Capítulo 04 da Série "A Niterói que eu vi e a que viram meus avós", de Romeu de Seixas Mattos

Os jovens da minha geração e das gerações próximas, à falta de outros divertimentos, eram obrigados a procurar derivativos para "matar o tempo" e por isso frequentávamos com assiduidade as sessões da Assembléia Legislativa, as do antigo Tribunal da Relação e, especialmente, as do Tribunal do Júri. Nessas peregrinações da mocidade tão distante, era meu companheiro inseparável o falecido juiz Irurá Mário Vianna, meu maior amigo desde 1903 até sua morte, em 1946.

Naquela época, a Assembleia Legislativa funcionava em um sobrado alugado, sobre a confeitaria do Sr. Terra, no prédio nº 389, da Rua Visconde do Rio Branco, esquina da Rua Coronel Gomes Machado. A política do Estado do Rio de Janeiro era, então agitada por divergências entre os Drs. Nilo Peçanha, Alfredo Backer, Oliveira Botelho, Feliciano Sodré, etc.

Não havendo Justiça Eleitoral, não estando o povo devidamente esclarecido e nem existindo um sistema democrático aperfeiçoado, a política estadual foi várias vezes perturbada por dualidade de Governo e de Assembleia, intervenção federal, etc, etc.

Em certa ocasião, em face da dualidade da Assembleia, foram reunir-se os onze deputados estaduais dissidentes na residência do Dr. Antônio Francisco dos Santos Abreu, na Rua José Bonifácio; doutra feita, um grupo também dissidente realizou suas sessões na residência do Dr. Feliciano Sodré, na Rua Moreira César, todas nesta cidade de Niterói.

Das sessões tempestuosas a que assisti, lembro-me de uma em que certo deputado "anarquizou" um colega de bancada porque, depondo como testemunha de um assassinato, o mesmo declarara ter visto dois cadáveres - um agonizante e outro já morto... Lembro-me, também, de que em outra sessão, o Presidente da Assembleia era um dos deputados dissidentes da facção que pretendia estabelecer a dualidade, levando um deputado a lamentar que um general de suas fileiras passasse para o campo contrário e fosse comandar o inimigo, daquele momento em diante.

O antigo Tribunal da Relação do Estado do Rio de Janeiro (atual Tribunal de Justiça), desde a volta da Capital para Niterói, em 1903, até instalar-se no edifício do Fórum, onde se encontra, funcionou num prédio de dois pavimentos na Rua XV de Novembro nº 56, esquina da Rua Almirante Tefé, ocupado depois pela Delegacia Fiscal do Ministério da Fazenda. Hoje demolido, foi substituído por um edifício de vários pavimentos, pertencente ao mesmo ministério.

Presidia aquele Egrégio Tribunal, quando eu o frequentava, um magistrado de idade muito avançada que, com grande sacrifício, exercia as suas funções, cochilando e até mesmo dormindo durante as sessões. Creio que o passado daquele homem era muito brilhante e grande a folha de serviços que prestara ao Estado, porque todos toleravam e até amparavam aquela situação incômoda, com muita solicitude e respeito, sem qualquer reclamação.

Assisti a uma sessão, por exemplo, em que ele foi despertado apenas duas vezes, sendo uma para conceder uma prorrogação de prazo, de mais de quinze minutos, para o advogado terminar a defesa; e a outra para desempatar a votação, na qual ele votou de acordo com o relator. No entanto, toda aquela situação de respeito e consideração foi tumultuada, certo dia, por uma atitude irreverente de um célebre advogado, Dr. Andrade Baena, que por esse motivo sofreu suspensão de suas funções de advogado.

Alguns anos mais tarde, conheci pessoalmente o Dr. Andrade Baena, quando fui nomeado perito numa questão de terras em Maricá, movida no Juízo Federal pelo Coronel Magalhães Castro contra o Sr. Joaquim Mendes e o Mosteiro de São Bento. Nessa questão, o Juiz Federal era o Dr. Leon Roussouliéres; advogado do Mosteiro e do Sr. Joaquim Mendes, o Dr. Levi Carneiro, representado naquele ato pelo Dr. Nélson de Oliveira e Silva; e perito desempatador o meu amigo José Liberato dos Santos, todos já falecidos. O Dr. Andrade Baena advogava a causa do Coronel Magalhães Castro.

Viajamos para o local da vistoria, em Inoã, através de estrada muito empoeirada, atrás do automóvel do Juiz, de modo que, ao chegarmos, perguntando-nos Sua Excelência se fôramos incomodados pela poeira, respondeu o Dr. Andrade Baena que "a poeira era muita, mas que ele, viajando atrás do pó da justiça, sentia-se muito satisfeito com isso".

Durante a viagem conversei ligeiramente com o Dr. Baena, mas tive ocasião de avaliar sua habilidade profissional, pois, naquele caso, apresentou apenas um único e longo quesito, que continha várias perguntas cujas respostas obrigatórias, a bem da verdade, teriam de ser "Sim" e apenas, muito veladamente, uma, que constituía o ponto essencial da questão, que se escapasse à argúcia do perito e fosse incluída com as demais, lhe daria irremediavelmente ganho de causa.

Como perito da parte contrária respondi a esse quesito dizendo: "Sim" quanto a tais e tais pontos, e "Não" quanto ao ponto essencial, que, para ser esclarecido, obrigou-me a fazer levantamento da planta topográfica de terreno etc. Neste caso a irreverência do Dr. Andrade Baena atingiu também o perito desempatador, José Liberato dos Santos, porque este concordou com o meu laudo, assinando-o.

O antigo Tribunal do Júri, naquela época, funcionava na Rua Marechal Deodoro, na parte central do edifício hoje ocupado pela Secretaria das Finanças.

Lá assisti a julgamentos memoráveis, tais como o júri de João Bacalhau, o de um famoso literato, assassino da esposa, e de outros mais. Não posso esquecer-me, entretanto, de um caso em que a decisão do júri foi tão absurda que o advogado da defesa pediu aos céus "uma chuva de cangalhas no lombo dos jurados inconscientes".

Prosseguindo na narrativa de fatos ocorridos no antigo Tribunal do Júri, devo antes referir-me a dois irmãos integrantes de família tradicional, descendentes de fidalgos do Segundo Império, talvez de nobreza espanhola, eis que usavam o título de "Don" nos respectivos nomes: D. Antônio, se não me falha a memória, era um ilustre magistrado aposentado que, nos últimos anos de sua existência, atingido por forte depressão nervosa, vestia-se de mendigo e pedia esmolas, sem que para isso houvesse necessidade e a família, envergonhada, pudesse impedir.

Quanto a D. Luiz, não sei se tinha qualquer aposentadoria; sei apenas que era, na sua velhice, um importante advogado no Foro daquela época e que possuía um aspecto respeitável, dando sua figura a impressão de retrato de um santo, desses que se acham impressos nas cartilhas de rezas.

Pois bem, eu estava presente a certa sessão de um júri em que o advogado de defesa foi D. Luiz. Em seguida, entrou em julgamento um réu indigente, que não tinha defensor; sendo assim, o Juiz consultou D. Luiz se aceitava defendê-lo. Imediatamente, respondeu D. Luiz, com aquela solenidade que o caracterizava: "Vossa Excelência sabe que eu não nego os meus serviços aos pobres que deles necessitem, estou, portanto, inteiramente às ordens de Vossa Excelência".

Começou o julgamento e o Promotor, que naquela ocasião era o Dr. Otávio Mafra, apresentou tremenda acusação, a qual D. Luiz ouviu em completo silêncio e com a maior serenidade. Apanhado de surpresa, sem ter o menor conhecimento do processo, D. Luiz não perdeu a oportunidade de mostrar os seus conhecimentos jurídicos e as suas excelsas qualidades de causídico notável, conseguindo com facilidade a absolvição do réu.

Embora sem penetrar bem no âmago da questão, D. Luiz explorou bem a situação de indigência do réu, sua extrema pobreza, sua falta de recursos para contratar um bom advogado, conseguiu rebater, através de doutrinas criminais, alguns pontos principais do tremendo libelo do Promotor e acabou citando, na peroração final, as palavras de Victor Hugo na defesa de seu filho, num júri em Paris, quando dissera: "Glória-te, meu filho, porque estás sentado num banco onde Jesus Cristo já se assentou!". Fazendo suas as palavras de Victor Hugo, disse então D Luiz: "Glória-te, meu constituinte, porque estás sentado num banco onde o filho de um grande homem e Jesus Cristo já sentaram!".

Durante a peroração final de D. Luiz surpreendeu-me bastante a atitude assumida pelo Promotor, que se ria de forma insistente e irônica, sem levar a sério o que falava D. Luiz. Comentando o fato com o meu falecido amigo José Liberato dos Santos, explicou-me o porquê de tudo em outra ocasião. D Luiz, que tinha em mãos um livro velho, aparentando lê-lo, fizera em latim uma citação favorável ao seu caso, atribuindo-a a Cícero, ou a Justiniano ou a outra qualquer autoridade do Direito Romano. Desconfiando da citação, o Promotor pediu para examinar o tal livro velho; D. Luiz, com isso, insultou-se e recusou terminantemente mostrar o livro; apelando para o Juiz e por ele devidamente autorizado, conseguiu o Promotor que fosse entregue o livro e verificou, então, tratar-se de "O Cozinheiro Brasileiro" e não de um respeitável Tratado de Direito Romano...

Pilhado em tal situação, D. Luiz não se acovardou investindo contra o Promotor e dizendo que aquilo era recurso de indivíduo incompetente e analfabeto, porque se ele tivesse o necessário conhecimento de latim, poderia também fazer uma citação contrária, mas não o fazia por ser analfabeto nessa matéria, etc, etc. Sendo assim, daquela vez o Promotor, pensando que talvez Victor Hugo não tivesse filho, só filhas, e que possivelmente houvesse outras barbaridades naquela nova citação, contentara-se apenas com as risadinhas insistentes e irônicas, por precaução.

Aproveitando a oportunidade, vou ainda referir-me aqui a uma ocorrência verificada num Tribunal do Júri de uma cidade do interior fluminense, que me foi contada por um advogado meu amigo, relativa a uma defesa "sui generis", isenta de argumentos jurídicos, produzida por um português negociante, que de uma hora para outra se viu metido nos apuros da tribuna de júri, para os quais não estava preparado, mas mesmo assim obteve resultado satisfatório com a absolvição do réu que defendeu.

Assim dirigiu-se ele ao Conselho de Sentença: "Srs. Jurados! Os senhores são meus amigos e meus conhecidos há muito tempo. Conheceram também, como eu, a vítima que devia ter nascido morta porque assim não teria atrapalhado vida de tanta gente; conhecem também o acusado presente e sabem como eu, que ele foi sempre um rapaz honesto, trabalhador, bom filho e bom chefe de família, que foi obrigado a fazer isso para não morrer... Pois bem, se mandarem este homem para a cadeia não falem mais comigo! Não adiantam conversas tenho dito".

A insignificância de palavras tão simples encerra neste modesto e minúsculo discurso desprovido de termos jurídicos, a maravilha de um dilúvio de ideias elevadas, onde os especialistas poderão descobrir teses de legítima defesa, justificativa da necessidade, conhecimento profundo de causa, concisão, precisão etc.

São esses alguns dos fatos que se fixaram na minha lembrança, alguns negativos, cujo pequeno número facilitou a deficiência e a minha incapacidade literária para melhor relatá-los.

Os positivos foram em maior número e constituíram a rotina de ocorrências diárias naqueles estabelecimentos, que além de contribuírem para a grandeza e progresso do nosso Estado, sob todos os pontos de vista, melhoraram consideravelmente a cultura do meu espírito, adquirida com grande sacrifício, na maioria dos casos, através do simples processo da roda quadrada.

Atualmente, nossa mocidade não terá talvez ocasião de observar fatos como esses aqui mencionados, porque a evolução dos processos eleitorais deve ter melhorado a escolha dos representantes do povo nas assembleias, e o limite de idade, a aposentadoria compulsória e a criação dos cargos de Defensores Públicos prevenirão os demais casos.


Notas da edição

1 - Na imagem de capa, o edifício citado, no qual funcionou a Assembleia Legislativa. A Casa Legislativa funcionou no casarão até 1919, quando foi construído o edifício em frente à Praça da República, no conjunto arquitetônico conhecido na época como Centro Cívico da administração estadual. Neste, desde a Fusão com o Estado da Guanabara, em 1975, funciona a Câmara Municipal de Niterói.

2 - Rua Moreira César atual Ator Paulo Gustavo, em Icaraí

3 - O edifício da rua Marechal Deodoro, então ocupado pela Secretaria das Finanças, é o Palácio São Domingos, ou Praia Grande, no primeiro quarteirão da rua, próximo à Avenida Visconde do Rio Branco.


Publicado originalmente em O Fluminense, em 2 de dezembro de 1973
Pesquisa e Edição: Alexandre Porto



Índice do Niterói que eu vi e que viram meus avós

O Monte D'Ouro
O morro que foi ilha
A Enseada de São Lourenço
Derivativos para a falta de divertimentos
Kiosques e Quiosques
O problema da localização da Vila Real da Praia Grande
O Campo de Dona Helena
Rio dos Passarinhos
Aproveitamento de uma antiga galeria de esgotos


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Publicado em 21/05/2024

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