Capítulo 07 da Série "A Niterói que eu vi e a que viram meus avós", de Romeu de Seixas Mattos

O "Campo de Dona Helena" fazia parte das terras de uma fazenda de plantação de mandioca, adquiridas por Manuel José Bessa pelo preço de 2:700$000) a Domingos de Freitas Rangel e sua mulher D. Ana Maria de Jesus, por escritura de 6 de março de 1794. lavrada em notas do Tabelião João dos Santos Rodrigues de Araújo.

Limitavam-se essas terras com as de Antônio Tavares da Rocha, Conego José Mendes e Inácio de Carvalho e foram objeto de várias transações, como veremos:

Em 15 de fevereiro de 1753 foram arrematadas por Aleixo dos Santos Alves, na execução movida pela viúva do Sargento-Mor Antônio de Figueiró e Almeida e D. Isabel da Conceição Vieira contra José de Souza Meireles e sua mulher D. Ana de Oliveira.

Falecendo Aleixo, por sentença de 6 de março de 1776, do Juiz de Fora Machado Cardoso, foram adjudicadas à viúva D. Quitéria Maria de Figueiró e Almeida que contraiu segundas núpcias com José da Silva Antunes.

Este e sua mulher as venderam, em 28 de março de 1789, ao Tenente Coronel de Artilharia Antônio Joaquim de Oliveira e sua mulher D. Mariana Rita de Bulhões os quais, por seu turno, em 14 de março de 1791, as cederam por 2:150$000 ao Dr. Domingo de Freitas Rangel e sua mulher D. Ana Maria de Jesus que, por sua vez, a venderam a Manuel José Bessa.

Bessa tomou posse dessas terras em 12 de março de 1794, e do termo respectivo consta que "praticou todos os atos possessórios e do estilo da época, abrindo e fechando portas, nas casas que existiam no terreno nas de vivenda" (estas deviam ficar na atual Rua XV de Novembro) "atirando terra ao ar, cortando ramos de árvores e praticando as cerimônias que costumavam praticar em semelhantes atos: depois o porteiro, virando-se para Manuel José Bessa, disse: - Dou-lhe uma, duas, uma maior e outra mais pequena, faça-lhes bom proveito!, entregando-lhe um ramo verde em sinal da "posse".

Manuel José Вessa casou-se com D. Helena Francisca Casimira que, por morte do seu marido, houve as terras por sentença de 29 de janeiro de 1811, daí advindo o nome dado ao campo.

As terras dessa fazenda de plantação de mandioca eram oriundas da sesmaria concedida ao índio Arariboia, com exceção da área plana do respectivo campo que era proveniente de acrescidos de marinhas, isto é, de aterros feitos nos mangues e mar de pequena profundidade, fora, portanto, do litoral que existia em 1568, aterros sempre crescentes que, evoluindo, formaram a Ponta d'Areia etc., litoral que a meu ver constituía a verdadeira "Praia Grande".

Pela leitura de vários documentos antigos e, especialmente, pela lei de desapropriação do Largo do Capim e da Memória, assinada pelo Presidente da Província do Rio de Janeiro - Aureliano de Souza e Oliveira Coutinho (p. 100 e 101 da Coleção de Leis e Decretos da Província do Rio de Janeiro) percebe-se que o Campo de Dona Helena não era cercado, tanto assim que D. João VI, em 1816, nele deu beija-mão e assistiu ao desfile de suas tropas, em companhia da família real.

E não era cercado porque, sendo uma fazenda de plantação de mandioca, não tinha criação de gado e por isso não havia necessidade de cercas no campo.

Contudo, apesar do terreno estar exposto à "servidão pública", os seus proprietários estavam sempre vigilantes, tanto assim que a primeira Câmara ou o Executor do Alvará de 10 de maio de 1819, a princípio, limitaram-se apenas a erigir o Pelourinho numa das extremidades do campo, no dia 11 de agosto do mesmo ano de 1819.

Mais tarde traçaram, através do Campo de Dona Helena, caminho para o Palácio de São Domingos (palácio de D. João VI), caminho chamado pelo povo de Rua do Pelourinho.

A professora Thailta de Oliveira Casadei forneceu-me notas, extraídas do "Livro de Receita da Câmara Municipal", pelas quais verificamos que foram feitos vários pagamentos em 1834, referentes ao traçado desse caminho, notas e pagamentos que transcrevi no meu artigo O problema da localização da Vila Real da Praia Grande.

Depois, as Câmaras que se seguiram, traçando duas praças distintas - da Memória e do Pelourinho ou do Capim - foram mais além, mandaram arrancar cercas que limitavam os terrenos ocupados por arrendatários ou foreiros de D. Helena Francisca Casimira.

Esse abuso de poder das Câmaras encontrou reação por parte de D. Helena que, inicialmente, dirigiu-se ao Governo Imperial pedindo remédio para o esbulho que sofrera.

Não sendo atendida sua reclamação, recorreu então ao Judiciário intentando ação, cujo termo definitivo, por sentença do Supremo Tribunal de Justiça, de 11 de abril de 1845, ocorreu quando já não vivia, sucedida na demanda por sua filha D. Maria José Bessa, esposa do Capitão-Mor Gabriel Alves Carneiro, a qual, vencedora por várias sentenças, tomou posse de suas terras na Praça do Pelourinho, em 18 de maio de 1845 (onde está hoje a Prefeitura Municipal).

De fato, "aí chegando com mandado do Juiz Municipal, o escrivão Manoel Francisco de Albuquerque Bastos e o Oficial de Justiça, servindo como Porteiro dos Auditórios, João Batista de Melo, este, em presença de testemunhas, apregoou em altas vozes, passando por um e outro lado do Largo, se havia quem se opusesse à posse de D. Maria José Bessa; não havendo, o referido escrivão deu posse atual, natural, mansa e pacífica, praticando todos os atos possessórios do estilo".

Entretanto, nas páginas n. 100 e 101 da Coleção de Leis, Decretos e Regulamentos da Província do Rio de Janeiro encontra-se o seguinte:

"Desapropriação do Terreno do Largo do Capim e o da Memória

Sendo há muitos anos considerada servidão pública a praça chamada da Memória, e como tal incluída na planta desta Imperial cidade, porque, fazendo parte do campo denominado de Dona Helena, no qual o Sr. D. João VI, quando veio pela primeira vez a este lugar, em 1816, se dignou passar revista as tropas lusitanas, que aqui se achavam aquarteladas, principal motivo por que em 11 de agosto de 1819 foi ereta em vila esta povoação com o título de Vila Real da Praia Grande, pelo Desembargador Joaquim José de Queirós, Ouvidor Geral e Corregedor, que então era da Comarca do Rio de Janeiro levantando neste ato o Pelourinho na parte do dito campo, que fazia frente para a Rua da Conceição para aí se edificar a Casa da Câmara Cadeia, o que consta no auto lavrado em um dos livros da Câmara Municipal; sendo conservado aquele e outro ponto do referido campo para praça com semelhante denominação a fim de que servisse de recordação a um acontecimento tão notável para esta capital, como o da visita que a ela fizera o augusto avô de Sua Majestade o Imperador Sr. D. Pedro II; constando agora a este governo que um cidadão obtivera sentença do poder judiciário, pela qual se julga com direito à posse do terreno compreendido dentro da referida praça, o que pode trazer dúvidas e contestações para o futuro, mormente quando se tem mandado edificar nela um chafariz, que além de abastecer d'água os moradores daquele ponto até São Domingos, trouxesse a lembrança de um fato tão assinalado e plausível; o presidente da província tem deliberado desapropriar o terreno compreendido dentro da mencionada praça, na conformidade do $ 1º do art. 1 da lei provincial de 14 de abril de 1835 (Lei n.º 17) para que continue a ser, como até aqui, servidão pública. E porque em virtude da Carta de Sesmaria concedida em 16 de março de 1568 ao índio Martim Afonso de Souza para si e seus descendentes, em remuneração dos seus serviços feitos por ocasião da expulsão dos franceses, que se tinham apoderado desta parte do Brasil, então colônia de Portugal, e de outros documentos que foram presentes a este governo, reconheceu este que a praça em questão está em terras da referida Sesmaria, na qual foram estabelecidas as condições de prestar logradouros públicos, caminhos e serventias ao conselho para fontes e pontes, viveiros de pedra que necessário fossem e não há lugar para indenização alguma na forma do art. 9 da citada lei, por não existirem ali benfeitorias. E achando-se em iguais circunstâncias a praça do Pelourinho hoje conhecida pela do Capim, o presidente da província tem deliberado desapropriá-la também, e que a respeito dela se proceda na forma estabelecida para a da Memória.

Palácio de Governo da província do Rio de Janeiro, em 30 de outubro de 1845 - Aureliano de Souza Oliveira Coutinho."


Sucede, porém, que o Campo de Dona Helena era proveniente de acrescidos de marinhas, isto é, de aterros de mangues e mar de pequena profundidade que, evoluindo, formaram a Ponta d'Areia e por isso estava fora do litoral que existiu em 1568, fora portanto da sesmaria concedida ao índio Arariboia (Martim Afonso de Souza) e assim não se enquadrava nos dispositivos legais citados nesta lei de desapropriação.

No meu artigo "O Morro que foi Ilha", descrevo vários detalhes referentes a este caso, que me levaram a ter uma falsa impressão pessoal do Capitão-Mor Gabriel Alves Carneiro, antes de conhecer a verdadeira situação das terras disputadas.

Esclarecida a verdadeira situação dos fatos, reconhecidos os seus direitos sobre as duas praças, do Capim e da Memória, situadas no centro da Vila e abrangendo uma área de 6.400 braças quadradas, o casal vencedor da disputa (D. Maria José Bessa e Capitão-Mor Gabriel Alves Carneiro) fez doação do terreno objeto da questão, desistindo de receber as rendas dos mesmos, que importavam em 7:300$000, além das custas do processo, e ainda doou mais 2:000$000, como auxílio para a construção do cais da praça Martim Afonso, demonstrando dessa forma que a razão última da luta sustentada contra o poder público era a defesa e reconhecimento dos seus direitos violados, não o interesse material.

Assim terminou o caso de Campo de Dona Helena, que se arrastou por longos anos. O gesto de generosidade do canal vitorioso foi louvado pelo Presidente da Província - Conselheiro Aureliano de Souza e Oliveira Coutinho - por ofício de 24 de abril de 1846, e a Câmara Municipal enviou-lhes um ofício de agradecimento, em 5 de maio do mesmo ano e as duas praças continuaram no domínio público, hoje com outros nomes. Assim, a Praça da Memória chama-se Praça General Gomes Carneiro (hoje conhecida como "Rinque"); na do Capim está o Paço Municipal.

Publicado originalmente em O Fluminense, em 13 de março de 1974
Pesquisa e Edição: Alexandre Porto



Índice do Niterói que eu vi e que viram meus avós

O Monte D'Ouro
O morro que foi ilha
A Enseada de São Lourenço
Derivativos para a falta de divertimentos
Kiosques e Quiosques
O problema da localização da Vila Real da Praia Grande
O Campo de Dona Helena
Rio dos Passarinhos
Aproveitamento de uma antiga galeria de esgotos


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Publicado em 25/07/2024

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