areia, que as suas dimensões eram maiores do que aquilo que cheguei a ver e que o seu desmonte forneceu terra para aterro dos baixios que desapareceram, por onde traçaram ruas e construíram prédios, mas que deixaram vestígios, remanescentes, que fornecem elementos para boas conclusões, nas mãos hábeis de atento observador.

Se examinarmos plantas antigas de Niterói, veremos que a rua Marechal Deodoro e outras iam apenas cerca de cem metros além da rua Visconde de Sepetiba; que, para abrirem a rua Marechal Deodoro e a levarem até um pouco adiante da rua Visconde de Sepetiba, prolongarem a rua Visconde de Sepetiba além da rua Marechal Deodoro, tiveram de fazer um corte com cerca de três metros de altura, fazendo o desmonte do pequeno Monte d'Ouro.

Na época em que o resto do Monte d'Ouro ainda não havia sido demolido para aterrar o terreno alagadiço em frente, a que me referi anteriormente, o quarteirão do lado ímpar da Marechal Deodoro, a partir da esquina da rua Barão de Amazonas (antiga do Príncipe), só tinha alguns prédios entre aquela esquina e o prédio de nº 171, e, a seguir, do prédio nº 171 até a esquina da rua Visconde de Sepetiba havia um muro de arrimo com 2,5m de altura, da chácara do Comendador Bernardino de Faria que aí morava no prédio que hoje tem o nº 187.

Os fundos da citada chácara atingiam quase meio quarteirão do lado par da rua Visconde de Sepetiba, entre Marechal Deodoro e Marques de Caxias, isto é, chegavam até onde hoje existe o prédio nº 140 da rua Visconde de Sepetiba.

O terreno de referida chácara era elevado acima das duas ruas (Marechal Deodoro e Visconde de Sepetiba) 2,5m mais ou menos, amparado por muros de arrimo, dos quais ainda existem hoje trechos que lá estão, isto é, na testada da Avenida de nº 162 do nº 196 da rua Visconde de Sepetiba.

Pela rua Marechal Deodoro, quando construíram os prédios n. 173, 173a, Avenida nº 173, nº 177 e o de nº 181, mais recuados que os outros, demoliram o muro de arrimo e arrasaram o terreno até o nível da rua Marechal Deodoro. O mesmo aconteceu quando edificaram os prédios nº 189, 191 e 203 da rua marechal Deodoro.

Sendo assim, o remanescente que ainda existe do desaparecido outeiro são os terrenos elevados do prédio nº 187 da rua Marechal Deodoro e os terrenos das Avenidas nº 182 e 186 da rua Visconde de Sepetiba.

Para melhores esclarecimentos, anexamos um croquis, organizado com elementos tirados da planta da cidade de 1908, na escala de 1:2000. Nele estão representados o demolido outeiro chamado "Monte D'Ouro" e a calha de um desaparecido canal.


Notas da edição

1 - O jornal O Fluminense noticiou em 22 de janeiro de 1916: Monte d'Ouro está sendo arrasado. Está sendo arrasado o tradicional Monte d'Ouro, a pequena elevação formada por areia existente à rua Marechal Deodoro, esquina da do Visconde de Sepetiba. O respectivo proprietário pediu e obteve a necessária licença da Prefeitura para fazer o serviço, aproveitando, porém, o aterro para aterrar o grande capinzal existente na esquina fronteira. É um bom serviço prestado ao saneamento daquele trecho.

2 - Quando o autor cita 'Avenidas', está se referindo a vilas na nomenclatura de hoje. Há na rua Visconde de Sepetiba, no nº 610 (antigo 184), uma vila com o nome de Monte D'Ouro, e que originalmente contornava o outeiro.

3 - No alto do Monte D'Ouro funcionava a sede do Clube Carnavalesco Rosário Vivo, comandado pelo Braguinha, que tinha pendurado num galho de um grande e velho Cabaceiro um sino, que ele repicava chamando os sócios.

4 - Em 1918, na esplanada criada com o desmonte do outeiro, a Empresa de Antonio Ferraz instalou o Circo Variedades, "Companhia equestre, acrobática e atrações pantomimas de grande aparato". Ainda em 1921, o terreno era ocupado por companhias circenses.

5 - O canal desaparecido, citado pelo autor, é o rio dos Passsarinhos, que hoje corre subterrâneo, mas que originalmente nascia no Bairro de Fátima, contornava o morro da Caixa D'água e descia pela Visconde de Sepetiba até sua foz na antiga Enseada de São Lourenço, próximo hoje ao Bloco B da Universo.


Publicado originalmente em O Fluminense, em 10 de setembro de 1973
Pesquisa e Edição: Alexandre Porto



Índice do Niterói que eu vi e que viram meus avós

O Monte D'Ouro
O morro que foi ilha
A Enseada de São Lourenço
Derivativos para a falta de divertimentos
Kiosques e Quiosques
Rio dos Passarinhos


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Publicado em 10/05/2024

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