Capítulo 09 da Série "A Niterói que eu vi e a que viram meus avós", de Romeu de Seixas Mattos
A citação que fiz, no trabalho relativo ao "Rio dos Passarinhos", sobre o aproveitamento de uma antiga galeria de esgotos construída no governo do Presidente Francisco Portela, obriga-me a apresentar aqui mais alguns esclarecimentos sobre a citada galeria e a dizer alguma coisa a respeito da história dos esgotos da nossa invicta cidade.
Por incrível que pareça, no tempo da "Vila Real da Praia Grande", em 1818, a higiene da cidade contava com um elemento de grande prestígio, cuja vida preciosa era protegida por lei, que estabelecia a pesada multa de 2$000 (dois mil réis) a quem matasse um Urubu.
Também contribuía para a higiene local o
Tigre, não o animal feroz (o pobre e desgraçado "soberano dos prados e vergéis", como escreveu Azevedo Cruz), mas a denominação dada popularmente aos barris que os escravos levavam aos pontos de despejo: em Niterói - na Ponta da Armação; em Campos - no Rio Paraíba; no Rio de Janeiro - em diversas e determinadas praias.
Se folhearmos qualquer literatura que trate do serviço de esgotos, veremos que os técnicos, pomposamente, fazem várias classificações, através de vários sistemas de esgotos, entre os quais o que divide em Estático e Dinâmico.
Assim, sistema Estático de esgotos é o sistema intermitente, com estagnação a curto prazo, feito através de cubos, baldes ou tinas de madeira (vulgarmente chamados de barris) ou chapas de ferro galvanizado, que devem ser removidos ou esvaziados em cada 24 ou 48 horas. Os recipientes são transportados em veículos especiais para o local de despejo ou tratamento, e depois lavados e desinfetados para substituir os outros que vão ser recolhidos. O processo, apesar de ter sido empregado, é ineficiente, perigoso para a saúde pública, e anti-higiênico para os operários encarregados do transporte e limpeza dos recipientes.
Esse era o sistema de esgotos de que dispunham cidades como Campos, Rio de Janeiro e Niterói, sistema que, em Niterói, estendeu-se até os idos de 1921.
Através de conversas de família, tenho conhecimento de inúmeros casos curiosos a respeito dos "Tigres" e, em 1903, quando voltei a residir em Niterói, alcancei ainda o "Tigre" em pleno funcionamento, podendo fazer observações pessoais interessantes.
Felizmente, porém, o "Tigre" observado por mim em Niterói não era mais aquele "Tigre" descrito por Joaquim Manuel de Macedo, nas "Memórias da Rua do Ouvidor", não havia mais a escravidão e o serviço era feito por uma empresa particular, que mesmo assim conservava as inconveniências de suas características e abundância de episódios vexatórios, que estão por mim relacionados nas "Notas para a história dos esgotos de Niterói", das quais já tenho 380 folhas de almaço manuscritas, embora ainda não tenha conseguido ultrapassar o ano de 1930.
Não se tem notícia de que o sistema de esgotos adotado então houvesse provocado alguma epidemia ou produzido algum dano à saúde pública ou particular. Tudo isso acontecia porque, naquele tempo, os homens e os animais eram mais fortes e mais sadios, porque respiravam o ar que ainda não estava poluído pelas descargas dos veículos e das chaminés das fábricas, bem como a alimentação provinha de ingredientes naturais e frescos.
Contudo, no século passado, no advento do terceiro centenário da fundação da cidade, em 1873, as autoridades governamentais fizeram as primeiras tentativas para libertar a cidade de Niterói das inconveniências e dos incômodos do famigerado "Tigre" e adotar o sistema Dinâmico de esgotos.
Partindo dos primórdios, verifiquei que em 1876 pendia de solução do Governo da Província, um requerimento de Narbal Pamplona, cessionário do contrato celebrado com o falecido Comendador Francisco Pinto de Melo para o Serviço de esgotos de matérias fecais, águas servidas e pluviais desta Capital (23 de março de 1873), no qual pedia para levar a efeito essas obras e celebrar com ele novo contrato, que infelizmente não se realizou, porque o Governo Provincial, tendo em vista que o contrato de 23 de março de 1873 havia caducado por inobservância dos prazos nele estipulados, pretendia fazer essas obras por administração.
No Relatório da Província do Rio de Janeiro de 1876, página nº 51, encontra-se o seguinte:
"Abastecimento d'água potável da cidade de Niterói. Tendo o contrato de 22 de março de 1872 celebrado para abastecimento d'água potável a esta Capital, incorrido em caducidade por excesso de prazos neles estipulados, resolveu o Governo, por deliberação de 16 de agosto do ano passado, declará-lo de nenhum efeito".
Do que se vê, concluo que este contrato se estenderia também ao serviço de esgotos e que se tratava de providências referentes ao ano de 1872, estimuladas pelo advento do terceiro centenário da fundação da cidade.
Através do título do contrato que se refere ao esgoto de matérias fecais, águas servidas e pluviais, penso que o projeto de esgotos, se chegou a ser feito, teria adotado o sistema misto de esgoto (águas fecais, pluviais servidas).
Apesar de não ter encontrado nas pesquisas que fiz qualquer contrato para remoção do lixo naquela época, penso que o sistema "Tout à Peugeot", pelas suas características devia estar fora das nossas cogitações.
Depois disso, caiu na rotina costumeira de sempre, continuando por algum tempo e prestígio do urubu e do "Tigre" até que em 1890, foi feita nova tentativa (com maior sucesso) para dotar a cidade de um serviço de esgotos.
Segundo documentos que consultei, o trabalho, apresentado pela Empresa de Obras Públicas do Brazil (Brazil com Z como se escrevia naquele tempo), nos termos de Edital de 4 de fevereiro de 1890, além da memória descritiva e justificativa de projeto, de 31 de março de 1890, assinado por T. Tapajós, continha a planta geral da cidade e seus arrabaldes, compreendendo o respectivo plano cotado, com o traçado da rede de esgotos e os perfis longitudinais das galerias, etc. etc. (11 desenhos devidamente numerados e uma memória descritiva).
A área a ser esgotada compreendia a cidade, com São Domingos e os arrabaldes de Icaraí, Santa Rosa, São Lourenço, Sant'Ana, até o Largo do Barradas e o porto do Meier.
As estações de serviços seriam duas, uma na Ponta da Armação (no Estaleiro Mauá) e outra no extremo da Praia de Icaraí (no Canto do Rio) - com três tanques de precipitação, com capacidade para receber cada um 196.000 metros cúbicos do efluente do esgoto. As máquinas seriam do tipo "Compound", de 35 cavalos vapor de força cada uma. As desinfecções seriam feitas por meio de reagentes químicos: cal, sulfato de alumínio e carvão, partindo as galerias com a cota de um metro abaixo da baixa-mar.
Eram três as canalizações principais, isto é, na parte que escoava para a estação de serviço situada na Ponta da Armação (Estaleiro Mauá):
A da cidade - Ruas Mauá, São Carlos, d'El-Rei, até a Rua da Imperatriz, atualmente Ruas Miguel de Lemos, Silva Jardim, Visconde do Uruguai até a Rua XV de Novembro. Extensão: 2930 metros em dois trechos, Forma oval (egg shaped) 1,35m x 0,98m e 1,44m x 0,76m de tijolo com espessura de 0,22m. Declividade por metro: um milímetro por metro no primeiro trecho (1200 metros) e meio milímetro por metro no segundo (1730 metros).
A de São Domingos - Ruas da Imperatriz, Praia, Cabeceiros, Fresca e Boa Viagem, atualmente: Ruas XV de Novembro, Visconde do Rio Branco, Travessa Guilherme Briggs, Rua General Osório, Rua Passos da Pátria e Antônio Parreiras. Extensão: 1755 metros, espessura O,22m de tijolo, diâmetro O,80m, declividade por metro: meio milímetro.
A de São Lourenço - Ruas de São Lourenço, Imperador, Princesa, Glória, Largo do Quartel, Rua do Príncipe, até São Carlos, atualmente: Ruas São Lourenço, Marechal Deodoro, Visconde de Sepetiba, Froes da Cruz, Barão do Amazonas, até a Rua Silva Jardim. Extensão: 2393 metros, diâmetro 0,80m, espessura do tijolo O,22m. declividade por metro: meio milímetro.
Nas ramificações, minuciosamente traçadas na planta, são marcados os diâmetros devidos de O,60m e O,20m, sendo de O,15m os diâmetros dos ramais dos prédios, declividades de um milímetro o meio milímetro por metro. Forma circular. Os coletores de 0,60m e 0,40m de diâmetro serão de tijolo com a espessura de O,11m; os de menores diâmetros serão de tubo de
'grés vitrificado'.
Do exposto, verifica-se que a galeria existente embaixo do prédio nº 363 da Rua Marquês do Paraná e que daí em diante (isto é, do ponto onde foi feita a ligação do Rio dos Passarinhos) segue por baixo de todos os terrenos e prédios do lado par desta Rua Marquês do Paraná, até chegar à Rua de São João (porque o arruamento da Marquês do Paraná não coincidia perfeitamente com o arruamento da desaparecida Rua da Diamantina) deve ser uma galeria secundária feita para escoar área pouco considerável, pois o bairro de Santa Rosa não escoava para ela.
Sendo assim, a galeria onde foi ligada o Rio dos Passarinhos deveria ser de tijolo, com espessura de O,11m e o diâmetro de O,48m (na pior das hipóteses) e a extensão do seu trajeto de mil e trinta metros mais ou menos pela antiga Rua Diamantina (atual Marquês do Paraná); novecentos e cinquenta metros mais ou menos pela rua de São João; trezentos e trinta metros mais ou menos pela rua da Princesa (atual Visconde de Sepetiba), onde na esquina da Rua do Imperador (Marechal Deodoro) ligava-se com a galeria principal que vinha da Rua de São Lourenço.
Encerro a descrição que vinha fazendo para apresentar outros elementos do Projeto de Esgotos de 31 de março de 1890, apresentada ao governo do Dr. Francisco Portela pelo Diretor-Presidente Manuel Buarque de Macedo, da Empresa de Obras Públicas do Brazil (grafia da época), nos termos do Edital de 4 de fevereiro de 1890, porque nosso objetivo foi, apenas, prestar alguns esclarecimentos sobre a referida galeria para onde foi desviado o Rio dos Passarinhos, deixando de acrescentar mais detalhes do projeto, relativos aos outros bairros.
Essa tentativa de 1890 teve mais sucesso que a anterior, porque chegaram a ser feitas algumas galerias, até que o serviço foi interrompido com a saída do Presidente Francisco Portela do governo do Estado e com a eclosão da Revolta da Armada Nacional, em 1893.
Mais tarde (1904), na administração do Prefeito Paulo Alves, foi feito um novo projeto de esgotos de sistema separador absoluto, projeto que foi revisto pelo Dr. Manuel Ribeiro de Almeida em 1911, na administração do prefeito Feliciano Sodré e que foi executado, e no qual, desde seus primórdios, existe uma pequena partícula do meu modesto trabalho. Apesar dos pesares, chegou aos nossos dias, ainda em funcionamento, esse serviço de esgotos.
Publicado originalmente em O Fluminense, em 07 de abril de 1974
Pesquisa e Edição: Alexandre Porto
Na foto de capa, a inauguração de uma elevatória na rua Dr. Paulo César, em Santa Rosa. Ao fundo, a antiga Igreja de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito. Revista Fon-Fon, julho de 1920.
Índice do Niterói que eu vi e que viram meus avós
O Monte D'Ouro
O morro que foi ilha
A Enseada de São Lourenço
Derivativos para a falta de divertimentos
Kiosques e Quiosques
O problema da localização da Vila Real da Praia Grande
O Campo de Dona Helena
Rio dos Passarinhos
Aproveitamento de uma antiga galeria de esgotos
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